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O direito à autodeterminação palestina pode ser alcançado por meios pacíficos?

Forças israelenses montam guarda enquanto máquinas limpam as ruínas da casa da família palestina Salhiya, no bairro de Sheikh Jarrah, em 19 de janeiro de 2022 [Ahmad Gharabli/AFP via Getty Images]

A Liga das Nações estabeleceu o Mandato Britânico para a Palestina em 24 de julho de 1922. Ele pretendia administrar partes do Império Otomano que governava a região desde o século XVI, incluindo a Palestina, “até que esta [Palestina] adquirisse a capacidade de resistir sozinha”. O povo da Palestina está esperando para construir seu país desde então.

Apesar de todas as tentativas de implementar esse princípio fixo de direito internacional, usando meios pacíficos, e em vez de realizar o sonho palestino, as Nações Unidas – sucessora da Liga das Nações – aceitaram Israel como membro da Assembleia Geral, anulando no processo alguns fundamentos do direito internacional. Embora Israel nunca tenha cumprido as condições para a sua adesão à ONU (a implementação das Resoluções 181 e 194), continua a ser membro da organização, enquanto os palestinos ainda aguardam o estabelecimento de seu Estado em sua própria terra, e os refugiados ainda esperam para cumprir seu direito de retornar às suas casas.

O direito à autodeterminação pode ser considerado uma norma internacional de caráter peremptório, uma vez que esse direito é condição necessária ou pré-requisito para o exercício e a efetiva implementação dos direitos humanos, bem como sua estreita ligação com a manutenção de paz e segurança. Além disso, é a base para relações amistosas entre as nações, conforme declarado na Carta da ONU. Portanto, qualquer acordo entre qualquer um dos signatários de tratados ou convenções jurídicas internacionais que inclua uma negação desse direito ou contenha quaisquer regras ou disposições obrigatórias que contrariem os princípios neles contidos é nulo e sem efeito.

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Existem vários meios para implementar o direito à autodeterminação. Uma distinção é feita aqui entre meios políticos e força das armas. Entre os primeiros, destacam-se o referendo popular, as decisões tomadas por um órgão eleito representativo do povo e as negociações políticas.

Como o Dr. Omar Ismail Saadallah escreveu em seu livro de 1986 – “Autodeterminação Política dos Povos no Direito Internacional Contemporâneo” -, um referendo permite que as pessoas tenham a liberdade de tomar decisões sobre seu futuro político sem serem submetidas a qualquer pressão, coerção ou influência de qualquer partido. O referendo é considerado o meio perfeito para dar ao povo o direito à autodeterminação, pois é a forma mais democrática de o povo expressar sua vontade. Os resultados do referendo devem restringir as partes a qualquer conflito maior ou menor, que são obrigadas a aceitá-las e respeitá-las.

Em dezembro de 1952, a Assembleia Geral da ONU afirmou na Resolução 637 sobre os direitos dos povos e das nações à autodeterminação que “os desejos dos povos são confirmados pelo sufrágio universal ou por qualquer outro meio democrático e reconhecido, e preferencialmente exercidos sob a supervisão de as Nações Unidas”.

Dada a grande importância do processo do referendo e as suas graves consequências, exige-se que sejam dadas as bases e as garantias necessárias para assegurar um ambiente interno e externo propício à realização de tal referendo. Aqui, o referendo deve estar sob a supervisão de um comitê internacional especializado emanado de instituições internacionais, cujos membros são pessoas de reconhecida integridade sem interesse na natureza das mudanças que ocorrerão como resultado do processo do referendo. O referendo também deve se basear em bases sólidas, de modo que se crie uma atmosfera que permita às massas a liberdade de participar do referendo livre de ameaças internas e externas, ou qualquer tipo de pressão.

Além disso, o referendo deve incluir a participação de todos os habitantes nativos do território em questão e deve contar com a presença de todos os deportados e refugiados da região, para que possam retornar às suas terras para exercer seu direito de participar do referendo. Podem também exercer esse direito nos seus locais de residência, como aconteceu com os refugiados argelinos que se encontravam na Tunísia e no Marrocos antes do referendo de autodeterminação. Arranjos semelhantes podem ser feitos para os refugiados palestinos hoje.

