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Todos ainda somos Muath!

Entrevista com o repórter fotográfico que, em 2019, perdeu um olho por disparo de soldado israelense
Fotojornalista Muath Amarneh é resgatado após ter o olho atingido com uma bala de borracha por forças israelenses durante a cobertura de um protesto contra o muro da separação e assentamentos judaicos na cidade de Hebron (Al-Khalil), Cisjordânia, 15 de novembro de 2019 [Mamoun Wazwaz/Agência Anadolu]

Quem é Muath Amarneh? Se essa pergunta tivesse sido feita há dois anos, em qualquer parte do mundo, muitos saberiam que se trata do “fotojornalista palestino que perdeu o olho esquerdo” após ter sido atingido por uma bala disparada por um atirador das forças de ocupação israelenses (IOF).

Em 15 de novembro de 2019, após ter sido o alvo de um franco atirador das IOF, a imagem do seu rosto coberto de sangue, sendo socorrido pelos amigos jornalistas, correu o mundo e provocou uma série de protestos, notas de repúdio e a campanha: “We are all Muath”.

 

Após alguns dias, Muath e a Cisjordânia foram tratados como uma cena cotidiana e o episódio caiu no esquecimento, fazendo com que o fotojornalista se tornasse apenas mais um número nos relatórios sobre a violência contra profissionais da mídia em todo o mundo, especialmente contra jornalistas palestinos e estrangeiros cobrindo a Palestina.

Que a violência contra jornalistas tem crescido no mundo todo, ninguém tem dúvida. Que as formas de violar as liberdades de imprensa têm se tornado cada vez mais explícitas, igualmente ninguém tem dúvida. A única dúvida está no fato de permitirmos que a violência contra profissionais da mídia, em algumas regiões ou países, seja tratada com normalidade. É como se fosse possível dizer: “Lá, isso é normal, natural”.

Não é normal que o fotojornalista Muath tenha perdido um olho durante o exercício da profissão, assim como não é normal nem natural que a discussão e o engajamento com a causa de Muath tenham esfriado.

O fotógrafo Muath Amarneh é árabe muçulmano e vive em um campo de refugiados em seu próprio país. No próximo mês, dia 15, esse episódio completará dois anos. Há dois anos, Muath enxerga com um olho só. Nesse tempo, o fotojornalista palestino espera o apoio internacional que lhe foi prometido.

Antes de começar esta entrevista com Muath, sobre como esse episódio mudou a sua vida, gostaria de fazer um pedido a cada leitor. Em qualquer parte do mundo que você esteja, faça o exercício de ler esta entrevista imaginando, no lugar do fotojornalista palestino, um jornalista de seu país. Escolha um profissional que, como Muath, seja conhecido por denunciar a violação generalizada dos direitos humanos e civis das minorias, dos povos mais perseguidos e oprimidos.

Onde e quando começou essa violência contra você? 

Começou quatro dias antes, no dia 11 de novembro de 2019, durante uma operação militar em um campo de refugiados. Eu estava filmando um jovem tentando controlar um incêndio no telhado de sua casa provocado por uma bomba arremessada pelo próprio exército israelense. Ainda que estivesse balançando uma toalha branca, tentando sinalizar uma mensagem de paz, o jovem foi atingido por dois disparos à queima roupa. Eu e outros três jornalistas estávamos entre o rapaz baleado e os soldados que o atingiram. Por diversas vezes, tentamos socorrer o rapaz, mas cada vez que tentávamos nos aproximar, éramos recebidos com tiros do exército. O jovem baleado faleceu no local, sem que pudéssemos ajudá-lo. Divulgamos as imagens do assassinato cometido pelo exército e rapidamente as imagens circularam por todo mundo.

O que aconteceu depois que as imagens foram divulgadas?

Foram dias de inferno em meu país. Cada vez que notícias assim circulam, a repressão se torna ainda maior, não só contra nós jornalistas, mas contra todos os cidadãos palestinos. Quanto maior a repercussão na mídia, maior a repressão nas ruas.

Como foi essa repressão?

Muath: Perto da minha casa tem um local onde os jornalistas costumam se encontrar antes e depois de alguma cobertura, é um ponto de encontro onde trocamos experiências e materiais produzidos. Nos dias após o assassinato que cobrimos, o exército marcava presença em nosso ponto de encontro, eles nos expulsaram várias vezes e ameaçaram apreender nossos equipamentos. Sem contar a violência sofrida pelos cidadãos que precisavam passar por um campo de controle do exército para poder ir trabalhar.

O que aconteceu no final daquela semana?

Quatro dias depois, fui cobrir uma manifestação em Surif. Os manifestantes protestavam porque o governo Israelense havia decretado uma área agrícola da Palestina como zona militar sob domínio de Israel. Esse decreto proíbe os palestinos de circularem ou usarem a terra para suas plantações.

E como foi a manifestação?

Assim que os primeiros manifestantes se posicionaram, o exército obrigou que todos retirassem os veículos do local. Fui o último a retirar o meu carro. Dei a partida e saí devagar, pois se você anda na velocidade normal o exército atira em seu carro e depois alega que você estava tentando fugir.

Quais outras táticas o exército costuma usar contra os manifestantes?

Eles costumam colocar soldados disfarçados entre nós, eles colocam keffiyeh (lenço palestino) cobrindo o rosto e se infiltram para incitar a violência contra o exército. Outra tática é quando eles fingem não estar se importando com os palestinos manifestantes, aí os palestinos se aproximam e eles atiram com silenciador. Nós só sabemos que eles atiraram quando um manifestante cai, quando isso acontece eles prendem a pessoa baleada.

O que aconteceu depois que você retirou o seu carro do local?

