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Poder e influência saudita são desperdiçados em um único homem

Mohammed bin Salman al-Saud, príncipe herdeiro e governante de facto da Arábia Saudita, em Meca, 16 de agosto de 2022 [Corte Real da Arábia Saudita/Agência Anadolu]
Mohammed bin Salman al-Saud, príncipe herdeiro e governante de facto da Arábia Saudita, em Meca, 16 de agosto de 2022 [Corte Real da Arábia Saudita/Agência Anadolu]

Levamos apenas alguns segundos para postar um tuíte. Não obstante, a uma mulher saudita, tais poucos segundos podem culminar em 45 anos de prisão – sentença que chocou a população local e a comunidade internacional. Há poucos dias, Nourah Bint Saeed al-Qahtani foi condenada pela Corte Penal Especializada da Arábia Saudita sob alegações de usar a internet para transgredir a ordem pública, ao criticar o regime em sua conta do Twitter.

A condenação de Qahtani sucede em pouco a pena de 34 anos deferida contra Salma al-Shehab, sobre quem escrevi em agosto. Expressei minha consternação sobra a degradação cada vez maior dos direitos humanos na Arábia Saudita – sobretudo os direitos das mulheres. Ademais, não há dúvidas de que tais penas foram aprovadas pessoalmente por Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro e governante de facto da monarquia.

Após visitar a Arábia Saudita em diversas ocasiões, posso dizer com confiança que tais sentenças são repudiadas pela população, cada vez mais exausta com a imprensa que adota vereditos abusivos como justificativa para difamar e demonizar seus concidadãos comuns. Não se engane, tudo isso ocorre sob diretrizes de um único homem.

Bin Salman se regozija com as manchetes chocantes porque não há no mundo contemporâneo um único líder preparado para enfrentá-lo devidamente. Mesmo o Presidente dos Estados Unidos Joe Biden – cuja campanha descreveu a monarquia como “estado pária”, após o brutal assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, em 2018 – engoliu suas palavras e capitulou ao petulante príncipe diante da imprensa global, ao visitar o reino há cerca de um mês.

Biden – rotulado o homem mais poderoso do mundo – rolou pelo tapete vermelho estendido por bin Salman como um filhote ansioso a agradar os cortesãos de Jeddah. A imagem foi descrita sob um profundo sentimento de indignação e humilhação por eleitores americanos e não há dúvidas de que pode favorecer o retorno de Donald Trump ou o advento de outros populistas reacionários nas próximas eleições presidenciais. Analistas mais pragmáticos insistiram que Biden escolheu capitular em favor de todos os líderes ocidentais.

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Mas o que isso tem a ver com as penas deferidas contra Nourah Bint Saeed al-Qahtani e Salma al-Shehab? Bin Salman desafia o rechaço ocidental porque sabe muito bem que, enquanto mantiver o fluxo de petróleo saudita, permanecerá intocável e onipotente, sobretudo em meio à crise enérgica decorrente da invasão russa na Ucrânia, que transferiu a Vladimir Putin a designação de pária. A trágica verdade é que direitos humanos, paz e estabilidade, de longe, não são prioridade quando comparados às remessas de petróleo ao Ocidente.

“Sob a liderança de bin Salman, nos acostumamos a um ódio concreto e unânime contra tudo que é saudita”, relatou-me um amigo radicado na monarquia, em condição de anonimato. “Dentre nós, a vasta maioria está chocada com as sentenças deferidas contra críticas inofensivas em blogs, tuítes e e-mails e repudia tais punições extremas e arbitrárias; no entanto, sente que não pode fazer nada”. As penitenciárias sauditas estão lotadas com críticos de bin Salman; as pessoas temem falar abertamente por telefone ou e-mail e certamente evitam quaisquer comentários nas redes sociais. A maioria dos cidadãos sauditas usa WhatsApp ou Telegram para expressar receios criptografados ou esperam viajar ao exterior.

“Lamentavelmente, no Ocidente, o ódio a todos os sauditas cresce cada vez mais por causa das ações de um único homem que goza de superioridade. Em casa, queremos apenas justiça e liberdade, com base em preceitos islâmicos, dentre os quais, a condução de julgamentos justos. O que hoje é feito em nosso nome, como cidadãos sauditas, vai contra o islamismo e nos converte em monstros aos olhos de jornalistas incapazes de distinguir entre as brutais ações de nosso governante e os verdadeiros anseios da população”.

Outro saudita que deixou o país me disse que as pessoas sofreram com duas décadas de difamação após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, devido às ações de poucos em nome do fundamentalismo. Segundo esta fonte, o mesmo acontece agora por causa das medidas arbitrárias e abusivas promulgadas por bin Salman contra eventuais críticos.

“No entanto, tenha certeza: o que ocorreu a al-Qahtani e al-Shehab nada tem a ver com um punhado de tuítes. Essa foi uma mensagem clara ao restante do mundo. Tudo que acontece na Arábia Saudita tem diversas camadas e contém inúmeras mensagens às mais distintas audiências. Bin Salman quis alertar ao mundo que pare de interferir em seus interesses, deixe de dar sermão sobre direitos humanos e não se esqueça de que o petróleo pode acabar a qualquer momento, sobretudo agora que os insumos russos estão fora de cogitação por causa das sanções internacionais”.

Bin Salman pode ser psicopata, prosseguiu meu amigo no exílio, mas não é estúpido. “Ele sabe que se trata de uma série de vantagens e sabe o que pode fazer para amplificá-las. Os resultados são hediondos e bin Salman brinca com todos os nossos medos”.

Minha fonte saudita teme revelar sua identidade devido a provável represália contra aqueles que permanecem no país. Quem não temeria?

O que os casos de al-Qahtani e al-Shehab demonstram à população saudita e ao mundo externo é que bin Salman não pretende tolerar a mínima dissidência. Quem detinha esperanças de que a visita de Biden assinalasse o fim da repressão política, logo foi rematado pelas sentenças obscenas impostas às duas mulheres.

O que o príncipe fará a seguir? É uma enorme pergunta. Certamente, bin Salman se cansou de prometer reformas e avanços substanciais às mulheres, após lhes permitir que dirijam e assumam um ou outro cargo de maior destaque no mercado de trabalho. É evidente agora, não obstante, que o príncipe simplesmente não se importa com prisioneiros políticos e direitos humanos e ainda menos com o processo de demonização de seu próprio povo como espécie de responsável coletivo – designação absolutamente injusta – pela brutal repressão ratificada pelos tribunais sauditas.

Bin Salman está em posição de tornar o mundo muito melhor: por exemplo, ao pressionar por uma solução duradoura à ocupação na Palestina; ao buscar justiça à população comum que sofre nas mãos de déspotas em todo o Oriente Médio e Norte da África; ao defender os muçulmanos da China e da Índia sob perseguição. Todavia, prefere fazer o contrário. O poder e a influência global da Arábia Saudita são desperdiçados em seu nome – e o príncipe é ele próprio um desperdício de espaço. Bin Salman prefere agredir mulheres que contrapõe, mesmo brevemente, seu papel de autoridade.

Aqueles a seu redor deveriam advertí-lo: basta operar de maneira construtiva e seu papel na história será garantido. Ao contrário, prefere encarcerar jovens mulheres por décadas e décadas, por usar as redes sociais para desaprová-lo. Se não fosse estúpido, como afirma meu amigo, ouviria seu chamado.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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