O lítio mineral é o chamado “ouro branco” do século XXI e tem mais de 60% de suas reservas entre Argentina, Bolívia e Chile. Desses três países, a Bolívia é hoje o mais forte economicamente. Em novembro de 2019 sofreu um golpe de Estado liderado pela direita paceña (do Departamento de La Paz), mais precisamente por Carlos Mesa (ex-presidente) e a extrema direita de Santa Cruz de la Sierra, liderada pelo governador do departamento, Luís Fernando Camacho (preso há mais de 30 dias por conspiração e golpe de Estado). Em outubro de 2020, após uma correta unidade indígena, camponesa, mineira, sindical e popular, o candidato do MAS-IPSP, Luis Alberto Arce Catacora, ganhou em primeiro turno com mais de 55,1% dos votos.
Série ‘Triângulo de Líitio, Chile, 2022[ Tom Hegen/Instagram]
Já o lítio mineral está sob total controle da empresa estatal Yacimientos Del Litio Bolivia (YLB) em convênio com um conglomerado chinês CBC. O modelo é vertical, segundo o mandatário boliviano: “A diferença é que nossa empresa YLB estará presente em toda a cadeia produtiva, desde a extração, industrialização e comercialização de produtos”. Deste modo, a YLP reproduz o modelo da YPFB (a estatal petrolífera e demais produtos) nacionalizada e verticalizada em 1º de maio de 2006 e chama a atenção do Império dos EUA em sua sina de projetar poder e inviabilizar as sociedades latino-americanas.
O Comando Sul quer as riquezas da América Latina e começa pelo lítio
Uma militar estadunidense, mulher e general de quatro estrelas, Laura J. Richardson (vejam seu perfil em site oficial em português) está à frente do Comando Sul dos EUA desde o final de outubro de 2021. Vale ressaltar que este comando permanente é o encarregado pelas forças armadas combinadas dos Estados Unidos em projetar poder e “garantir a segurança hemisférica”. Fora o México (sob a ameaça do Comando Norte) e Porto Rico (a ilha invadida no final do século XIX e segue sendo Estado Associado, ou seja, colônia), todos os países da América Latina e do Caribe estão diretamente ameaçados por esses militares profissionais. Em outras palavras, o pesadelo de um desembarque de fuzileiros navais gringos passa por este alto comando.
Em 21 de janeiro de 2023, a general Richardson fez um pronunciamento para sua própria platéia, tentando ampliar a atenção do Império para o que antes da Revolução Cubana era considerada o “seu quintal”, conforme segue:
“Porque essa região importa. Pelos recursos naturais e minerais por exemplo. Tem o Triângulo do Lítio – Argentina, Bolívia e Chile – responsável por 60% das reservas mundiais desse minério que é essencial para a tecnologia na atualidade. Também tem as maiores reservas de petróleo cru e leve, descoberto na fronteira das Guianas cerca de um ano atrás. Venezuela também tem muitos recursos, incluindo enormes reservas de petróleo. Na América do Sul tem cobre, ouro. A China compra 36% de suas fontes de alimentos desta região. Tem a Amazônia, o pulmão do mundo. Nesta região concentra 31% dos recursos hídricos do planeta.”
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A sinceridade na fala da militar segue dentro do jogo de poder global, e aponta o crescimento do comércio com a China como um grande problema:
“Tudo isso está fora dos gráficos mais imediatos, mas quando se fala de comércio internacional, é inacreditável o volume da região. Eu falei sobre todos os vínculos e laços que nós temos com o Hemisfério Ocidental. Mas vale ressaltar que a República Popular da China é o principal parceiro comercial da maioria dos países latino-americanos, sendo que os EUA ocupam a segunda posição em grande parte dos casos. Na verdade, nem na maioria dos casos (países), mas com alguns Estados. Entretanto, ao observar o crescimento do volume de negócios da China com a América Latina, saltando de USD 18 bilhões de dólares em 2002 para USD 450 bilhões no ano de 2022, e considerando que a previsão do volume de negócios entre latino-americanos e chineses deve atingir a USD 750 bilhões no futuro próximo, creio que temos muito para pensar.”
Tio Sam mapeando as rotas de comércio dos EUA para a América do Sul. Charge de Clifford Berryman, 1913.
Vale observar que para o Departamento de Estado, a América Latina está na subsecretaria do Hemisfério Ocidental. Para os EUA, o primeiro adversário em nosso Continente é a projeção de poder econômico da China e, em segundo posto, a presença da Rússia. E como tal, a general Richardson lista três aliados principais da Rússia na região (Venezuela, Nicarágua e Cuba) e seis outros países que utilizam material militar russo. A “ideia genial” – a mesma que encantou o demitido general Arruda, comandante geral do Exército brasileiro por um brevíssimo tempo – era pedir que esses países façam uma doação de material bélico de padrão russo para a Ucrânia e, assim, os gringos forneceriam equipamento militar em substituição.
É o jogo “hemisférico”, outrora chamado de “pan-americanismo”, onde os EUA tentam implantar sua agenda em tomadores de decisão de instituições-chave da América Latina. Quando não conseguem governos muito aliados, entram pelas beiradas, como foi o caso da Operação Lava Jato, a cabeça de ponte da operação de Law fare que ainda atinge a Argentina e o Peru.
Entre a desestabilização e a justa luta social
Os governos dos países componentes do Triângulo do Lítio podem ser classificados de “progressistas”, amigos da Palestina e propensos à integração latino-americana e, por consequência, ao multilateralismo. Isso basta para que os Estados Unidos “justifiquem” em sua política doméstica alguma medida para desestabilizar essas sociedades. Considerando que a administração Biden tem como inimigo doméstico a Trump e seus aliados, as movimentações geopolíticas se colocam mais delicadas. Ainda assim, dentro do Grande Jogo do Sistema Internacional, os estrategistas do Pentágono e do Departamento de Estado percebem a evidente perda de capacidade de influência sobre a América Latina.
Compreender que há uma ameaça imperialista não pode implicar em adesismo aos governos Alberto Fernández (Argentina), Luis Arce (Bolívia), Gavriel Boric (Chile) ou qualquer outro de maioria social-democrata em nosso Continente. A agenda doméstica e as lutas sociais por mais distribuição de renda, reconhecimento e poder de fato são bandeiras permanentes, independente de quem estiver no Poder Executivo. O mesmo se dá na agenda anti-imperialista e a defesa da soberania popular sobre os recursos estratégicos e suas respectivas cadeias produtivas. É preciso ter força social para enfrentar tanto o inimigo interno como as pretensões de Washington em comandar nossos destinos.
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A dependência e o colonialismo são tão domésticos como externos, e superar a sina agro-mineral exportadora são passos necessários para quebrar a hegemonia do capital especulativo composto por parasitas financeiros e empresários golpistas (sempre com forte presença sionista). Se retomarmos o ciclo virtuoso das empresas estatais estratégicas – ao mesmo tempo, tentando torná-las públicas e dotadas de democracia interna – podemos realmente virar o jogo contra a direita colonizada na América Latina.
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