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A crise de Israel é a crise dos EUA

Secretário de Estado dos EUA Antony Blinken em Washington DC, 20 de dezembro de 2023 [Jim Watson/AFP via Getty Images]

Mesmo com todos os seus esforços de guerra, Israel está perdendo para o Hamas e a resistência palestina. Se essa derrota fosse apenas em Gaza, já seria um desastre. Mas ela é mais ampla. Os Estados Unidos não queriam uma expansão do conflito para outras frentes, mas ela já é uma realidade. Surgem informações de que EUA e Israel já admitem que estão se preparando para uma guerra aberta no Oriente Médio. Além dos houthis no Mar Vermelho, as bases americanas já sofreram mais de 120 ataques na Síria e no Iraque e o que começou com uma troca de mísseis no sul do Líbano já evoluiu para um confronto mais amplo com o Hezbollah.

Alguns soldados que estão se borrando diante do Hamas provavelmente sairiam correndo dos 100 mil efetivos e dos 150 mil mísseis do Hezbollah que estão apontados para o território palestino ocupado. O Hezbollah tem uma infraestrutura imensamente maior que a do Hamas e já derrotou Israel duas vezes, em 2000 e em 2006. Os oficiais americanos estão muito preocupados, segundo o Washington Post, porque uma guerra aberta contra o Hezbollah custaria muito caro a Israel, que não seria bem-sucedido na empreitada.

A alta cúpula militar israelense parece ter percebido que não adianta executar um genocídio em Gaza e, ao lado da chacina contra civis, resolveu (depois de três meses!) tentar cortar a cabeça da fera. O assassinato do número dois do Hamas, Saleh al-Arouri, em um ataque seletivo em Beirute, comprova que o massacre de mais de 20 mil pessoas em Gaza é pura crueldade e não tem como alvo o Hamas, mas sim a população indefesa. Ao bombardeio no sul da capital libanesa somam-se a eliminação em Damasco de Sayyed Reza Mousavi, conselheiro sênior do Corpo de Guardas Revolucionários do Irã e coordenador da aliança militar com a Síria; Hussein Yazbek, um líder do Hezbollah no sul do Líbano e a morte de Hajj Mushtaq Talib al-Saidi, alto chefe militar das Forças de Mobilização Popular iraquianas, por ataque americano a partir de uma base militar no Iraque. O atentado reclamado pelo Estado Islâmico em Kerman, que matou quase 100 iranianos, coincidiu com a sequência de assassinatos promovida por Israel e EUA e, obviamente, deve-se suspeitar de seu envolvimento.

Contudo, ao invés de significarem vitórias importantes para Israel, esses feitos só fizeram aumentar as hostilidades contra os sionistas. Esses ataques estão inflamando ainda mais os ânimos anti-americanos no Iraque e no Líbano. O Irã disse que vai responder ao assassinato de Mousavi e ao ataque em Kerman e até mesmo o governo iraquiano, pressionado pela sua população e pelos grupos da resistência armada, declarou abertamente que vai acelerar a retirada da presença militar dos EUA.

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Um outro fator preocupante para Israel são os dois milhões de palestinos que vivem dentro dos territórios ocupados. Se as frentes em Gaza, Cisjordânia, Síria, Iraque, Líbano, Iêmen e, possivelmente, Irã, poderiam destruir a entidade sionista por fora, os palestinos dentro de Israel poderiam implodir essa colonização. E certamente eles são influenciados pelos sentimentos antissionistas e anti-imperialistas exalados das frentes da resistência. Se as guerras coloniais dos EUA são realizadas a milhares de quilômetros de distância de seu território, Israel não tem esse privilégio: ele mesmo é como um parasita que só existe dentro ou próximo dos territórios conquistados ou que busca conquistar. Sim, Israel está dentro da Palestina, fazendo com que uma derrota como a que se apresenta tenha consequências sem precedentes para a própria existência do Estado-parasita.

Os americanos tentam apaziguar a situação para não se afogar ainda mais na areia movediça, mas ao mesmo tempo continuam alimentando a máquina genocida de Israel. Washington envia 3,8 bilhões de dólares em apoio militar anual aos israelenses, além de vender centenas de milhões de dólares de bombas, mísseis e cartuchos. Para 2024, já foi aprovado um financiamento de mais 14 bilhões de dólares e, no final de dezembro, o governo anunciou que venderia 147,5 milhões de dólares adicionais em munições e outros equipamentos militares, com a justificativa de que “existe uma emergência que requer a venda imediata ao Governo de Israel”.

Fica claro que o único beneficiado por uma guerra aberta e generalizada no Oriente Médio é a indústria bélica norte-americana, que, no entanto, é o setor mais poderoso do regime imperialista do país. E é ela quem dá as cartas em Israel, jogando lenha na fogueira dos fundamentalistas de Netanyahu, assim como faz na Ucrânia. Para os falcões da indústria militar dos EUA, quanto mais guerras, mais lucros.