Nesse contexto, vale a pena mencionar que, em alguns casos um referendo, não é uma forma adequada de alcançar a autodeterminação. Essa é a situação quando a maioria da população do território em questão não é de seus habitantes nativos, e o poder administrativo impede o retorno de refugiados e deportados políticos. Foi o que aconteceu em Gibraltar em 1969 no referendo que beneficiou a Grã-Bretanha, dado que a maioria dos que participaram eram britânicos. Isso está acontecendo na Palestina ocupada, onde Israel garantiu que a maioria da população seja composta de imigrantes judeus que não têm conexão ou afiliação com a Palestina árabe. Judeus migraram de todo o mundo, especialmente após a introdução da Lei do Retorno em 1950, que concedeu a todo judeu o direito de “retornar” a Israel, seguida pela Lei da Nacionalidade em 1952, segundo a qual todo judeu se torna um cidadão israelense assim que chegar a Israel.

Como resultado, no final de 2020, a população do estado de ocupação de Israel era de 9.327 milhões de pessoas, incluindo 6.894 milhões de judeus, representando quase 74 por cento do total. O número de árabes indígenas era de 1.966 milhões, representando cerca de 21 por cento, um número que inclui os palestinos em Jerusalém ocupada e os sírios nas Colinas de Golã ocupadas por Israel. Existem 467.000 – cinco por cento – os chamados “outros”; eles são imigrantes da antiga União Soviética que não são judeus, de acordo com dados divulgados pelo Bureau Central de Estatísticas de Israel.

O número de colonos judeus ilegais na Cisjordânia ocupada no final de 2020 era de 465.906, um aumento de 42 por cento em comparação com o início da década. O número de colonos na Jerusalém ocupada é estimado em 246.909 pessoas.

Isso ocorre em um momento em que o número total de palestinos em todo o mundo no final de 2020 era, de acordo com o Escritório Central de Estatísticas da Palestina, cerca de 13,7 milhões. Cerca de 37,7 por cento deles – 5,2 milhões – estavam nos territórios palestinos ocupados, com outros 1,6 milhão de palestinos vivendo como cidadãos nos territórios ocupados de 1948, Israel, totalizando 12 por cento do total. Existem 6,2 milhões de palestinos nos países árabes, pouco menos da metade de todos os palestinos, com 738.000 espalhados pelo resto do mundo.

Com base nessas estatísticas, as mudanças demográficas impostas por Israel tornam o referendo um meio inútil de autodeterminação para os palestinos, porque não expressaria a vontade genuína da população de determinar seu próprio destino. Para ser honestamente expressivo, precisa ter elementos, fundamentos e garantias claros para atingir o objetivo principal desejado.

O segundo método pacífico para exercer o direito à autodeterminação é através de uma decisão de um órgão eleito que representa o povo. Esse foi o meio seguido no Sudão, na Mauritânia, na Índia e na Nigéria. O que se supõe nesse método é expressar de forma genuinamente realista a vontade do povo, desde que esse órgão tenha sido eleito democraticamente pelo povo em bases claras e sólidas e de forma que expresse a vontade dos povos nativos da região.

No entanto, os obstáculos e as ressalvas ao recorrer a tal método são inevitáveis ​​antes de atingir o objetivo pretendido. Um exemplo seria a recusa do Estado administrativo – ou seja, Israel no caso da Palestina ocupada – em seguir tal decisão se contradiz seus próprios interesses, levando inevitavelmente a conflitos. O Estado administrativo também pode interferir no processo eleitoral de forma que possa levar à representação de elementos não nacionais naquele órgão ou daqueles que não expressam a verdadeira vontade do povo da região e são leais às forças que facilitaram sua eleição. Tal órgão seria, então, incapaz de tomar uma decisão justa para a qual foi eleito.

Além disso, mesmo que a estrutura do corpo eleito fosse construída exclusivamente sobre as terras palestinas ocupadas em 1967 sem a participação dos refugiados fora da Palestina, o estado de ocupação israelense não aceitaria o resultado eleitoral. É digno de nota que o Movimento de Resistência Islâmica Palestina – Hamas -, conforme representado na lista de Reforma e Mudança nas eleições de 2006, conquistou a maioria dos assentos no Conselho Legislativo Palestino. O movimento conquistou 74 assentos, aos quais poderiam ser adicionados quatro deputados independentes que venceram com apoio direto do Hamas, elevando a porcentagem de vitórias para 60 por cento.

