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Libanesa que ‘roubou’ sua poupança para tratar da irmã com câncer nega ser criminosa

Sali Hafiz, jovem libanesa que “assaltou” um banco em Beirute com uma arma de brinquedo, em 14 de setembro de 2022, e saiu do local com alguns milhares de dólares de sua própria poupança, destinados ao tratamento médico de sua irmã, meses antes do episódio, em 23 de maio de 2022 [Anwar Amro/AFP via Getty Images]

Procurada pelas autoridades após constranger uma instituição bancária a liberar suas próprias economias, com uma arma de brinquedo, destinadas ao tratamento oncológico de sua irmã, a cidadã libanesa Sali Hafiz – designer de interiores, de 28 anos – nega todo e qualquer eventual rótulo de criminosa.

“Vivemos em um país de mafiosos. Se não agirmos como os lobos, seremos devorados”, insistiu Sali em entrevista concedida à agência Reuters, junto de uma estrada de terra em algum lugar desconhecido do vale do Bekaa, no leste empobrecido do Líbano – onde permanece escondida.

Sali Hafiz “assaltou” uma agência do Banco BLOM na semana passada, para sacar US$13 mil da poupança de sua irmã, congelados pelas restrições de capital instituídas do dia para a noite por bancos comerciais do país, em 2019 – cuja constitucionalidade continua em aberto, sem jamais serem ratificadas por lei.

Não obstante, os vídeos dramáticos do episódio – no qual Sali engatilha uma arma de brinquedo sobre o caixa do banco e ordena que funcionários lhe entreguem o dinheiro – transformaram a jovem libanesa em uma espécie de heroína folclórica em um país no qual centenas de milhares de pessoas são privadas de acessar suas próprias economias.

Cada vez mais contistas tomam medidas extremas para sobreviver, exasperados pelos três anos de implosão financeira alimentada pela inação das autoridades – o que levou o Banco Mundial a descrever o colapso como um incidente “orquestrado pela elite nacional”.

Sali foi a primeira de ao menos sete contistas que “assaltaram” agências bancárias somente na última semana. Com efeito, as instituições financeiras decidiram fechar as portas, sob pretexto de segurança, e voltaram a solicitar proteção do governo.

LEIA: Bancos no Líbano fecham novamente em meio a ‘assaltos’ de seus clientes

George Haj, membro do Sindicato dos Funcionários de Banco, alega que os “assaltos” refletem uma indignação que deveria ser direcionada ao estado. Segundo a entidade da categoria, cerca de seis mil bancários perderam seu emprego desde o início do fenômeno.

Autoridades condenaram os “assaltos” e prometeram uma resposta de segurança pública.

Os contistas, no entanto, apontam que os banqueiros e acionistas enriqueceram ao impor juros altíssimos para emprestar recursos básicos, ao favorecer o lucro das corporações bancárias em detrimento das necessidades da população e mesmo do plano de resgate proposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).

O governo em Beirute afirma trabalhar arduamente para implementar as reformas estipuladas pelo FMI e assegurar um resgate de até US$3 bilhões apenas neste ano.

‘São todos cúmplices’

A série de invasões a agências bancárias recebeu apoio popular generalizado, incluindo pessoas que se reúnem em frente aos bancos quando tomam conhecimento de um novo “assalto”, para torcer a favor de seus concidadãos.

“Talvez, eles me enxerguem como heroína porque fui a primeira mulher a agir dessa maneira em nossa sociedade patriarcal, que busca silenciar a voz das mulheres”, comentou Sali, ao reiterar que jamais teve a intenção de ferir ninguém, sobretudo os trabalhadores. Entretanto, cansou-se da indiferença das autoridades e das elites empresariais.

“São todos cúmplices”, destacou Sali. “Querem nos roubar e nos deixar morrer devagar”.

Quando sua irmã começou a perder a esperança de arcar com seu oneroso tratamento médico, para reaver a mobilidade e a fala prejudicadas por um câncer no cérebro, logo após o banco negar o saque dos recursos, Hafiz decidiu agir.

Em comunicado, o Banco BLOM alegou que sua agência buscou colaborar com a solicitação das economias particulares de Sali e sua irmã, mas que solicitou documentações para tanto, como faz com todos os clientes que requerem exceção humanitária a controles informais. Em outras palavras, buscou se evadir da responsabilidade e projetá-la aos contistas.

O Líbano é uma longa história de desastre e crise – Charge [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Sali voltou dois dias depois à mesma agência, como uma arma de brinquedo que havia visto na mão de seus sobrinhos, além de um pouco de combustível misturado com água que derramou sobre um funcionário do banco.

Antes do ataque, Sali assistiu a popular série egípcia de comédia Irhab w Kabab – ou “Terrorista ou Kebab” –, na qual um cidadão frustrado com a corrupção do governo invade uma repartição pública e exige kebabs dos reféns, devido à inflação da carne.

Sali conseguiu sacar US$13 mil de um total de US$20 mil – o suficiente para cobrir os custos de viagem de sua irmã e cerca de um mês de tratamento. Na ocasião, a jovem libanesa assegurou que um recibo fosse devidamente assinado para que não fosse acusada de roubo.

Para realizar sua fuga, Sali postou no Facebook que estava no aeroporto a caminho de Istambul. No entanto, fugiu para a casa, disfarçou-se com um lenço e um cachecol e pôs algumas roupas sobre a barriga para parecer grávida.

Segundo seu relato, o policial que bateu à sua porta “temeu que eu desse à luz ali mesmo, me acompanhou escada abaixo em frente de umas 60 ou 70 pessoas, que me desejaram sorte com o nascimento”. “Parecia um filme”, concluiu Sali Hafiz – agora foragida.

Lei da Selva

Dois dos amigos de Sali que a acompanharam no “assalto” foram presos logo a seguir, acusados de ameaçar os funcionários do banco e sequestrá-los em busca de um resgate. Sali prometeu se render caso juízes encerrem sua greve, que interrompeu processos legais e deixou prisioneiros sem qualquer indiciamento perecendo na cadeia.

As Forças de Segurança Interna do Líbano, porém, mantiveram silêncio até então.

LEIA: Libaneses não podem sacar dinheiro em bancos desde o final de 2019

Abdallah al-Saii, conhecido de Sali, que também “assaltou” um banco em janeiro, para resgatar cerca de US$50 mil de sua poupança, alertou que o fenômeno está longe de acabar. “As coisas vão piorar antes de melhorar”, observou Abdallah, ao tragar tranquilamente seu cigarro em sua loja de conveniência no vale do Bekaa.

“Quando o estado não faz nada por você, quando sequer pode lhe dar o mínimo de esperança sobre que está porvir, então é assim: vivemos sob a lei da selva”.

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