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Após 30 dias de viagem marítima do Líbano ao Brasil, a verdadeira jornada de Mohamad Mourad começou

O ex-presidente brasileiro Lula da Silva e sua esposa, hoje falecida, com o presidente da Associação Beneficente Islâmica Mohamad Nassib Mourad e sua esposa. [Arquivo pessoal]

A migração existe desde os tempos antigos, muitas vezes uma escolha difícil para as pessoas, individual e coletivamente, por várias razões. Historicamente, as pessoas migraram para encontrar áreas para cultivar árvores e plantas e criar gado, buscando lugares onde água e grama estivessem prontamente disponíveis. Com o passar do tempo, as razões para a migração começaram a mudar.

Alguns migram para acompanhar o processo de desenvolvimento industrial e tecnológico. Alguns buscam segurança e estabilidade, evitando guerras e conflitos. Alguns procuram melhorar as condições de vida, procurando um lar onde prevaleça a justiça, as oportunidades e a igualdade.

Muitos deixam os países onde nasceram e foram criados por outros, deixando para trás suas terras, memórias e famílias para viajar para novos países onde a cultura, os costumes e as tradições sociais diferem dos seus. Eles terão que se adaptar para viver em sua nova sociedade, especialmente se sua residência for permanente. Em muitos casos, eles são bem-sucedidos e suas histórias de sucesso inspiram novas gerações que aspiram seguir o mesmo caminho. Nossa história de hoje é sobre Mohamad Nassib Mourad, que imigrou do Líbano ainda jovem por causa das difíceis condições da região na época.

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Infância no Líbano

Mohamad Nassib Murad, “Abu Faisal”, nasceu em 1938 na região ocidental de Bekaa, durante o colonialismo francês (1920-1943). Cresceu em uma comunidade agrícola simples e, desde cedo, começou a trabalhar nas terras agrícolas de seu pai. A primeira tragédia em sua vida foi a morte de seu pai quando ele era um menino de quatorze anos de idade. Abu Faisal compartilhou com o coração pesado: “Depois da morte de meu pai, minha mãe teve que se levantar às três da manhã para começar a trabalhar nos campos próximos para sustentar a família. Minha primeira decisão foi a de uma criança que abriu os olhos um dia e não encontrou um sustento para sua família foi trabalhar muito jovem para sustentá-la, em vez de minha mãe, que não aguentava tanto cansaço.” Abu Faisal trabalhou por um período no campo agrícola, quando de repente a ideia de imigrar para o Brasil lhe ocorreu.

Sheikh Ikrima Sabri na Mesquita do Brasil, a convite da Associação Beneficente Islâmica, em 2002 [Arquivo pessoal]

Imigração para o Brasil

Abu Faisal relembrou com lágrimas nos olhos o momento em que pisou no barco nas costas do Líbano para iniciar sua jornada de migração. “Por favor volte!” sua mãe implorou. Mas com muita determinação e um desejo desenfreado de sucesso, decidiu embarcar nesta aventura, como muitos da sua geração que sofreram circunstâncias de vida difíceis. Abu Faisal nos contou sobre sua jornada a bordo do navio, que durou 30 dias, e seu sentimento de alienação e medo do desconhecido. Ele finalmente chegou ao Porto de Santos, onde seus parentes o receberam. Abu Faisal não sabia na época por quanto tempo sua jornada se estenderia.

Abu Faisal contou: “Minha irmã e meus primos me receberam no Porto de Santos, e desde que pus os pés nas terras do porto, minha jornada real começou, precisando aprender uma nova língua e cultura. Comecei a trabalhar como vendedor ambulante, carregando produtos nos ombros e batendo nas portas para vendê-los como milhares de imigrantes árabes que começaram a vida no Brasil da mesma forma.” Abu Faisal acrescentou que era um trabalho árduo, mas era a única maneira de ganhar a vida.

Depois de vários anos, Abu Faisal começou a se adaptar à vida no Brasil e suas condições melhoraram, pouco a pouco. Trabalhou com grandes lojas de móveis até abrir a sua própria. Seu comércio se expandiu com o tempo e se tornou um sucesso retumbante. Atualmente, ele possui 32 grandes lojas de móveis e um portfólio imobiliário que abrange Brasil, Síria e Líbano. Abu Faisal mencionou seu retorno ao Líbano pela primeira vez após 16 anos e ficou surpreso com a contínua imigração de jovens. Ele estava ansioso para enviar seus filhos anualmente ao Líbano para aprender a língua, costumes e tradições e fortalecer sua conexão com sua terra natal.

