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Memória dos jornais árabes no Brasil

Acervo de publicações impressas dos primeiros imigrantes árabes no Brasil, preservadas no Arquivo Público do Estado de São Paulo [MEMO]

O estado de São Paulo abriga um eminente acervo ainda desconhecido de jornais e documentos árabes, um dos numerosos acervos negligenciados por décadas, que algumas autoridades federais e estaduais tentam reorganizar e restaurar. A importância desses arquivos não repousa apenas em sua longevidade, mas também em lançar luz sobre as diversas etapas da história do Oriente Médio, da presença árabe no Brasil e da maneira como as comunidades imigrantes se integraram à região.

O Brasil é um país jovem, cuja constituição moderna não ultrapassa 470 anos. Como os demais países do continente americano, é marcado pela imigração, com múltiplos povos que vieram se estabelecer em seu território. O Arquivo Público do Estado de São Paulo contém um amplo acervo de jornais multilíngues, fundados pelos primeiros imigrantes, que serviram como elo entre a primeira geração, seus filhos e seus países de origem, até a terceira geração, plenamente integrada à sociedade híbrida brasileira.

Os jornais árabes desapareceram, salvo algumas tentativas de publicações partidárias por parte de ativistas árabes em cooperação com colegas brasileiros, como o jornal Al-Bayan, de língua árabe e portuguesa, com algumas edições disponibilizadas em 2007, forçado a parar as prensas no mesmo ano devido a dificuldades técnicas e financeiras.

O Arquivo Público do Estado São Paulo foi criado em 1892; sua seção árabe foi criada em 1985. No entanto, com o passar dos anos, ampliou seu acervo e adaptou seus métodos para tornar o conteúdo acessível a todos via internet. Este processo teve início em 2012, quando um edifício do governo foi enfim alocado para tanto.

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Grande parte do conteúdo do acervo hibernou sem grandes cuidados de preservação no Instituto de História e Geografia, onde o mofo e o desinteresse começaram a corroer seu grande legado histórico. Por iniciativa de alguns funcionários do Arquivo Público do Estado de São Paulo, os volumes foram enfim retirados das instalações precárias para dar seguimentos aos trabalhos de preservação.

O jornal Líbano foi o primeiro jornal árabe publicado no Brasil, em 1891, e sua presença está assegurada nos arquivos paulistas. Os registros sugerem ainda que os árabes estiveram entre os fundadores não só da imprensa, mas de uma concepção do país em geral, em níveis políticos, sociais, econômicos e culturais.

O reino português ocupou o Brasil em 1500, apenas oito anos após a queda do regime islâmico na Andaluzia. Desta maneira, o regime ibérico trabalhou para difundir sua cultura, saturada de aspectos árabes, nas novas colônias. O processo teve sucessivas etapas bastante complexas.

Em 1808, foi criado o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense – contudo, em Londres, pois seu fundador, Hipólito José da Costa, era contrário ao governo de Dom João VI, que transferiu o centro de seu governo para o Brasil por medo das ambições de Napoleão Bonaparte na Península Ibérica. O Brasil obteve sua independência em 1822; dali em diante, a imprensa nacional poderia prosperar em suas próprias terras.

O período marcado pela retirada dos árabes da Andaluzia e pela ocupação da América Latina por Portugal e Espanha, assim como pela submissão do mundo árabe ao domínio otomano, desde 1516, conteve em si grandes mudanças demográficas e culturais. Entre as tais, migrações que partiram da Europa, Ásia e África rumo ao Novo Mundo. Os árabes foram pioneiros, como se demonstra pelos documentos históricos de diversos jornais impressos em São Paulo no século XIX, como o periódico Al-Asma’i, cuja primeira edição foi publicada em 1898. São Paulo ainda guarda os arquivos destes e outros jornais.

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Não obstante, Ligia Vaitroni, assistente administrativa do Gabinete de Formação Técnica do Arquivo Público, e seu colega José Roberto confirmam que o acervo de publicações árabes preservadas no Rio de Janeiro é ainda maior, talvez porque a cidade fora, até a década de 1960, capital do país. Vaitroni diz que o arquivo é parte importante da memória e da história do Brasil. Até hoje, são feitas doações de jornais antigos ao acervo paulista e nacional. Os profissionais agem para arquivá-los, mas sofrem com dificuldades de tradução e organização bibliográfica, dada árdua pesquisa para classificá-los por data e local de emissão.

Os arquivos também contêm uma série de jornais árabes publicados fora do Brasil, como Lisan al-Arab, de Alexandria, impresso até 1895; Lebanon, cuja primeira edição chegou às bancas em 1891; e Lisan al-Hal, também de Beirute, impresso por mais de trinta anos, com exemplares datados de 1896. Há ainda o jornal Kawbat America (“Planeta América), editado de Nova York e distribuído em diversos países, dentre os quais, o Brasil, desde 1895.

A emissão de publicações árabes no Brasil coincidiu com a dos primeiros jornais propriamente brasileiros. Além disso, ocorreu em um momento histórico no qual o mundo árabe sofria com múltiplas ocupações, de modo a documentar datas e detalhes desta etapa política distinta. O trabalho dos arquivistas e pesquisadores é peneirar eventuais distorções para estudar o material em mãos. A densa e abundante publicação desses jornais no exterior sugere que o espaço para liberdade sob os regimes ocupantes era estreito e que as terras estrangeiras lhes garantiam, em contrapartida, alguma independência e objetividade, o que os qualifica como referência histórica a ser tomada em consideração.

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Artigo publicado originalmente em árabe pela rede Instituto de Mídia Al Jazeera 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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