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A Nakba que não tem fim, 1948 é todo dia

Um idoso palestino e uma criança podem ser vistos durante a Nakba, em 1948 [Hanini/Wikipedia]
Um idoso palestino e uma criança podem ser vistos durante a Nakba, em 1948 [Hanini/Wikipedia]

Revisitar a história da Palestina é algo que fazemos desde sempre em nossas reflexões acadêmicas, decorrente muitas vezes dos nossos objetos de pesquisa e da nossa produção do conhecimento. A leitura do texto do Dr. Charles Mady, professor da Faculdade de Medicina da USP nos mobilizou a ampliar o diálogo com a sociedade acadêmica, quase sempre silenciosa quando o tema é Palestina, cuja questão, como aponta Edward Said se arrasta de forma insolúvel e trágica desde que a Declaração Balfour foi publicada em 1917.

Como acadêmicas repudiamos qualquer discriminação religiosa, cultural, social e sobretudo repudiamos com veemência o nazismo e o holocausto. Holocausto que dizimou, matou, violentou judeus, negros, homossexuais e ciganos.

O nazismo é a marca da crueldade, e deve ser banido de qualquer esfera da nossa vida social. Este é tão nocivo quanto o sionismo criado para consolidar um território de um povo que vem dizimando, por práticas identificadas pelo historiador israelense Ilan Pappé como limpeza étnica.

Como escreve o Dr. Mady: “Os nazistas queriam rapidez, os sionistas aplicaram a limpeza étnica lenta, como política de Estado”, e acrescentamos com o mesmo objetivo: dizimar um povo. Se genocídio é um crime contra a humanidade, limpeza étnica ocupa a mesma infame classificação.

É necessário compreender o que se passa na Palestina como um todo e, como um microcosmo dessa dura realidade, o que acontece por exemplo em Gaza, denominada por muitos como uma prisão a céu aberto, como sempre pontua em seus textos e falas o professor Paulo Sérgio Pinheiro.

Talvez o melhor modo de nos remeter a ideia de prisão imposta por Israel aos palestinos é a existência de 500 checkpoints [postos militares de controle de passagem] em seu território. Outro ponto que remete a ideia de prisão é o muro de 764 km que separa Israel dos territórios palestinos da Cisjordânia, onde estão grandes cidades como Belém e Ramallah, e por consequência separa muitas famílias e lugares de cultos religiosos.

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Palestinos não têm livre locomoção (não tem direito de ir e vir) em seu próprio território, quase sempre há necessidade de autorização para irem de um lado para o outro, não podem se reunir com familiares, não podem visitar lugares sagrados, não deveriam nem existir.

Essa é a prova cabal de que Israel promove o apartheid mais longo da história do mundo, sob a fraca desculpa que se protege daqueles que o querem destruir.

A Nakba (catástrofe em árabe) não tem fim, 1948 é todo dia… pois todos os dias há expulsões, violações de direitos humanos, mortes de crianças, velhos e adultos.

Escritores são assassinados (lembremos Ghassan Kanafani), jornalistas são assassinados (lembremos Shireen Abu Akleh), pessoas comuns e anônimas são assassinadas [lembremos um pai (mãe), um filho (filha), um irmão (irmã), um primo (prima), um sobrinho (sobrinha), um tio (tia)].

Ilan Pappé em seu livro Dez Mitos de Israel considera a fundação do movimento sionista de Theodor Herzl como um desses mitos para justificar a fundação de um Estado judeu na Palestina como resposta ao antissemitismo europeu.

Há uma narrativa muito cômoda quando se utiliza o “antissemitismo” para atacar qualquer pessoa que defenda a causa Palestina, que se oponha à colonização imposta por Israel nesses 74 anos. Judeus se entendem como os povos originários, autênticos, nativos, e os palestinos são os invasores, os estranhos, estrangeiros, usurpadores.

Sobre a pretensa autenticidade do povo judeu e seu direito inaliável sobre o território palestino convém ler a obra A invenção do povo judeu de Schlomo Sand, na qual o autor desmonta o mito de que Israel do presente, criado em 1948, é uma pura continuidade de Israel antigo. Sand demonstra que tal reivindicação é um produto do movimento sionista do século XIX que teve em Theodor Herzl o maior ideólogo, idealizador e militante da causa.

