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Livros são fundamentais na diáspora: pertença e luta à causa dos povos árabes

Livros [ Foto pixabay]
Livros [ Foto pixabay]

Precisamos de luta e organização, espírito de luta e mente aguçada. Precisamos de mais e mais livros fundamentais circulando em língua portuguesa.

Albert Hourani, britânico de origem libanesa, escreveu a obra magistral “Uma história dos povos árabes”. Felizmente, o livro foi traduzido para o português. O autor é fidedigno mesmo quando tem passagens polêmicas, e pode servir de livro basilar para a história e até para uma historiografia inicial das populações que, no pensamento decolonial, são denominadas como árabes, arabizadas e arabófonas. O livro hoje é de fácil acesso, têm várias reedições, alguns domínios da internet colocam o PDF em língua portuguesa para ser baixado e está à venda em sebos e livrarias (físicas e virtuais) de todo o país. A obra foi publicada pela primeira vez em 1991 e vem sendo atualizada, ao menos até a versão de 2006, em português.

Capa do livro "Uma história dos povos áraves" de Albert Hourani

Capa do livro “Uma história dos povos árabes” de Albert Hourani

Difusão ainda maior se encontra no clássico “Orientalismo”, do professor de literatura e palestino Edward Said. De tão potente o livro associou o termo ao conceito e nos fez ver, como descendentes de árabes, a forma como o invasor nos olha e classifica. Desconstruindo a taxonomia colonial ou da primeira globalização do capitalismo mercantil, Said ajuda a dar base para uma mirada crítica, o olhar a nós mesmos, mas jamais através da mira ocular do invasor.

Livros como os acima citados, não nos permitem jamais assistir filmes clássicos do colonialismo, como “Lawrence da Arábia” (Grã-Bretanha/EUA, 1962) como sendo apenas um “filme de aventuras”. Não há como perdoar nossa própria consciência se nos imaginarmos na figura do oficial de inteligência colonial, Thomas Edward Lawrence e sua versão de síntese de inteligência aplicada na obra “Os sete pilares da sabedoria”. Se o personagem de Harrison Ford na franquia “Indiana Jones” já dá ânsia de vômito, ainda pior é sua versão real, como a deste militar britânico cheio de artimanhas, que leva o Mundo Árabe ao desastre consecutivo – apoiando o famigerado Acordo Sykes-Picot – e entregando os “aliados” hashemitas à própria sorte na Batalha de Maysalun (julho de 1920). Se os ingleses fizeram isso com os “amigos”, o que não fariam e fazem com os inimigos? Ou melhor, como confiar nos colonialistas e cruzados após ler essas obras?

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Eis a relevância das traduções, se não a única, de maior aplicação na luta política. No ano de 1986, quatorze anos após o seu martírio, a obra de Ghassan Kanafani “Contos da Palestina: o povo sem terra” foi traduzida e publicada no Brasil. Eram os anos mais duros após o massacre de Sabra e Chatila (setembro de 1982), a retirada dos fedayin do Líbano e a operação “perna de pau” com o bombardeio da sede da OLP, em Túnis, Tunísia (outubro de 1985). Ainda não havia iniciado a primeira intifada. No país de nossos ancestrais vivia-se a vergonha da Guerra dos Campos, com o setor da resistência ainda muito fragmentado. As frases cinematográficas de Kanafani nos colocam dentro da luta palestina, de corpo, mente e alma.

Antes da derrota no Líbano, em 1981, um pequeno editor carioca trazia alento para o espírito militante da colônia árabe. Róbson Achiamé, paladino à frente da Achiamé Editora, traduziu para o português a coletânea “Poesia Palestina de Combate”. Os poemas foram selecionados por Abdellatif Laâbi e seu impacto na militância foi mais eficaz que os aviões de caça IAI-Kfir jogando bombas sobre mulheres e crianças em campos de refugiados. A obra termina com um texto seminal contra a normalização imposta pelos sionistas nos territórios palestinos ocupados em 1948 e, depois, em 1967. Nos versos a luta se mantém e o apoio da diáspora é reforçado.