Recorte de revista com uma das homenagens concedidas a Mohamad Nassib Mourad por diversas instituições brasileiras. [Arquivo pessoal]

Nacionalismo árabe e Gamal Abdel Nasser

Abu Faisal pertence a uma geração que acreditava no nacionalismo árabe; a uma geração que clamava pela unidade para alcançar a libertação e a independência, eliminar a dependência, construir exércitos fortes e alcançar um renascimento científico que superasse as forças do colonialismo ocidental, num momento em que o mundo árabe vivia uma fase de contradições e dicotomias antagônicas. Por um lado, sofreu grandes colapsos devido à ocupação externa e aos combates internos; por outro, testemunhou tentativas de restabelecer a identidade árabe.

Abu Faisal não esconde sua admiração e lealdade ao falecido presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, que foi uma inspiração para toda a sua geração e líder de um grande projeto em que as forças árabes se uniriam diante das forças coloniais para libertar a Palestina e restaurar os direitos árabes. Ele relembra com amargura a derrota da guerra de 1967, que dividiu o projeto de unidade árabe e resultou na traição e perda de mais terras árabes em favor do projeto sionista. Mas ele ainda acredita que a unidade é a única maneira de libertar a terra e restaurar os direitos. Abu Faisal nos conta uma história de quando a derrota ocorreu em 1967, em que ele e alguns de seus amigos arrecadaram uma grande quantia de dinheiro da comunidade árabe no Brasil e o enviaram com uma delegação ao Egito para para ajudar a reconstruir o estado egípcio.

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A comunidade árabe no Brasil

A comunidade árabe no Brasil constitui parte integrante do tecido social brasileiro. Este é o resultado da integração das velhas gerações de imigrantes na sociedade da diáspora. Um estudo estatístico da Câmara de Comércio Árabe Brasileira em 2020 constatou que 11,61 milhões de árabes e descendentes de árabes vivem no Brasil. É notável que a nova geração ainda preserve a identidade e costumes árabes. Abu Faisal nos disse que ele e muitos membros da comunidade trabalharam para construir instituições, centros, escolas e mesquitas islâmicas para servir as novas gerações e ensinar religião, costumes e tradições, conectando-as com suas pátrias.

O jovem Mohamad Nassib Mourad. [Arquivo]

A Sociedade Beneficente Muçulmana

Muitos imigrantes árabes buscaram construir instituições árabes no Brasil para preservar a cultura e a identidade árabe em um país caracterizado pela mistura de imigrantes. Abu Faisal nos contou sobre os grandes esforços que ele e um grupo de outros imigrantes árabes fizeram para preservar as instituições árabes e estabelecer novas para acomodar o grande número de imigrantes. Ele então se tornou presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana por alguns anos, incluindo a Mesquita do Brasil, a maior e mais antiga mesquita da América Latina, junto com a escola e o cemitério islâmicos. E trabalhou para melhorar os  serviços de educação e saúde à comunidade árabe.. A questão palestina sempre foi um fator em suas reuniões e discussões com autoridades políticas no Brasil, especialmente quando se reuniu com o ex-presidente brasileiro Lula da Silva. Abu Faisal também fundou a revista Al-Uruba, publicando artigos de imigrantes árabes.

A influência da imigração árabe no Brasil é palpável em todos os aspectos da vida. Você encontrará algum nome árabe distinto na sociedade brasileira em todos os campos. Os imigrantes árabes provaram excelência nas áreas de medicina, engenharia, economia, literatura, esportes e política. Alcançaram cargos de alto nível como parlamentares, prefeitos, governadores estaduais, deputados e até mesmo presidente do país. Michel Temer conseguiu se tornar o primeiro presidente brasileiro de origem árabe após o voto de impeachment da presidente Dilma Rousseff. A história de Mohamad Nassib Murad, “Abu Faisal”, e outros imigrantes bem-sucedidos inspirará novas gerações de imigrantes a terem sucesso e continuarem seus laços com suas terras natais. Essa é a missão de todo imigrante.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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