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‘As mulheres palestinas estão liderando uma revolução em duas frentes’

Entrevista com Shatha Hammad, a jornalista palestina agredida pelas forças da AP durante os protestos contra a morte de Nizar Banat
Shatha Hammad enfrenta a repressão em Ramalah durante protesto contra o assassinato de Banat pela polícia da AP [Arquivo pessoal/ Shatha Hammad]

Ela é jornalista, muçulmana, tornou-se uma voz para as mulheres palestinas em todo o mundo e recentemente recebeu o prêmio New Voice, promovido pelo One World, um dos prêmios jornalísticos mais importantes da atualidade.

O júri da premiação, naquela noite de 2020, em Ramallah, na Palestina, reconheceu o seu “trabalho inovador e sua imensa capacidade de iluminar questões políticas e sociais”.

Ela nasceu, cresceu e vive numa das regiões mais sofridas do mundo e tem superado inúmeros obstáculos como palestina, jornalista e mulher.

Já foi detida em postos de controle israelenses, cobriu violentas repressões militares e teve seu trabalho impedido muitas vezes pelo exército israelense. Mas jamais desistiu e continua a contar ao mundo sobre a crueldade da ocupação ilegal de Israel na Palestina e a dar voz a outras mulheres.

Seu nome é Shatha Hammad e seu rosto voltou a aparecer em muitos jornais do Oriente Médio nos últimos dias, mas, desta vez, pela violência sofrida por ela em Ramallah, perpetrada por oficiais palestinos durante os últimos protestos contra a morte do líder político Nizar Banat.

Banat, um ativista político de 43 anos, foi preso na casa de sua família, em Hebron, há poucos dias, e de acordo com sua esposa, os policiais palestinos agiram com imensa violência durante aquela noite. O ativista teria sido agredido com barras de ferro em Hebron e sua morte foi confirmada poucas horas depois de ele ter sido levado pelas autoridades.

Shatha e outros jornalistas palestinos decidiram, horas depois da notícia da morte de Banat, organizar um protesto pacífico, pedindo explicações e investigações contundentes à Autoridade Palestina.

Mas a brutalidade dominou o cenário novamente e pelo menos cinco jornalistas, quatro deles mulheres, ficaram feridos, incluindo a correspondente do Middle East Eye, Shatha Hammad, que teve seu rosto cortado e seus olhos feridos por uma lata de bomba de gás lacrimogêneo.

Do Rio de Janeiro para Ramallah, na noite de ontem, conversei com Shatha para entender o que aconteceu, a violência de palestinos contra palestinos nos últimos dias e descobrir como é ser uma mulher jornalista na Palestina.

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Como uma jornalista palestina que ganhou um importante prêmio internacional em 2020 por seu trabalho, você esperava essa violência vinda de oficiais palestinos?

Nunca esperei que a Autoridade Palestina praticasse essa escalada de violência e opressão contra nós, palestinos, e também com jornalistas. Ao mesmo tempo, a Autoridade Palestina pratica há anos a repressão gradual, sufocando as liberdades, impedindo a liberdade e a expressão. Hoje, a escalada da repressão e agressão física é uma evolução das práticas da autoridade. Desde 2017, a repressão da autoridade à mídia começou a ser mais sistemática e explícita, impondo a lei de crimes cibernéticos e bloqueando dezenas de sites de notícias.

 

Quando você decidiu ser uma jornalista na Palestina e uma voz para outras mulheres?

Desde a minha infância tenho vivido a ocupação israelense e observado o papel da imprensa na cobertura dessas questões, especialmente durante a Intifada de Al-Aqsa.  Foi isso que me inspirou a estudar jornalismo. Resolvi estudar tendo essa visão do papel da mulher nessa profissão e da importância dela. Hoje, como mulher que trabalha na imprensa, procuro cumprir meu papel, revelar a verdade e estar ao lado dos oprimidos e dos que sofrem com a ocupação israelense ou com a Autoridade Palestina.

Como começou a violência naquele momento em Ramallah e principalmente contra as mulheres jornalistas?

A violência começou no sábado com as forças de segurança à paisana, que desferiram ataques a meninas e mulheres por meio de espancamentos, ameaças e palavras obscenas. A segmentação das mulheres nesse caso tem sido sistemática devido ao nosso papel nas redes sociais e na documentação de ataques e nossos telefones foram confiscados. Um dos policiais à paisana tentou roubar meu telefone e, como não conseguiu, jogou-o no chão e quebrou-o. Os mesmos ataques se repetiram no domingo, contra mulheres jornalistas, sitiando-as em uma área, impedindo-as de se locomover, filmando, ameaçando e quebrando seus equipamentos.

Para você, qual é o maior legado que Nizar Banat deixa para os palestinos após a sua morte?

Nizar Banat deixou um impacto importante para o povo palestino. Ele ousou criticar a Autoridade Palestina e suas práticas, ousou criticar o presidente e criticar a corrupção política praticada por figuras influentes. Seu legado e sua voz são muito importantes para todos os palestinos.

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Essas divisões entre os palestinos estão se enraizando na Palestina. Não há uma visão entre os palestinos de que essa violência e essas divisões podem enfraquecer o objetivo maior, o sonho da independência da Palestina?

O povo palestino rejeita essas divisões. Na mesma casa encontramos irmãos de diferentes ideias e que apoiam diferentes partidos. O problema começou com as lideranças políticas e com os movimentos no poder e sua exclusão de outros, sua violência contra quem exige mais democracia e a entrada de outros partidos no processo político.

O que essa violência contra jornalistas pode significar para a liberdade de imprensa dentro da Palestina?

É uma questão muito perigosa e assustadora. Não sabemos como vamos exercer nossa profissão e nosso trabalho jornalístico a partir de hoje. Senti medo e uma ameaça à minha vida. Uma bomba me atingiu no rosto e quase perdi meus olhos.

Exigimos apenas um espaço seguro para exercer os nossos direitos e exercer a nossa profissão de jornalistas, e pedimos às organizações de direitos humanos que nos apoiem e não nos deixem sozinhos. Nossas vidas estão sempre ameaçadas pelo exército israelense. Hoje, nossas vidas podem estar ameaçadas pelos serviços de segurança da Autoridade Palestina e não esperávamos por isso.

Parte da sua família mora hoje no Brasil. Como você vê o apoio e a solidariedade que milhões de brasileiros têm pela Palestina atualmente?

Sim, parte da minha família mora no Brasil. Nunca estive aí e eu gostaria muito de poder ir um dia. Minha família inteira ficou preocupada e chocada com o que aconteceu comigo, me apoiou com muitas mensagens de afeto e também contando ao mundo o que aconteceu. Isso é muito importante para mim, assim como o apoio de tantos brasileiros à causa palestina.

Charge Carlos Latuff

Que mensagem você deixaria para as mulheres brasileiras que também querem que suas vozes sejam ouvidas no Brasil e querem o fim de qualquer tipo de violência contra as mulheres?

As mulheres são capazes de fazer grandes mudanças. As pessoas confiam em nós e temos essa responsabilidade. As mulheres na Palestina estão liderando uma revolução contra a ocupação e contra a tirania da Autoridade Palestina. Eu sei que as mulheres no Brasil também são fortes e capazes de mudanças em todos os campos.

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