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Colômbia vs. Colombo

Com dois meses de levantes contra Iván Duque, jovens e indígenas se deparam com o terror e derrubam símbolos da colonização
Manifestantes da Colômbia derrubam estátua de Cristóvan Colombo na cidade de Barranquilla.

Depois de algumas tentativas, um grupo de ativistas da Colômbia, país que deve seu nome à uma homenagem a Cristóvão Colombo, finalmente conseguiu derrubar na segunda-feira (27)  uma estátua do explorador e colonizador espanhol erguida em Barranquilla. Depois do ato rebelde, arrastaram a cabeça da escultura pelas ruas da cidade.

O ato não chega a ser tão violento quanto os justiceiros anônimos aliados do governo de Iván Duque que no dia 17 sequestraram, torturaram e degolaram o jovem ativista Santiago Ocho, em Tuluá, no Valle del Cauca, para depois despejar sua cabeça dentro de um saco na entrada de uma casa.

Santiago Ochoa, estudante sequestrado e decapitado pela repressão paramilitar na Colômbia [Arquivo de Família]Ochoa, 23, participava dos protestos antigovernamentais na Colômbia desde 28 de abril Ele saiu de casa de bicicleta no último sábado e desapareceu. Seu destino só foi descoberto no domingo, com o desfecho macabro.

A cabeça de Cristóvão Colombo era só de pedra e sua degola poderia ser considerada apenas vandalismo. Mas aos dois meses de protestos contra as políticas de Iván Duque,

reprimidos com grande violência, o simbolismo do ataque à estátua expõe a dimensão histórica da luta que poderá levar à queda do atual governante – ou ao aprofundamento das práticas de genocídio que se repetem no país.

As demonstrações da barbárie de agentes oficiais e paramilitares aliados a Duque conectam o terror de hoje a governos violentos que se sucederam na Colômbia. No último século, estiveram camuflados pelo selo de democracia e justificados por uma guerra insana contra o “inimigo interno” em certo momento, o narcotráfico e as FARC em outro, e nestes anos de ódio e cinismo, uma guerra sem disfarce contra o povo.

Não há como não remeter esse ciclo de “genocídio continuado” – como concluiu o Tribunal Permanente dos Povos em março passado, após analisar 54 casos de morticínios no país  –  à uma América do Sul indígena, espoliada e ferida nos últimos 500 anos da colonização, mas  cujas raízes ancestrais têm gerado brotações renitentes pelo continente.

Alguns gestos da resistência são repletos de história. No dia 7 de maio passado foi a vez de tirar do pedestal, na Plaza Rosario, no centro da capital, a estátua de Gonzalo Jiménez de Quesada. Ele foi  um explorador, e historiador espanhol que participou na conquista da Colômbia e fundou Bogotá. Morreu buscando o El Dorado.  O Movimento das Autoridades Indígenas do Sudoeste (AISO), que promoveu a derrubada da estátua, quer reescrever a história daquele “que foi historicamente o maior massacrador, torturador, ladrão e estuprador de nossas mulheres e nossos filhos “. Em seu comunicado após o ato na Plaza Rosário, a AISO disse estar recuperando um de seus espaços mais sagrados, “despojado pelos pistoleiros da conquista e da colônia espanhola”. A elite colombiana, que hoje defende o presidente Iván Duque e fecha os olhos para o massacre dos manifestantes, descende, ao olhar dos indígenas, de Jiménez de Quesada, e reproduz sua relação criminosa com o povo e o país.

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De acordo com a  Organização Nacional Indígena da Colômbia (ONIC), que denunciou  assassinatos de 115 lideranças indígenas só nos primeiros dez meses de 2019, há  39 dos 102 povosexistentes correndo o risco de “extinção física e cultural”

A repressão até agora não demoveu jovens das ruas, apesar do preço incompreensível para qualquer geração que se mova por direitos. O terror tornou-se política explícita, promovido muitas vezes com recursos não oficiais.

Vários manifestantes detidos e desaparecidos pela polícia colombiana têm sido encontrados assassinados com sinais de tortura, flutuando em rios ou desmembrados em sacos. “ Todas aquelas mulheres que estão enterrando seus filhos, hoje todos nós lamentamos a perda de nossos filhos em todos os territórios, que caíram por causa de uma guerra fratricida que nos impuseram”, escreveu nas redes a organização indígena.

A antiga prática oficial do “falso-positivo” deixou marcas no imaginário colombiano. O termo  remete às décadas do país em que militares eram promovidos e premiados por cotas de mortes em combate.  Para isso,  “jovens estigmatizados como inimigos ou em situações de vulnerabilidade, sequestrados ou enganados para se deslocar  à procura de um emprego prometido, eram mortos, muitas vezes após serem torturados, armados e vestidos como guerrilheiros para aumentar o número de vítimas oficialmente declarado”, relata o TPP.  A Comissão Interamericana de Direitos Humanos descreve os casos como “execuções extrajudiciais no âmbito do conflito armado colombiano, com um modus operandi… por meio de diversos mecanismos de distorção da cena do crime e as circunstâncias da forma, hora e lugar em que os fatos ocorreram ”

Acostumados à maquiagem das ações do poder, manifestantes duvidam da versão oficial do governo para os crimes que eles sofrem. Inclusive duvidam do suposto ataque de sexta-feira (25)  contra o presidente colombiano, cujo helicóptero foi alvo de disparos e teve seis perfurações à bala. Para muitos, é mais uma armação para o governo transformar as pressões internas que vem sofrendo em uma questão internacional.

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Logo após o ataque, surgiram menções provocativas à Venezuela. Supostamente armas identificadas com marcas das Forças Armadas Nacionais Bolivarianas (FANB) estariam relacionadas com os disparos. Nas redes sociais, internautas chamam o caso de auto-ataque. Enquanto isso, o governo mobiliza cerca de 40 equipes de inteligência coordenando 150 pessoas para buscar, na população, os suspeitos de terem atirado no helicóptero.

Os desdobramentos continuam e não indicam um caminho de paz. Na segunda-feira (28), o  novo diretor da inteligência dos Estados Unidos (CIA), William Burns, recém-nomeado por Joe Biden, chegou à Colômbia para participar de uma missão “delicada” relativa à segurança.  A informação da visita foi dada pelo embaixador da Colômbia em Washington, Francisco Santos, que no entanto não deu mais detalhes.

A Colômbia tem com os Estados Unidos uma relação de subordinação militar e ideológica e, recentemente,  o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, teve sua primeira conversa telefônica com Iván Duque, que busca ajuda para agarrar-se ao poder, sem fazer as concessões que os manifestantes exigem: o fim da força repressiva ESMAD, respeito aos direitos humanos, além de uma campanha massiva de combate à covid-19.

A população está exigindo seu país de volta e os gestos para cobrar seus direitos  acontecem tanto nas linhas de frente – auto-organizadas nas regiões para manter os protestos e monitorar a repressão,, na incerteza sobre o que o governo lhes reserva –  quanto nas ações simbólicas. Este mês  indígenas da comunidade Misak tentaram demolir outra estátua de Colombo e a da Rainha Isabel de Castela, ambas  localizadas próximas ao aeroporto El Dorado em Bogotá

Policiais, enfileirados, protegeram o casal de pedra contra a fúria indígena. O Ministério da Cultura precisou remover as obras, na esperança de poder colocá-las de volta quando as coisas acalmarem. Ou, quem sabe, conforme as coisas avancem, precisará considerar o caso de guardá-las de vez em um museu.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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