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A Primavera Árabe pode realmente ser uma conspiração israelense?

Tunisianos saem às ruas para o aniversário da deposição do longevo ditador Zine el Abidine Ben Ali, em Túnis, Tunísia, 14 de janeiro de 2020 [Yassine Gaidi/Agência Anadolu]
Tunisianos saem às ruas para o aniversário da deposição do longevo ditador Zine el Abidine Ben Ali, em Túnis, Tunísia, 14 de janeiro de 2020 [Yassine Gaidi/Agência Anadolu]

Desde o início da revolução tunisiana, há dez anos atrás, houve quem acusasse a onda de manifestações árabes populares de serem, na realidade, uma “conspiração americana ou israelense”. A intenção era condenar os levantes e punir duramente quem participasse por tornar-se consciente ou inconscientemente suposto agente da conspiração. É irônico que partes opostas fizeram as mesmas acusações, dado que detestam umas às outras.

Por um lado, os apoiadores do atual regime, autodenominados “eixo de moderação” – Arábia Saudita, Egito, Jordânia e estados árabes do Golfo, salvo Catar –; por outro, o chamado “eixo de resistência” – aliança política entre Irã, o regime de Bashar al-Assad na Síria e o movimento libanês Hezbollah.

Há um contexto histórico para o desenvolvimento das posturas políticas de ambos os lados, que deve ser considerado. Por exemplo, o primeiro eixo vê protestos populares com desconfiança e os repudia, pois de fato ameaçam a manutenção no poder de aliados regionais. Além de perder a intimidade com regimes amistosos, houve um receio generalizado de que as revoluções pudessem espalhar-se para os países “moderados” – isto é, aliados dos Estados Unidos, por exemplo, visto que o levante egípcio incitou apoio do governo americano de Barack Obama ao então ditador Hosni Mubarak, para não condená-lo ao mesmo destino de Zine el Abidine Ben Ali, deposto na Tunísia.

De modo bastante hipócrita, enquanto a imprensa favorável ao regime dos estados “moderados” promovia a ideia de “conspiração israelense”, supostamente com o intuito de dividir países inteiros via revoluções, suas equipes diplomáticas coordenavam com Israel a pressão a ser exercida em Washington e outras capitais ocidentais, a fim de reunir apoio efetivo ao governo Mubarak e seus semelhantes. Israel não escondeu seu apoio ao ditador egípcio e a posição das capitais árabes “moderadas” também ficou clara em termos de condenação das revoluções populares, ao descrevê-las como “sabotagem”.

Então, como é possível acreditar nas alegações feitas pelo “eixo de moderação”, de que as revoluções populares foram armadas por Israel, dado uma posição clara e documentada dos líderes israelenses? Devemos aceitar que Israel enviava diplomatas em apoio a Mubarak justamente para incitar o êxito da conspiração?

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O “eixo de resistência” e seus apoiadores, por outro, declararam apoio ao início da Primavera Árabe, ao considerá-la uma revolução espontânea contra regimes conhecidos pela normalização com a ocupação israelense e “subserviência ao projeto imperialista”. No topo desta coalizão, o Irã anunciou a mesma posição, quando o Supremo Líder Ali Khamenei descreveu os levantes como extensão direta da Revolução Islâmica de 1979, em seu país.

Entretanto, quando a Primavera Árabe chegou à Síria, as atitudes começaram a mudar e a oposição a Bashar al-Assad foi logo vista como conspiração “israelense, americana, cósmica” para prejudicar a suposta “resistência”. Todos que apoiaram o levante democrático na Síria foram acusados de participar de um complô. Porém, vale questionar: Israel de fato apoiou a revolução popular na Síria?

Uma análise de declarações oficiais feitas por políticos e militares israelenses, além de estudos e pesquisas produzidos por instituições locais, logo após o início da revolução síria, confirmam que Tel Aviv não ficou nada feliz com a mobilização contra o regime de Assad.

Não tomo como base aqui as alegações de alguns partidos pró-revolução, que mantêm a convicção de que a “hostilidade” de Assad contra a ocupação é meramente encenada. Tais explanações não são muito melhores do que as teorias conspiratórias de participação sionista. Veja o que disseram de verdade os próprios israelenses.

Líderes da ocupação não pareciam ansiosos em apoiar qualquer revolução na Síria, ao adotar expressamente uma política de “antes o diabo conhecido do que desconhecido”. O regime de Assad sempre foi uma continuidade do governo de seu falecido pai, Hafez al-Assad, e é bastante previsível no que se refere às “disputas” com Israel. De fato, o estado sionista acostumou-se com a conjuntura síria e sabe muito bem como lidar com a situação. Tel Aviv já não podia prever quais políticas um governo pós-Assad efetivamente tomaria.

Além disso, Tel Aviv tem absoluta ciência do absoluto apoio do povo árabe à causa palestina e seu repúdio à ocupação israelense e ao próprio projeto sionista. Portanto, teme genuinamente que eleições democráticas na Síria e outros países possam produzir um movimento popular com mandato legítimo para conceder apoio ao povo palestino. Tais receios são justificados pela ascensão de movimentos islâmicos nas eleições do Egito e da Palestina.

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Sobretudo, Israel não quer conviver com qualquer democracia exitosa no mundo árabe, pois prejudicaria sua própria narrativa, pela qual alega ser a “única democracia do Oriente Médio”. O estado ocupante utiliza essa narrativa para angariar apoio no Ocidente, em termos de opinião pública, espaço acadêmico e imprensa, além do suporte consolidado por vias governamentais.

É por isso que Israel teme a revolução Síria, jamais a apoiou e jamais defendeu qualquer aspecto da oposição a Assad. Ao contrário, prefere enxergar a situação no país vizinho como um avanço em direção ao desmantelamento do estado e uma forma de enfraquecer inimigos estrangeiros – o regime e seus aliados, por um lado; a oposição e forças populares, por outro. Infelizmente, devido à violenta repressão do regime de Assad a protestos pacíficos que reivindicavam reformas democráticas, além da interferência regional ao longo da guerra, a meta israelense foi plenamente acatada.

Mais adiante, no tempo presente, qual a postura de Israel sobre os países da Primavera Árabe? Primeiro, apoia o regime militar de Abdel Fattah el-Sisi, que representa a derrota da revolução no Egito; em seguida, apoia a ofensiva do general renegado Khalifa Haftar, agente por procuração para instituir a contrarrevolução na Líbia. Israel teme qualquer estabilidade no Iêmen ou transformação democrática consistente na Tunísia e claramente serve ao campo contrarrevolucionário – ou “eixo de moderação” –, ao manter-se hostil às revoluções árabes por razões absolutamente próprias.

A teia geopolítica resultou em dez anos de conjuntura a favor de Israel. Contudo, as disputas no mundo árabe, entre a população comum, que busca liberdade e dignidade, e as elites minoritárias no governo, cuja legitimidade provém de Washington e Tel Aviv, continuam.

O que mais teme a ocupação israelense é justamente a vitória dos povos árabes, pois todos preservam o apoio à Palestina desde antes das revoluções e continuarão a fazê-lo, uma vez vitoriosos. Contudo, antes de serem capazes de traduzir em prática seu apoio aos palestinos, é preciso solucionar sua luta contra a tirania em seus próprios países.

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Este artigo foi publicado em árabe pela rede Arabi21, em 13 de janeiro de 2021; então, traduzido e editado pelo MEMO em 14 de janeiro de 2021

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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