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Cem dias de Talibã: Saem as tropas, mas o legado da ocupação precisa ser rompido

Combatentes do Talibã no topo de veículos Humvee desfilam ao longo de uma estrada para comemorar a retirada das tropas americanas do Afeganistão, em Kandahar, em 1º de setembro de 2021, após o Aquisição militar do país pelos Talibãs. [Javed Tanveer/ AFP via Getty Images]

A população afegã enfrenta uma gravíssima situação de fome, miséria e desemprego, exacerbada pela seca. A economia está em depressão. Mais da metade da população já está abaixo da linha da pobreza e 95% do povo está à margem da insegurança alimentar.

O principal responsável é o imperialismo americano. Após duas décadas de ocupação liderada pelos Estados Unidos, 161 mil vidas afegãs foram perdidas; vilas e casas completamente arrasadas sem qualquer tipo de reparação para as famílias vítimas da agressão americana. Além disso, o regime títere não apenas não combateu como se aproveitou da opressão da mulher para assegurar sua dominação. Para piorar, a ocupação americana criou um modelo econômico baseado na exportação de papoula e seus derivados (cuja produção aumentou em 200%) e na importação de alimentos, totalmente dependente de ajuda internacional. Com o bloqueio americano das reservas internacionais do país e do crédito nas instituições internacionais, o governo democrata liderado por Joe Biden busca agora humilhar e submeter a população afegã.

A crise é agravada também pela política externa e interna do novo regime talibã. No front externo, seu principal objetivo é tornar-se um parceiro confiável da ordem regional e internacional, coibindo qualquer atuação de grupos que se oponham aos regimes autoritários vizinhos, seja por questões de opressão nacional, seja por questões de liberdades democráticas e condições de vida. Essa política, no entanto, não garante qualquer solução para a fome e a miséria no país.

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No front interno, a principal política do Talibã é conciliar-se com os latifundiários e anunciar medidas contra os direitos das mulheres, sobretudo ao suspender ou restringir seu acesso à educação e emprego. É preciso reafirmar que no Alcorão não há qualquer menção a impedir o acesso das mulheres a tais direitos fundamentais. Ao vincular, de maneira distorcida, suas medidas discriminatórias com o Islã, o regime talibã alimenta ainda a islamofobia patrocinada pelo imperialismo e isola ainda mais seu país perante aos povos de todo o mundo.

Além disso, a organização de extrema-direita ISIS-K (Estado Islâmico da Província de Coraçone) colabora para deteriorar a situação em campo, ao protagonizar ações covardes e executar atentados a bomba direcionados particularmente contra a população xiita do país, majoritariamente composta pela etnia hazaras.

Solidariedade internacional

Após cem dias, já está claro que pedir ajuda emergencial para combater a fome através de apelos às organizações internacionais, ao imperialismo e aos regimes autoritários vizinhos não resultou em nada.

É necessário recorrer à solidariedade internacional dos explorados e oprimidos, em particular dentro dos países imperialistas. O principal obstáculo para o sucesso dessa política está nas próprias ações do governo talibã. Em todo o mundo, sindicatos e organizações que lutam contra a opressão machista, racial, LGBTfóbica ou nacional resistem a apoiar um regime com caráter autoritário e machista.

Para ganhar corações e mentes, é necessário adotar uma política de defesa dos direitos das mulheres, dos camponeses pobres e dos trabalhadores e trabalhadoras sem-terra.

Medidas básicas como o anúncio de ensino obrigatório para meninos e meninas até a universidade, fim do dote matrimonial e da pena de morte e outras punições cruéis como o açoite e apedrejamento, além da paridade para mulheres nos empregos públicos e privados e salário igual para trabalho igual, não apenas representam justiça social para a população, mas também assestariam um duro golpe na islamofobia e naturalmente atrairiam a simpatia dos explorados e oprimidos em todo o planeta.

Alimentos x papoula

A questão da terra está ligada ao acesso à água e representa uma pauta chave no Afeganistão. Três quartos da população vivem no campo, à medida que o país possui 12% de terras aráveis, o que não é pouco para suas dimensões territoriais. Entretanto, as melhores terras — isto é, com acesso regular aos recursos hídricos — estão concentradas nas mãos de latifundiários cujo objetivo é angariar lucros. Nesse contexto, a prioridade é a exportação, com ênfase no cultivo de papoula, principal produto do país.

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A reforma agrária é necessária por dois aspectos: trazer justiça aos camponeses pobres e aos trabalhadores e trabalhadoras sem-terra e priorizar a produção de alimentos para eliminar a fome no país. Além disso, a implementação de tecnologias de irrigação para garantir a agricultura e o pastoreio também são fundamentais.

Regimes autoritários x oprimidos

Outra questão a ser revertida é a política com relação aos grupos oprimidos nos países vizinhos.

É o caso dos uigures, nacionalidade de maioria muçulmana que é vítima de limpeza étnica impulsionada pelo regime chinês na região de Xinjiang, vizinha do Afeganistão.

Outro exemplo é a população pashtun no Paquistão, dividida de seus irmãos e irmãs em território afegão pela chamada Linha Durant — uma fronteira artificial imposta pelo imperialismo britânico no final do século XIX.

Também é o caso de uzbeques, tadjiques e quirguizes, vizinhos ao norte, que vivem sob o tacão do regime russo. Há ainda a classe trabalhadora e as nacionalidades oprimidas no Irã — baluchis, curdos, árabes, azeris e outros —, além dos cachemires, população majoritariamente muçulmana que vive sob a dupla ocupação indiana e paquistanesa.

Hoje o novo regime talibã está alinhado a Paquistão e China; em menor grau, com Rússia e Irã, na contramão da solidariedade com os oprimidos nos países vizinhos.

ISIS-K

O ISIS-K tem sua atuação covarde e antipopular facilitada pelo caráter capitalista e autoritário do governo talibã. Uma auto-organização democrática da classe trabalhadora em cada bairro e em cada vila, com destacamentos armados, aliada a uma política de pleno emprego tem o potencial de rapidamente neutralizar o braço local do Estado Islâmico (Daesh).

No entanto, essa solução esbarra no caráter do novo regime talibã.

Contra a fome e a miséria, é preciso completar a ruptura com o imperialismo

É evidente que a melhor política para eliminar a fome e a miséria é romper com o modelo econômico capitalista imposto pela ocupação americana e mobilizar solidariedade pelo desbloqueio das reservas internacionais e pelo pagamento de reparações de guerra.

Não obstante, o novo regime talibã se tornou um verdadeiro obstáculo a qualquer mudança. Internamente, está aliado aos latifundiários; externamente, ao Paquistão, China, Rússia e Irã.

Cabe à classe trabalhadora afegã, no campo e na cidade, liderar a luta pela reforma agrária, pelos direitos das mulheres, impulsionar a solidariedade internacional de explorados e oprimidos e, no calor dessas lutas, se auto-organizar para derrotar o regime talibã e assumir o poder no país.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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