Só que, mesmo despejando bilhões de dólares na máquina genocida de Israel, pintada pela propaganda como uma das mais modernas e tecnológicas do mundo, estão perdendo a guerra. A fragilidade militar israelense ficou descoberta com sua incapacidade de conter a Tempestade de al-Aqsa. Assim como o Hamas viu a enorme crise política e social em Israel como uma oportunidade de ouro para iniciar a operação de 7 de outubro, o Irã certamente está vendo o fracasso militar israelense como uma oportunidade de ouro para desencadear a guerra final de libertação regional. Este é o momento de maior fraqueza de Israel em toda a sua história, ao mesmo tempo em que a resistência contra a entidade usurpadora está mais forte do que nunca.

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A crise de Israel é a crise dos EUA, e vice-versa. Não apenas o Irã, mas também seus aliados de China e Rússia percebem essa fragilidade – e estão esfregando as mãos. A humilhação para os talibãs foi a comprovação para o mundo de que o imperialismo americano já não é mais o mesmo de antes e que está em queda livre. Após ela, os EUA não conseguiram fazer nada contra a Rússia e agora estão tentando evitar uma expansão da guerra pelo Oriente Médio – e, se for preciso, poderiam rifar Netanyahu, como já fizeram inúmeras vezes na história com seus peões desastrados. A dominação imperialista como conhecemos está claramente ruindo na nossa frente. E a um ritmo impressionantemente acelerado: Afeganistão em 2021, Rússia em 2022 e Palestina em 2023.

A crise de popularidade de Joe Biden está diretamente relacionada com isso. Ele não é unanimidade nem mesmo dentro do establishment americano. Ao invés de estabilizar o país e retomar a sua dominação mundial, fez o contrário, tendo essas três derrotas históricas ocorrido nos três primeiros anos de seu mandato – algo inédito, pelo menos desde o final da Segunda Guerra. Não surpreenderá se Biden for derrotado nas eleições deste ano. Trump não perdeu nem um pouco de sua popularidade, mesmo com as perseguições sofridas, e, como ocorreu em 2016, uma parte significativa dos grandes capitalistas poderá apoiá-lo, dado que o governo Biden está sendo um desastre para a maioria deles. Mas, infelizmente para eles, agora, mais do que nunca, está valendo o velho ditado: se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. A crise estrutural e histórica é irreversível. O máximo que pode acontecer é estancar levemente o sangramento para reduzir o volume da hemorragia desse corpo doente e agonizante que é o sistema imperialista mundial. Uma contradição é que, embora para os mais poderosos dos EUA as guerras signifiquem mais lucros, em termos de interesses do conjunto do regime guerras simultâneas em diversas frentes não são viáveis – pelo contrário, são uma hecatombe.

A expansão da guerra na Palestina poderá levar simplesmente à destruição do Estado artificial de Israel. A situação só não se transformou ainda em uma insurreição generalizada porque a resistência armada palestina, libanesa e iraquiana deve estar sendo aconselhada pelo Irã (e por China e Rússia) a não optar ainda pelo tudo ou nada, o que prejudicaria os Estados da região (muito comprometidos com o Ocidente, mas também aliados importantes dessas potências regionais) e poderia precipitar, a seu ver, uma guerra mundial que, embora potencialmente enterre de vez o regime imperialista que os oprime, também abalaria as estruturas de seus próprios regimes políticos internos.

Como consideram os estrategistas da Casa Branca e do Pentágono, Israel é um pilar da dominação dos EUA na política mundial. Ele é resultado da necessidade das potências imperialistas lideradas pelos EUA de dominarem o que o geopolítico norte-americano Halford J. Mackinder chamou de “heartland”. Já tendo os mares sob o seu controle, como lembrou Tom Sharpe e como Alfred T. Mahan estabeleceu como condição para a dominação do mundo, os EUA precisavam controlar aquela região do Oriente Médio para assegurar o seu controle de todo o sistema global. Por isso Israel não pode ser perdido, porque é esse preposto que garante o controle do “heartland”. Se for perdido, o “eixo do mal” (Rússia, China e Irã) é quem dominará essa região, o que significa o fim de um dos mais fundamentais pilares da atual ordem mundial pós-1945.

Estamos vendo que a dominação dos mares também está grandemente enfraquecida com a impotência de desbloquear o Mar Vermelho dos houthis, rebeldes que sequer controlam todo o pequeno e miserável Iêmen. A queda de Israel levará, mais cedo do que tarde, à queda inevitável dos Estados Unidos como potência hegemônica. E a queda dos EUA como potência hegemônica só pode levar ao desmoronamento completo da ordem imperialista internacional, que verá cada vez mais acontecimentos dramáticos como os do Afeganistão (2021), Rússia (2022) e Palestina (2023) nos próximos anos.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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