Aqui sobre vossos peitos, persistimos / como uma muralha em vossas goelas / como cacos de vidro imperturbáveis/ e em vossos olhos, como uma tempestade de fogo”. Como não se abalar em cada verso de Tawfik Az-Zayad, como não reverenciar essa obra em língua portuguesa? A importância de versos de luta e compromisso, tão sólidos como as oliveiras de toda a Cananeia existindo a mais tempo do que qualquer invasor europeu.

Nesta segunda década do século XXI, tivemos a tradução do livro de Nur Masalha “Expulsão dos palestinos: o conceito de ‘transferência’ no pensamento político sionista, 1882-1948”. Essa obra, publicada originalmente em 1992 (já na sexta reedição), cujo autor é palestino nascido na Galileia ocupada, é uma leitura fundamental tanto para a descendência árabe no Brasil como para os milhões de cidadãos e cidadãs brasileiras que apoiam a libertação da Palestina. Lançado em conjunto pelo Fórum Latino Palestino, o Monitor do Oriente Médio e a editora Sundermann, marca um debate de profundidade sobre o pensamento estratégico do inimigo que desumaniza os árabes da Palestina. É como entrar na mente do facínora para entender como, desde o começo do projeto colonial sionista, “o problema demográfico” estava presente na racionalidade dos invasores que se articularam com o Império Austro-Húngaro, com o Império Otomano (em especial no início do século XX e com a ascensão dos Três Pashás), com o Império Britânico e os Estados Unidos (herdeiro do anglo-sionismo). Limpeza étnica planejada como política de formação de um Estado alienígena, baseado em mitologias de textos mal traduzidos e milenarismos de duvidosas origens.

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O mais recente lançamento, “Hebron, a cidade impossível”, do professor palestino Ahmad Jaradat (Fedayin Editora, Florianópolis, 2021), já resenhado inclusive por este que escreve, marca o período de bons lançamentos que certamente ajudarão a formar novas gerações de militantes. Sempre presente a ideia de que a ocupação é desumana, e o cotidiano militarizado tentará normalizar o Apartheid como forma de vida, quiçá de sobrevivência. O impacto dessa literatura que combina rigor e compromisso, cuidado estético e mergulho nos processos reais, é muito grande. Livros não formam apenas intelectuais. Por vezes com alguma sorte, formam intelectuais engajados. Livros formam a diáspora, reformam as pertenças e a vontade de lutar.

Se as embarcações fenícias cruzaram o Mediterrâneo e o Atlântico e abordaram a costa de Pindorama com a bandeira púrpura do norte da Cananeia, por que nosso esforço político e militante não pode – e deve – fazer o caminho inverso? Somos 18 milhões para quê então? A literatura árabe e, em especial, os escritos que tratam da Palestina Ocupada e sua saga de libertação, nos guiam nesse sentido. Se as obras completas de nosso historiador maior Ibn Khaldoun ainda não ganharam envergadura em português, devemos caminhar nesse sentido.

O poema do palestino Mahmud Darwich, “Carteira de identidade”, expõe as vísceras do que precisamos saber, viver e nos familiarizar, mesmo que na diáspora e do lado de cá do Atlântico.

Registra-me, sou árabe, meu nome é muito comum e sou paciente em um país que ferve de cólera / minhas raízes, fixadas antes do nascimento dos tempos, antes da eclosão dos séculos /…e meu avô era camponês”.

O poema narra esse povo de camponeses, assim como os nossos bisavós mascates. Que o esforço de literatos e dessas obras fundamentais façam com que nos conheçamos cada vez mais, ajudando a organizar a diáspora na resistência às agressões do inimigo e seus aliados imperialistas. As palavras são tão potentes e a ideias tão concretas como a cimitarra de Al-Nasir Salah al-Din. Precisamos da mesma tenacidade das carroças dos mascates sertão adentro. Que venham mais livros e luta organizada.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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