Significado do antissemitismo

Importante destacar o significado de antissemitismo – muito atrelado aos judeus, usado em suas narrativas, no entanto, no dicionário etimológico encontramos a seguinte definição: semita – indivíduos dos semitas, família etnográfica e linguística originária da Ásia ocidental, e que compreende os hebreus, os assírios, os aramaicos, os fenícios e os árabes.

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O nome vem de Sem, um dos filhos de Noé, ancestral do povo semita. Ser antissemita também seria dizer ser contra muçulmanos e cristãos, pois Noé está presente nas três religiões monoteístas e, portanto, nos livros sagrados de todos esses povos.

Os que lutam pela causa palestina não são antissemitas, são anti sionistas, e não consideram Israel como dono pleno, legítimo daquelas terras, que foram colonizadas. Lutam contra a ocupação, a usurpação e o projeto colonialista e colonizador aos moldes do imperialismo do século XIX que os judeus impuseram aos palestinos com o aval de Sua Majestade.

Cabe lembrar as palavras de Judith Butler em lançamento do seu livro “Caminhos Divergente”, quando esteve no Brasil: “Em vez de afirmar que criticar Israel é antissemitismo, talvez seja mais importante saber que existem judeus que não consideram que o Estado de Israel os represente.

Na verdade, a crítica é que o Estado de Israel deveria ser um estado democrático, tratando todos os cidadãos igualmente, independentemente de sua religião e etnicidade.

Deveria ser um estado que dissolva a dominação colonial do povo palestino em Gaza e na Cisjordânia e que faz reparações honestas pelas desapropriações de cerca de 900 mil palestinos em 1948 e que ao longo dos anos se tornaram 5 milhões”.

Limpeza étnica

Concordamos que o que a Palestina vive é uma limpeza étnica desde o final do século XIX, pois o projeto sionista, que possibilitou um Estado étnico judeu em território palestino, foi resultado de um processo de colonização que teve seu ápice em 1948 com a Nakba, por meio da Resolução 181, quando a Assembleia Geral da ONU dividiu a Palestina Histórica em dois territórios, mas sem a criação do Estado da Palestina.

Desde 1967 a Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental vivem uma limpeza étnica, nos moldes apontados por Pappé. Para nós, o que a Palestina vive é uma necropolítica, como bem pontua, o filósofo camaronês Achille Mbembe no ensaio publicado em 2006 na revista Raisons Politiques, “que a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” e é exatamente o que vem fazendo Israel há tanto tempo.

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Em nota de 26 de Janeiro de 2023 do Ministério das Relações Exteriores do governo Federal dá condolências pela morte de nove cidadãos palestinos pelas Forças de Segurança de Israel, durante incursão realizada nesta data supracitada em campo de refugiados na cidade de Jenin, na Cisjordânia.

Ao tentarem atacar o Dr Mady caímos naquilo que Pappé denuncia em seu livro, a (i) responsabilidade acadêmica dos intelectuais em transformar mitos em verdades, e neste ponto Charles Mady acerta como Pappé, provoca, questiona os mitos fundadores de um Estado colonialista e poderoso, que sai em defesa dos seus todas as vezes que é questionado, no entanto, não altera em nada a situação do povo palestino.

Não se pode dizer que Israel promove direitos humanos, quando os mortos são crianças, velhos, mulheres; quando ocorrem mortes diárias, violências e opressões cotidianas a qual estão submetidos um povo, sejam estes muçulmanos ou cristãos que lá vivem.

O que vemos diante dos nossos olhos é um projeto colonial racista e perverso que visa remover e desenraizar o povo palestino de sua terra e apagar seus milhares de anos de história e civilização.

Está na hora de acadêmicos se posicionarem contra o maior apartheid da história ainda em curso. Não ao silêncio diante de holocausto palestino, diante da morte e violação de direitos que nunca chegaram.

Por mais intelectuais cultos e com visão como Charles Mady, Ilan Pappe, Judith Butler, Noam Chomsky, Shlomo Sand, entre outros.

Publicado originalmente em Diálogos do Sul

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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