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Retratado em “Encanto”, o trauma do deslocamento forçado aproxima latino-americanos e palestinos

Cena do filme Encanto [Divulgação/Walt Disney Animation Studios]

A nova animação de sucesso, Encanto, bateu recordes ao tornar-se o primeiro filme da Disney a emplacar duas canções no Top 10 da Billboard Hot 100, ranking com as músicas mais ouvidas da semana. Mais do que ótimas músicas, compostas por Lin-Manuel Miranda,  e muita representatividade latina, a animação trata do trauma do deslocamento forçado causado pela violência e a resistência daqueles que precisaram reconstruir seu próprio lar.

Ambientado na Colômbia, a história do filme inspirado no realismo fantástico de Gabriel García Márquez começa quando o povo de um vilarejo é obrigado a fugir de um conflito armado. O patriarca da família principal é morto por soldados, mas sua esposa e seus três filhos são salvos por um “milagre”, que dá à família poderes mágicos e uma nova cidade protegida para a comunidade. Cinquenta anos depois, sua neta Mirabel Madrigal, a única da família sem “poderes”, descobre rachaduras na casa mágica da família e decide investigar, mas sua avó teme que cause mais destruição.

A animação retrata essa família multigeracional marcada pelo trauma do deslocamento e pelo constante medo de perder seu refúgio. “Não podemos perder nossa casa de novo”, reza a abuela Alma, uma personagem que representa as mulheres que precisaram reconstruir suas casas e proteger suas famílias da violência.

País chamado de “Israel da América Latina” por Hugo Chavez em 2008, o conflito na Colômbia é um dos mais antigos da região, passando por diversas guerras, a começar pela luta por independência. A espiral de violência o transformou no país com mais deslocamentos internos do mundo, segundo a ONU; mais de 8,3 milhões de pessoas acabaram expulsas de suas casas ao longo das seis décadas de conflito, a maioria devido à agressão de grupos armados ilegais contra civis. Em muitos casos, o deslocamento forçado foi parte de um esforço de grupos paramilitares e elites rurais para roubar terras.  A intensificação destes deslocamentos aconteceu entre 1997 e 2003, alimentados principalmente por ameaças de grupos paramilitares a comunidades rurais e pelo terror imposto aos civis por massacres e incursões.

No primeiro semestre do ano passado o deslocamento de pessoas devido à violência na Colômbia aumentou 256%, em comparação com o mesmo período de 2020. Entre janeiro e junho, 44.290 pessoas tiveram que fugir de casa, fenômeno que se aproxima dos níveis da década de 1990.

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Experiência muito semelhante à sofrida pelos palestinos, submetidos a limpeza étnica perpetrada pelo sionismo até os dias de hoje.  Em 1948, durante a Nakba – catástrofe palestina com a criação do Estado de Israel -, mais de 750 mil palestinos foram expulsos de suas terras e mais de quinhentos vilarejos foram destruídos. Em 1967, durante a Naksa, Israel ocupou o restante da Palestina histórica e expulsou mais de 400 mil palestinos de suas casas, incluindo 130 mil que já haviam perdido suas casas em 1948. A catástrofe é contínua, desde a sua criação até os dias de hoje, o Estado sionista expulsa sistematicamente o povo palestino, com o objetivo de colonizar, expandir e “desarabizar” o território.

A história da família Madrigal, que teme perder novamente sua casa, além de tratar da experiência colombiana, também assemelha-se às histórias das centenas de palestinos que vivem hoje nos territórios ocupados por Israel. Um exemplo é a recente destruição por Israel, durante um ataque noturno, de uma casa que abrigava cerca de vinte pessoas de uma família palestina em Sheikh Jarrah. A família Salhiya já havia sido expulsa de sua casa em Jerusalém Ocidental, durante a Nakba, e agora, foram agredidos, presos e despejados pela ocupação israelense.

Demolição da casa da família Sahuiya em Sheikh Jarrah [Twitter]

Centenas de palestinos lutam contra os despejos forçados em Sheikh Jarrah e outros bairros de Jerusalém Oriental, que têm a população composta em sua maioria por refugiados de 1948 que se instalaram no local legalmente durante a administração jordaniana, em acordo com a ONU e organizações de direitos humanos.  O território é o atual “alvo” da expansão sionista e essas famílias vivem há anos com ameaças, invasões e ataques de colonos israelenses, sob cumplicidade das forças da ocupação.

No ano passado, a ong israelense B’tselem apontou em um relatório como a violência contínua e sistemática praticada por colonos israelenses contra palestinos faz parte da política oficial de Israel, levando à expulsão de palestinos e aquisição de terras na Cisjordânia. “O Estado apóia e auxilia plenamente estes atos de violência, e seus agentes às vezes participam diretamente deles. Como tal, a violência dos colonos é uma forma de política governamental, auxiliada e incentivada pelas autoridades oficiais do Estado com sua participação ativa”, afirma o relatório que apresenta cinco estudos de caso ilustrativos.

“Nos testemunhos coletados como parte da pesquisa, os palestinos descrevem como essa violência mina os alicerces da vida das comunidades palestinas e diminui sua renda. Os residentes descrevem como, sem proteção, sob a pressão da violência e do medo e sem outra escolha, as comunidades palestinas abandonam ou diminuem as atividades tradicionais, como a criação de ovinos e caprinos ou plantações sazonais diversas, que lhes permitiram ter uma vida digna e viver confortavelmente por gerações”, aponta a organização. “A violência do Estado – oficial e não oficial – faz parte do regime do apartheid de Israel, que visa criar um espaço só para judeus entre o rio Jordão e o Mar Mediterrâneo.  O regime trata a terra como um recurso projetado para servir ao público judeu e, portanto, a utiliza quase exclusivamente para desenvolver e expandir as comunidades residenciais judaicas existentes e para construir novas comunidades. Ao mesmo tempo, o regime fragmenta o espaço palestino, despossui os palestinos de suas terras e os relega a viver em pequenos enclaves superpovoados”.

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O grande vilão da animação da Disney “Encanto” é justamente a violência sistêmica que traumatiza e impacta nas diferentes gerações. O filme não retrata um conflito ou momento histórico específico e o tema do deslocamento forçado ressoa na experiência compartilhada de muitos indígenas latino-americanos e palestinos, que vivenciaram e resistiram à colonização, limpeza étnica e genocidio.

Destacando e representando a experiência latino-americana (especialmente a colombiana) de resistência à colonização e violência, o novo sucesso da Disney também expõe, mesmo que involuntariamente, a convergência entre a luta palestina e a luta dos povos indígenas latino-americanos. Mesmo com elementos tradicionais colombianos, o filme pode fomentar a discussão sobre as semelhanças com o povo palestino, resiliente às “rachaduras” sionistas, que já fragmentaram toda a Palestina histórica.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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