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Heard vs. Depp e as consequências para os direitos das mulheres

Amber Heard durante julgamento por difamação contra Johnny Depp, na Corte Distrital de Fairfax, Estados Unidos, 27 de maio de 2022 [Steve Helber/AFP/Getty Images]
Amber Heard durante julgamento por difamação contra Johnny Depp, na Corte Distrital de Fairfax, Estados Unidos, 27 de maio de 2022 [Steve Helber/AFP/Getty Images]

Semanas se passaram desde a sentença emitida durante o julgamento de Amber Heard e Johnny Depp. Não obstante, as consequências do processo sobre diversas matérias serão duradouras, como apontam especialistas.O que aconteceu no tribunal?

Em 2018, Amber Heard publicou seu agora infame editorial no jornal The Washington Post, no qual relatou vivenciar violência doméstica desde sua infância até a vida adulta. No ano seguinte, Johnny Depp registrou um processo por difamação contra a ex-esposa, ao alegar ser vítima e não agressor. As dinâmicas e controvérsias imediatas afetaram sua carreira. Depp perdeu contratos em potencial e seu papel como antagonista da franquia Animais Fantásticos — spin-off da série Harry Potter. A disputa alcançou seu clímax em 11 de abril de 2022, em meio a um julgamento de seis semanas no Condado de Fairfax, no estado americano da Virgínia, transmitido ao vivo pela televisão e por diversos canais do YouTube. Ambos os lados apresentaram evidências de maus tratos. Em 1° de junho de 2022, a banca de jurados condenou Heard a indenizar o ex-marido em US$15 milhões. O mesmo júri condenou Depp a indenizá-la em US$2 milhões, após os advogados de Heard registrarem um processo para responder às acusações.

O que aconteceu fora do tribunal?

É importante compreender que se trata de um julgamento por difamação, isto é, referente a uma declaração que fere de alguma maneira a reputação de um terceiro.

Ambos os lados alegaram ser vítima durante o processo. Depp acusou a ex-esposa de agressão física e intimidação. Heard acusou o ex-marido de violência física, verbal e sexual. As plataformas nas redes sociais se encheram de memes; em maioria, representando Depp como vítima, enquanto retratavam Heard como “manipuladora”. Alguns usuários aproveitaram o caso para tentar degradar o movimento MeToo, com hashtags como #MePoo e outras mensagens ultrajantes. De fato, o julgamento público de Heard parece ter aberto os portões do inferno contra as mulheres. As reações online confirmam uma desconfortável regressão na dignidade feminina, ao passo que um dilúvio de declarações de ódio se propagou contra alguém que decidiu meramente reportar experiências próprias.

Por que Heard recebe tamanho ódio? O que isso diz sobre nossa sociedade e sua aferição atual sobre os direitos e as conquistas das mulheres?

Johnny Depp durante julgamento por difamação contra Amber Heard, na Corte Distrital de Fairfax, Estados Unidos, 25 de maio de 2022 [Cliff Owen/Getty Images]

Johnny Depp durante julgamento por difamação contra Amber Heard, na Corte Distrital de Fairfax, Estados Unidos, 25 de maio de 2022 [Cliff Owen/Getty Images]

Um dos perigosos resultados do processo é o controverso conceito de “abuso recíproco”. Segundo especialistas, o termo é notoriamente problemático pois a violência doméstica se refere a poder e controle. Portanto, a adoção do conceito ignora, em último caso, o desequilíbrio de poder e o assédio reiterado nas relações íntimas. Em tais relacionamentos, o agressor pode manipular a vítima ao limite da reação para coagi-la a assumir o papel de eventual agressora — processo conhecido como blame-shifting. Ao acusar Heard de explorar a fortuna e o status de Depp, no entanto, seus admiradores evidenciaram o desequilíbrio de poder. Uma das partes desfruta de maior celebridade do que a outra; uma das partes tem mais reconhecimento em sua carreira, com três indicações ao Oscar, entre outras premiações.

Outra tendência inquietante é a ascensão da misoginia online após o processo. Moira Donegan escreveu: “Os fãs de Depp não parecem negar as acusações de violência doméstica contra Heard, mas sim aplaudi-la. ‘Ele poderia ter te matado’, disse um vídeo viral no TikTok em apoio ao ator. ‘Ele tinha o direito’, acrescentou. A postagem obteve mais de 220 mil likes … O julgamento de Heard parece o cúmulo da resposta pejorativa de nossa cultura à violência de gênero. Quem sabe, a reação da misoginia ganhou impulso novamente após breve recuo. Recentemente, as mulheres se recusaram em massa a manter os segredos de seus companheiros e parentes ou silenciar-se sobre suas próprias vidas. No entanto, um ressurgimento do sexismo, do virulento assédio nas redes sociais e de ameaças judiciais parece impeli-las novamente ao sigilo — por meio da força”.

