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Marrocos venceu muito mais do que a Copa do Mundo

Torcida marroquina enchem as ruas de Souq Waqif, em Doha, para assistir à disputa do terceiro lugar da Copa do Mundo FIFA, entre Marrocos e Croácia, em 17 de dezembro de 2022 [Ashraf Amra/Agência Anadolu]
Torcida marroquina enchem as ruas de Souq Waqif, em Doha, para assistir à disputa do terceiro lugar da Copa do Mundo FIFA, entre Marrocos e Croácia, em 17 de dezembro de 2022 [Ashraf Amra/Agência Anadolu]

A Copa do Mundo de 2022 foi pioneira em diversos aspectos. Começou como primeiro torneio sediado em um país árabe, o primeiro realizado no período de inverno do Hemisfério Norte e o primeiro a ter uma seleção árabe e africana nas semifinais.

Contra todas as casas de apostas, o Marrocos logrou de uma conquista histórica após derrotar, de maneira surpreendente, a equipe portuguesa da superestrela Cristiano Ronaldo, nas quartas de final do torneio.

Sem dúvida a melhor performance de uma seleção árabe na Copa do Mundo, os Leões de Atlas deram início a comemorações em toda a região do Norte da África e além, em meio a uma onda de triunfos incríveis. Ainda assim, momentos ensurdecedores da torcida atingiram decibéis sem precedentes quando jogadores da equipe marroquina estenderam a vibrante bandeira verde, branca e vermelha da Palestina no maior palco desportivo do planeta – em toda a sua glória.

Além dos tambores incessantes e das palmas sincronizadas, torcedores do Marrocos no Estádio al-Thumama em Doha exibiram faixas enormes com os dizeres “Palestina Livre” e cantaram um forte refrão de solidariedade: “Sacrificamos nosso sangue e nossa alma por ti, Palestina”.

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Um vídeo do atacante marroquino Abderrazzaq Hamdallah carregando a bandeira palestina por todo o estádio viralizou nas redes sociais, com centenas de milhares de visualizações.

Declarações poderosas de solidariedade mostraram-se eficazes para conscientizar o público da ocupação ilegal israelense na Palestina histórica, à medida que torcedores não-árabes passaram a ecoar o refrão de “Palestina Livre” durante entrevistas de televisão.

Um dos casos envolveu Harry Hatton, torcedor inglês de 23 anos, que gritou “Palestina Livre” a plenos pulmões durante uma transmissão ao vivo da televisão israelense, após a vitória do time da Inglaterra sobre Senegal por 3×0, pelas oitavas de final da Copa do Mundo. O jornalista não conseguiu esconder sua surpresa.

Durante a entrevista ao vivo, o correspondente perguntou a um grupo de torcedores se a taça estava efetivamente “voltando para a casa”, em referência aos cantos de “It’s coming home” da torcida inglesa – país de origem do futebol moderno. “É claro que está”, disse Harry, animado. “Mas mais importante: Palestina livre!”.

Outro torcedor inglês, Martin Near, apareceu na televisão com a cruz de São Jorge pintada em seu rosto e uma bandeira palestina nas mãos e reiterou: “Primeiro, o futebol está voltando para a casa. Segundo: Filisteen hora!”. Em árabe: Palestina livre!

Quem sabe, ambas as declarações de solidariedade com o povo palestino não seriam possíveis nesta mesma escala caso a seleção marroquina não abrisse caminho dentro de campo.

Após a vitória contra Portugal, o meio-campo Abdelhamid Sabiri compartilhou uma foto em seu Instagram com a bandeira palestina sobre os ombros, junto de uma única palavra: “Liberdade”. Ainda em campo, Sabiri deu entrevistas a redes de televisão internacionais sem jamais separar-se da bandeira palestina.

Na primeira Copa do Mundo da região – evento esportivo de maior audiência em todo o mundo –, ver tantas bandeiras, braçadeiras e faixas em apoio à Palestina é providencial, à medida que Israel mantém seus esforços de limpeza étnica ao criminalizar a bandeira palestina.

Ativistas palestinos tornaram-se alvos da ocupação por exibir bandeiras nacionais palestinas na cidade ocupada de Jerusalém. Israel escalou sua ofensiva para apreender bandeiras e símbolos nacionais e punir quem quer que os erga com orgulho e resiliência.

Na semana passada, soldados armados removeram uma bandeira palestina do telhado de uma escola perto de Nablus, na Cisjordânia ocupada, para substituí-la por uma bandeira de Israel.

Não é surpresa alguma, portanto, que o notório grupo de lobby sionista Advogados por Israel – Reino Unido (UKLFI) tenha protestado contra a presença da bandeira palestina dentre os atletas marroquinos e sua torcida, ao longo da Copa do Mundo do Catar de 2022.

Segundo o periódico sionista The Jewish Chronicle, o grupo de lobby acusa o Marrocos de violar o Artigo 11.2 do Código Disciplinar da Federação Internacional de Futebol (FIFA), que promove medidas punitivas a todos que usem “eventos esportivos para demonstrações de natureza não-desportiva”. Outras acusações protocolares acompanharam a indignação sionista.

Os ataques refletem, no entanto, a paranoia cada vez maior de Israel e a escala extremista de seus esforços para reprimir qualquer apoio à mera existência nacional palestina – no caso, uma simples bandeira, capaz de ameaçar toda a estrutura colonial que alicerça o Estado de Israel.

Além disso, a demonstração histórica dos jogadores marroquinos solidários à Palestina ocupada tem valor simbólico, dado que este mês marca o segundo aniversário da normalização de laços entre o regime ocupante de Israel e a monarquia estabelecida em Rabat – parte dos chamados Acordos de Abraão. O Marrocos se tornou o quarto país árabe a normalizar relações com Israel, neste contexto, após Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Sudão.

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Entretanto, entidades e partidos marroquinos – assim como a população nas ruas – rejeitam de maneira categórica a normalização e mantiveram protestos cotidianos contra a medida.

Hanan Ashrawi, ex-membro do Comitê Executivo da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), foi ao Twitter para comemorar o apoio dos jogadores e torcedores marroquinos ao povo palestino, ao reiterar a torcida recíproca dos povos árabes à estonteante equipe africana e suas conquistas sem precedentes. “Nenhuma ‘normalização’ com Israel será capaz de romper o laço entre nossos povos”, declarou Ashrawi.

A Palestina não se qualificou para a Copa do Mundo FIFA de 2022. O Marrocos perdeu sua vaga na final para a França – atual campeã –, apesar de jogar melhor durante boa parte da partida. Contudo, a Copa do Mundo no Catar se tornou uma oportunidade para encher os estádios com um mar de vermelho, verde, branco e preto, ao produzir momentos sem igual de solidariedade global à causa palestina.

No apagar das luzes da Copa do Mundo de 2022, a ocupação israelense e os líderes árabes que buscam normalizar laços com o regime de apartheid, às custas dos direitos humanos e do povo palestino, receberam uma mensagem ruidosa e eloquente: o estado ocupante jamais terá êxito em seus esforços para erradicar a Palestina e seu povo originário.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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Palestina: quatro mil anos de história
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