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Os atos terroristas em Brasília: uma encruzilhada de relações

Bolsonaristas invadem e vandalizam a Praça dos Três Poderes em Brasília, Distrito Federal, 8 de janeiro de 2023 [Marcelo Camargo/Agência Brasil]

Essa semana eu tinha me programado para escrever sobre a retomada da relação do Brasil com a Palestina, buscando articular a entrevista do chanceler palestino, Riad Al-Maliki, ao Correio Braziliense, na qual afirmou ter ouvido do presidente Lula que o “Brasil voltará a se posicionar em favor dos palestinos”, e o fato de, nesta última semana, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) ter emitido uma nota condenando as ações de Israel na Palestina. Então, os possíveis desdobramentos desse realinhamento. Porém, decidi mudar de planos ao acompanhar na tarde deste domingo, 8 de janeiro, as “manifestações” bolsonaristas na Praça dos Três Poderes em Brasília. O que se observou foi uma tentativa alucinada de grupos minoritários, fanáticos, acelerados que tentaram desesperadamente resistir à realidade. Realidade na qual seu líder, o “capitão estrategista”, abandonou o país, as Forças Armadas “nada fizeram” e o presidente legítimo é o Luiz Inácio Lula da Silva.

Em 18 de novembro de 1889, portanto, três dias após a Proclamação da República, o jornalista Aristides Lobo publicara, no Diário Popular, a célebre frase: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”. É essa a impressão que tive ao observar a reação das pessoas ao assistirem as imagens da invasão de bolsonaristas, cheia de violência e depredação, à Praça dos Três Poderes, em frente da televisão, na tarde deste domingo: “Meu Deus, como isso está acontecendo…”. A questão é que esse evento, assim como o golpe que culminou na Proclamação da República, não possui sentido nele mesmo, fazendo assim, parte de um grande e longo processo que, em ambos os casos, culminaram na reação atônita do povo.

Diferentemente da Proclamação da República que possui origens eminentemente internas – a saber, crise econômica em razão das dívidas contraídas na Guerra do Paraguai, a crise com a Igreja Católica, o fim da escravidão etc. –, o processo que se materializou hoje possui raízes profundas em articulações internacionais. É inevitável notar as semelhanças entre este 8 de janeiro de 2023, no Brasil, com o 6 de janeiro de 2021, nos Estados Unidos, com a invasão do Capitólio. Não só pela proximidade das datas, mas também pelo roteiro das invasões. Nos Estados Unidos, a invasão orquestrada pela extrema-direita, representada na figura dos apoiadores de Donald Trump, aconteceu no dia da diplomação do atual presidente norte-americano, Joe Biden. No Brasil, uma semana após a posse do presidente eleito.

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Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos a horda de fanáticos foi insuflada por seus respectivos líderes. No caso americano, Trump, após um comício nos arredores da Casa Branca, no qual falou por cerca de 70 minutos, estimulou seus apoiadores a “lutarem com vontade”. Por consequência, turbas de apoiadores marcharam em direção ao Capitólio, a sede do Congresso americano. No caso brasileiro, Bolsonaro, desde sua derrota nas eleições de 30 de outubro, recusa-se a reconhecer o resultado do pleito e continua a dar sinais a sua base fanática sobre um possível golpe de Estado, mediante uma interpretação estapafúrdia do artigo 142 da Constituição, na qual retomaria o poder por intervenção militar.

Contudo, no cenário doméstico, diferentemente do americano, no qual o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro conseguiu aparelhar boa parte das instituições estatais, boa parte de seus apoiadores saíram ilesos – ao menos até então. Assim, muitos ensaios que precederam essa hecatombe foram executados e não foram punidos com a severidade adequada, como por exemplo: os atos de violência em razão da prisão, no dia 13 dezembro de 2022, do suposto líder indígena José Acácio Tserere Xavante, apoiador de Bolsonaro; os acampamentos de fanáticos em frente a quartéis militares; a obstrução de vias federais; e a agressão de bolsonaristas a civis em todo o país após a derrota das eleições, como o seguinte caso em São Paulo.

Apesar das diferenças apresentadas, en passant, que serão aprofundadas em artigos posteriores, em ambos os casos a mídia tradicional prestou um desserviço ao relativizar atos e manifestações que precederam as invasões ao centro do poder. A mídia, tanto nacional quanto internacional, serve às elites e, por diversas ocasiões, menosprezou e minimizou o potencial destrutivo dessas hordas fanatizadas. No caso brasileiro, os jornais apontavam uma tendência de desmobilização dos acampamentos após a posse do presidente Lula no dia 1º de janeiro, exemplificada pela matéria do Correio Braziliense. Porém, o que pode-se notar foi uma rearranjo de forças dentro do núcleo bolsonarista a fim de dar uma “última cartada” (assim se espera), conforme apresentado nessa matéria do G1.

Contudo, não existe organização dessa proporção que se viu no domingo sem financiamento, apoio logístico e coordenação de gabinete. Bolsonaro, que está na Flórida, certamente está envolvido nisso, uma vez que afirmou a apoiadores há apenas quatro dias: “É para não desistir do Brasil, o melhor está por vir”. Porém, somente Bolsonaro e sua corja seriam incapazes de projetar algo desse tamanho sem apoio financeiro de setores cripto-conservadores no Brasil e no exterior. Hoje, no setor hoteleiro de Brasília, sobretudo nos hotéis mais caros, pôde-se observar a presença de grandes figuras do agronegócio enquanto aconteciam esses atos de vandalismo e terror na Esplanada dos Ministérios. Isso pode não ser uma simples coincidência.

O apoio internacional é flagrante ao analisar o roteiro do evento. Parece uma cópia mais bem elaborada da invasão do Capitólio: contou com mais gente, espalhou mais destruição, causou mais temor entre a sociedade. Esse apoio, no entanto, não advém apenas de setores da direita norte-americana, como forma de guerra híbrida, para enfraquecer os Estados em desenvolvimento como o Brasil, mas também é uma reação de interesses internacionais pelo realinhamento que o país começa a ensaiar em sua política externa e a volta do diálogo multilateral em assuntos importantes como direitos humanos, meio ambiente e a causa palestina.

LEIA: O governo Bolsonaro e o saldo da inserção internacional do Brasil com a Palestina (2018-2022)

O Estado brasileiro tolerou demais o avanço desse fascismo travestido de verde e amarelo. A ridicularização desses grupos não impede que eles deixem de agir para impor-nos sua visão de mundo. Não se pode mais tolerar a insistência de atos antidemocráticos em frente a quartéis, nas ruas das pequenas e grandes cidades, nas capitais. É necessário dar a esses alucinados o império da lei, para lembrá-los que o país não é só deles e que não se pode fazer dele, um estado democrático de direito, a sua imagem e semelhança sem respeitar os demais grupos.

Desta feita, aguardo ansiosamente a coluna da próxima semana para que, se a normalidade for estabelecida, possamos falar sobre a tão aguardada retomada das relações do Brasil com a Palestina e o rompimento da política bolsonarista.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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