Outro aspecto igualmente preocupante é o estereótipo da vítima. A violência — sobretudo a violência doméstica — é reiteradamente justificada por estereótipos, que servem como alternativa ao caráter do indivíduo ou à realidade da situação.  De acordo com Zanita E. Fenton, professora de direito da Universidade de Princeton, qualquer mulher que não cumpra determinadas expectativas — por exemplo, um papel tradicional de mãe ou esposa — não representa, aos olhos da cultura machista, uma “mulher de verdade” e é então subjugada a um retrato de degeneração. Neste viés, enquanto a “boa menina” merece proteção, mulheres não-submissas merecem castigo. Dada a própria denúncia como sinal de rebeldia, Heard não poderia ser considerada vítima genuína de violência doméstica.

O que diz isso sobre o futuro?

O julgamento teve dois lados. O primeiro acusou Amber Heard de mentir, manipular e explorar seu caráter como mulher para angariar empatia do público. Sob este viés, Heard merecia a sentença e a designação de “agressora”, efetivamente responsável pela derrocada na carreira de seu ex-marido. O lado oposto insiste que o veredito representa um equívoco, dado que Heard seria a verdadeira vítima na dinâmica de abuso, de modo que a equipe de advogados de Johnny Depp teria recorrido aos problemas psicológicos da atriz para adquirir vantagem, sobretudo aos olhos da opinião pública. Além disso, o veredito pode instigar homens abusivos a adotar o processo legal como mecanismo para exercer poder sobre as mulheres.

Muitos apontam que o direito convencional é usado como ferramenta para perpetuar uma hierarquia de gênero. No entanto, este processo — e aqueles a quem poderá inspirar — complexifica ainda mais o debate sobre o sexismo sistêmico no sistema judiciário ocidental. Sob a lógica presente, o agressor não concede à vítima alternativa senão responder ou render-se. Caso assuma a primeira rota, a vítima torna-se então “agressora”; caso desista, a violência perde sua gravidade aos olhos de terceiros. Em todo caso, a vítima é privada até mesmo de seu caráter de vítima. Como se não bastasse, todos assistimos ao julgamento como peça de entretenimento, em meio a memes e piadas. O processo em si foi bastante gráfico em relatos de uso de drogas, agressão e mesmo estupro. A pressão consistente contra Heard como supostamente alheia à imagem de vítima forneceu ao público informações incorretas sobre o que representa ser vítima, sobre noções de consentimento, impunidade e outras.

Jessica Taylor expressou receio diante da resposta conferida ao julgamento nas redes sociais, ao descrever o caso como “amálgama de misoginia e desconfiança global na palavra de mulheres que relatam abuso em qualquer contexto”. Para Taylor, a alcunha de “Amber” pode ser adotada agora em tom de sarcasmo por ex-companheiros ou familiares, a fim de desacreditar as mulheres — “Amber” tornou-se tragicamente sinônimo de “mentirosa”.

O julgamento afeta de maneira universal as vítimas de violência doméstica. Especialistas temem o impacto negativo sobre as mulheres de modo a sufocá-las novamente ao silêncio, em torno de uma pauta já bastante delicada perante o debate público. Ruth Glenn, membro da Coalizão Nacional contra a Violência Doméstica, observa que os memes e as hashtags degradam expressamente a vítima. O caso demonstrou quão árduo é para vítimas de violência doméstica denunciar seus agressores, em meio a contundente adversidade.

O processo também representa um momento de inflexão ao movimento MeToo. O que deveria ser uma vitória da campanha de denúncias contra a violência de gênero tornou-se um instrumento posterior para punir as vítimas. Apesar do ódio nas redes sociais ser direcionado a Heard, todas as mulheres são aparentemente o alvo — sobretudo aquelas que denunciaram abusos durante a primeira onda do movimento MeToo. A hipótese de Heard mentir e recorrer à campanha para angariar vantagem própria é provavelmente a razão por que muitos articulistas e pesquisadores descreveram a sentença como “a morte do movimento MeToo”. Porém, utilizar o veredito como muleta para difamar as mulheres como um todo é uma desgraça absoluta — sobretudo aquelas que reportam abusos reiterados que, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), uma em cada três mulheres vivenciam.

Em suma, há um vasto caminho ainda a percorrer no que concerne os direitos das mulheres e a desigualdade de gênero. É preciso reformar a resposta de nossa cultura a casos de violência, incluindo na maneira como ouvimos a vítima, sobretudo nas plataformas online. O julgamento de Amber Heard contra Johnny Depp é prova cabal dessa demanda.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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