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Israel e seus aliados rejeitaram o resultado da eleição. A vitória do Hamas foi um grande choque para o Estado de ocupação. “Israel está em choque”, anunciou a Rádio do Exército de Israel. “Caiu em uma grande turbulência, porque não se preparou adequadamente e não cristalizou seus passos futuros […] tremor de calibre desencadeado pela vitória do Hamas. Esse governo não tem uma política clara, nem no nível tático nem no estratégico.”

Desde então, Israel fez todos os esforços para derrubar o governo do Hamas e impedir o desempenho do parlamento palestino. O New York Times publicou uma reportagem em 14 de fevereiro de 2006 sobre um plano israelense-americano para isolar a Autoridade Palestina liderada pelo Hamas e, assim, causar sofrimento ao povo palestino e, dessa forma, forçá-lo a derrubar o governo do Hamas e restaurar o Fatah ao poder. Isso foi alcançado, com o resultado de que a AP controlada pelo Fatah em Ramallah é apoiada por Israel e seus aliados, enquanto um governo liderado pelo Hamas administra a Faixa de Gaza, a principal base de poder do movimento, que está sitiada por Israel e seus aliados.

No que diz respeito às negociações, a Conferência de Paz de Madrid, em novembro de 1991, assumiu que as negociações políticas entre os árabes e a potência ocupante deveriam basear-se no princípio da terra pela paz. Madrid preparou o terreno para os Acordos de Oslo, que foram assinados em Washington em 13 de setembro de 1993. Esse foi o primeiro encontro público entre representantes da Organização para a Libertação da Palestina e os da potência ocupante.

“A Organização para a Libertação da Palestina reconhece o direito de Israel de existir em paz e segurança”, proclamou Yasser Arafat. O [à época] primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin disse que “o governo de Israel decidiu reconhecer a OLP como representante do povo palestino”. Arafat e Rabin devidamente apertaram as mãos.

Os Acordos de Oslo estipulavam uma retirada gradual das forças israelenses da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e o estabelecimento de uma “autoridade de autogoverno palestina provisória” por uma fase de transição de cinco anos que terminaria em 1998. Isso culminaria em um acordo permanente baseado sobre as Resoluções 242 e 338 da ONU, a serem concluídas três anos após o acordo, com o início das “negociações do status permanente” para determinar o status de Jerusalém, as fronteiras e a questão dos refugiados.

Acordos de Oslo, o 25º aniversário [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Esse acordo foi seguido por outros, como o Acordo Gaza-Jericó de 1994, e o Acordo de Taba ou Segundo Oslo em 1995. Isso dividiu a Cisjordânia ocupada em áreas A, B e C para definir as áreas sob o domínio da Autoridade Palestina e aquelas sob o controle das autoridades de ocupação israelenses. O acordo estipulava a retirada das forças de ocupação de seis grandes cidades palestinas e 400 aldeias no início de 1996; a eleição de 82 membros do Conselho Legislativo; e a libertação de detidos palestinos em prisões israelenses. O segundo Acordo de Wye River ocorreu em 1999.

Quando os palestinos e os israelenses assinaram os Acordos de Oslo em 1993, o número de colonos ilegais nos territórios palestinos ocupados em 1967 era de 253.000. Quase trinta anos depois, esse número subiu para 712.000 vivendo em mais de 196 assentamentos ilegais e 232 chamados postos avançados que dominam quase 42 por cento da Cisjordânia.

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Esse aumento dramático no número de colonos e assentamentos transformou os sonhos dos negociadores palestinos para o estabelecimento de um Estado independente no que restava da terra histórica da Palestina – a Cisjordânia e a Faixa de Gaza – em um pesadelo. Os assentamentos foram construídos em terras palestinas, assim como o notório “Muro da Separação” e estradas exclusivas para colonos e outros colonos de infraestrutura, o que significa que os “fatos no terreno” impossibilitam a existência de qualquer “Estado da Palestina” em áreas contíguas. Em vez disso, tal Estado será uma série de “bantustões” desprovidos de conexões físicas entre suas cidades, vilas e aldeias.

Dado que Israel tem insistido que os palestinos cumpram todas as suas obrigações sob Oslo, ao mesmo tempo em que não implementa nenhuma das suas de forma significativa, e empurrou todas as concessões possíveis dos palestinos sem nunca fazer nenhuma, está claro que os Acordos de Oslo falharam com o povo da Palestina. Com base no exposto, é difícil concluir outra coisa senão que o povo palestino não pode exercer seu direito à autodeterminação se depender apenas dos meios pacíficos estabelecidos neste artigo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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