Os soldados me conheceram pela última cobertura, então pararam meu carro e me pediram as chaves. Eu não as dei porque quando eles tomam as chaves, costumam incendiar o carro ou deixá-lo como escudo. Enquanto discutiam comigo, um dos soldados presentes na cena interrompeu a discussão e ordenou que os outros militares “liberassem o fotojornalista”. Percebi que aquele soldado possuía um rifle de longo alcance com silenciador, como os que são usados para derrubar e depois prender palestino. Não entendi o que o sniper falou, mas percebi que ele estava falando algo do tipo “libera que depois eu cuido dele”. Naquele momento, um dos jornalistas que acompanhavam a discussão de longe fotografou esse atirador. O soldado que discutia comigo me liberou sem questionar, foi ali que senti que algo iria dar errado, logo lembrei do meu tio que me pediu para voltar inteiro para casa. Depois de estacionar, coloquei todo meu equipamento e orientei os colegas a fazer o mesmo, pois sentia que os soldados preparavam algo contra nós.

Do que você se lembra do momento do disparo?

Eu me lembro de tudo. Primeiro, senti um grande impacto na cabeça e o calor queimando meu rosto. Procurei pela pedra que pensei ter me atingido, mas não tinha nada, foi então que percebi que havia sido baleado por um tiro disparado com silenciador. Eu não sabia se estava vivo ou morto, não conseguia acreditar que ainda estava de pé depois de um tiro no rosto. Então, coloquei as mãos atrás da cabeça tentando encontrar a saída da bala, mas não havia nada. Outros jornalistas me socorreram, um em cada lado do meu corpo me arrastaram para um lugar mais seguro.

Depois do tiro, qual foi a reação das IOF?

Eles vieram até onde eu estava e tiraram fotos do meu rosto. Eles disseram que não havia tido disparo e que eu tinha sido acertado por uma “pedra palestina”, mas todos sabíamos que não. Achei que iriam me prender, porque é o que eles fazem depois que derrubam algum manifestante, mas isso não aconteceu. Após tirarem fotos do meu ferimento, eles foram embora.

O fotógrafo baleado foi encaminhado para um hospital em Hebron e depois transferido para o mais moderno hospital de Jerusalém, onde passou por uma cirurgia que retirou parte do projétil e também o olho esquerdo. O maior fragmento do projétil não pôde ser retirado por estar muito próximo ao cérebro. Enquanto estava internado, alguns homens que se diziam ser europeus visitaram Muath, eles diziam estar iniciando uma investigação, mas nunca mais o fotógrafo ouviu falar deles. O exército, responsável por mais um crime contra um palestino, neste caso um jornalista palestino, emitiu uma nota minimizando o caso e dizendo que o disparo que o acertou foi acidental.

Uma semana após o ocorrido, foi lançada uma campanha nas mídias tradicionais e nas mídias sociais em que diversas personalidades, de várias partes do mundo, postaram fotos em suas redes sociais cobrindo o olho esquerdo, em sinal de repúdio ao ataque desferido contra o fotógrafo. A campanha ganhou a mídia, mas logo caiu no esquecimento.

Devido aos constantes ataques contra imprensa e a cotidiana violação dos direitos humanos, o caso logo se tornou parte de uma estatística. Enquanto isso, o jovem fotógrafo segue com o projétil alojado em sua cabeça.

O que e quanto essa violência impactou na sua vida? 

Tudo mudou, demorei mais de um ano para conseguir segurar a câmera e fazer meu trabalho. Hoje, fico muito preocupado quando vou filmar e fotografar uma ação do exército israelense, pois o fragmento que ainda está em minha cabeça pode se mover com qualquer esbarrão e acabar com minha vida, deixando os meus filhos sem o pai. E me sinto como um peso para a Palestina, já que não posso mais contribuir para libertação de meu país, como eu fazia antes. Para nós palestinos, uma manifestação tem significado diferente do que tem para vocês brasileiros.  Aqui, nós não marcamos data para manifestação, nós saímos às ruas todos os dias, pois cada dia que deixamos de sair Israel vem e ocupa um bairro, expulsando mais e mais famílias de suas casas. Para nós palestinos, a manifestação é a única coisa que mantém nossa esperança de um dia estarmos livres da ocupação sionista.

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Você ainda usa o colete e o capacete? Ou sente que com eles acaba se tornando um alvo? 

Sempre usei o equipamento. Nas Intifadas, muitos jornalistas foram mortos e Israel sempre alegava que os confundia com terroristas. Usar o equipamento nos protege até certo ponto. Quando fui atingido, eu usava o colete e o capacete e estava em um buraco que protegia minhas pernas, entretanto o exército acabou encontrando meu rosto como alvo. Quando eles querem nos acertar, eles nos acertam.

Muath ainda vive com sua família no campo de refugiados de Dheisheh, perto de Jerusalém. Para a Palestina, Muath se transformou em um mártir. Para Israel, Muath é apenas um número. Para mim, como fotojornalista e cidadão engajado com as questões humanitárias e de justiça, Muath provoca a obrigação ética e moral de não permitir que sua história, que a violência que sofreu, seja esquecida ou naturalizada.

No próximo mês, o caso do jornalista completará 2 anos. Israel nunca reconheceu o atentado contra sua vida. Os casos de violência contra a imprensa são tantos, que até as campanhas iniciadas foram esquecidas.

Da sala de casa, Muath aguarda ansioso pelo próximo dia 15 de novembro. Ele deve aguardar por respostas de todos que se sensibilizaram com a violência contra ele, contra os profissionais da mídia, contra o povo palestino.

Uma das respostas é, sem dúvida, resgatar o que a campanha nas mídias sociais prometia: “We are all Muath”!

Entrevista traduzida por Jehad Khamis Mohamed Afaghani, com edição de texto de Cilene Victor

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