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O colapso da ordem do Oriente Médio está em andamento. O futuro está em jogo

Um egípcio segura sua bandeira nacional enquanto profere mensagens contra o presidente Hosni Mubarak na Praça Tahrir, no Cairo, em 10 de fevereiro de 2011. [Pedro Ugarte/ AFP/Getty Images]
Um egípcio segura sua bandeira nacional enquanto profere mensagens contra o presidente Hosni Mubarak na Praça Tahrir, no Cairo, em 10 de fevereiro de 2011. [Pedro Ugarte/ AFP/Getty Images]

A ordem política do Oriente Médio está em processo de colapso. Para aqueles que lutam por um futuro de dignidade e democracia em toda a região, não há esperança de reforma do sistema de poder existente. Esse é o veredicto de dois ativistas, Iyad el-Baghdadi e Ahmed Gatnash, em seu novo livro The Middle East Crisis Factory.

No entanto, essa não é uma declaração de desespero, mas sim de desafio à geração das revoltas de 2011. “Não há esperança de que o colapso possa ser interrompido”, eles escrevem. “Desistimos de todas as esperanças nessa ordem há muito tempo. Temos que colocar nossa esperança além dessa ordem. Ela está desabando de qualquer maneira – deixe-a desabar para que possamos ter uma chance de uma vida de liberdade.”

Os ativistas-escritores veem a batalha pelos direitos humanos e pela democracia em todo o Oriente Médio desde 2011 como algo que vai além do nacionalismo tradicional, do anti-imperialismo e do islamismo

Parte história, parte manifesto de direitos humanos e parte manual de conselhos para governos ocidentais, o livro descreve como uma história de intervenção ocidental, alianças cínicas com ditaduras e o fracasso de governos pós-coloniais levaram a esse ponto.

Baghdadi é um empresário palestino e ativista dos direitos humanos que cresceu nos Emirados Árabes e agora é refugiado político na Noruega. Gatnash é um exilado político líbio que vive em Londres.

Baghdadi é um ex-associado do jornalista saudita Jamal Khashoggi, que foi assassinado em 2018 em Istambul por uma equipe de agentes do governo saudita. Ele próprio está agora sob a proteção da polícia norueguesa depois de ser ameaçado pelo longo braço dos esquadrões da morte do príncipe saudita Mohammed bin Salman.

Transição brutal

Os autores veem o atual ponto de transição dos regimes pós-coloniais para uma ordem que pode oferecer esperança a milhões negados em um futuro semelhante à transição sangrenta da Europa para a modernidade um século atrás. A Europa teve que passar por duas guerras mundiais devastadoras e genocídios que deixaram mais de 60 milhões de mortos antes que uma aparência de estabilidade e prosperidade chegasse.

Os autores vislumbram uma transição na região que também levará décadas e não será suave, já que nos últimos 40 anos assistimos a guerras, invasões e genocídios que mataram milhões e milhões de pessoas que fugiram como refugiados.

A ‘fábrica de crise’ titular é o triângulo do autoritarismo pós-colonial, apoio ocidental aos tiranos e intervenção militar e extremismo

A “fábrica de crise” titular é o triângulo do autoritarismo pós-colonial, apoio ocidental aos tiranos e intervenção militar e extremismo. Cada uma dessas forças e estruturas alimentam-se umas às outras em um ciclo destrutivo que inibe e impede o surgimento de governança cívica e democrática em toda a região.

Os ativistas-escritores veem a batalha pelos direitos humanos e pela democracia em todo o Oriente Médio desde 2011 como um movimento além do nacionalismo tradicional, do anti-imperialismo e do islamismo.

O levante sírio – e a resposta do regime de Assad a ele – é um caso primordial de uma relação simbiótica entre autoritarismo e terrorismo, argumentam os autores. O regime suprimiu impiedosamente os protestos pacíficos enquanto libertava militantes islâmicos implantados contra as forças dos EUA no Iraque para operar dentro do território sírio no início do levante de 2011. Muito tem sido escrito sobre essa codependência não declarada, mas a cumplicidade entre os governos regionais que habilitaram e armaram esses grupos linha-dura, incluindo Catar, Arábia Saudita e Turquia, é negligenciada, ecoando uma narrativa comum nos relatórios ocidentais da guerra.

A ascensão brutal de Abdel Fattah el-Sisi ao poder no Egito também coincidiu com o aumento da atividade de grupos militantes na península do Sinai, marcando outro exemplo da “fábrica de crise” e a forma como os tiranos precisam da ameaça do terrorismo para reforçar sua legitimidade instável.

Regimes que convidam à intervenção

Os regimes baathistas no Iraque e na Síria são exemplos de ditaduras que se viam como anti-imperialistas e ainda, apontam os autores, por meio de suas ações e abusos em escala industrial, acabaram expondo seus países à intervenção e ocupação estrangeira.

Tais regimes deram às potências ocidentais justificativas para guerra e intervenção, deixando a região em ruínas e caos, como ocorreu após a invasão do Kuwait por Saddam em 1990, levando à guerra liderada pelos Estados Unidos em 1991 e à posterior invasão liderada pelo presidente George W Bush em 2003. Claro, a justificativa deste último para invadir o Iraque foi a inexistência de armas de destruição em massa.

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A tese de que existe uma simbiose entre as forças da tirania, do neocolonialismo ocidental e do extremismo é ousada e contundente. A questão que surge é se os autores o estão aplicando de maneira justa em todos os casos.

No caso de Saddam, os autores argumentam que o desafio contínuo do ditador às potências ocidentais, após a imposição de sanções devastadoras depois da sua invasão do Kuwait, foi imprudente e acabou levando à próxima guerra. Eles ressaltam que Saddam teve a oportunidade de renunciar e deixar o Iraque pelo sheikh Zayed bin Sultan al-Nahyan dos Emirados Árabes, mas recusou. Todavia, essa proposta, às vésperas da invasão dos Estados Unidos em 2003, não era possível que Saddam aceitasse. Como afirma o livro, o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, demorou algumas horas após o ataque de 11 de setembro para propor uma invasão ao Iraque, que nada tinha a ver com a operação da Al-Qaeda.

Na esteira dos levantes de 2011, a retórica liberal ocidental é contrastada com a cínica política real que priorizou a estabilidade em detrimento dos direitos humanos.

Os autores censuram o governo americano de Barack Obama por assinar um acordo nuclear com a República Islâmica do Irã, que afastou o abuso dos direitos humanos, ao mesmo tempo que permitiu ao Irã continuar sua interferência em toda a região, da Síria ao Iêmen. Esse argumento é notavelmente próximo ao usado por Donald Trump quando se retirou unilateralmente do acordo em 2018.

Alternativas de intervenção

Os autores se opõem, com razão, à história de intervenção militar na região e também ao uso generalizado de sanções econômicas que causam i

Famílias sírias deslocadas por ataques conduzidos por forças do regime sírio e aliados, em um campo em Idlib, Síria, 14 de fevereiro de 2020 [Muhammed Said/Agência Anadolu]

Famílias sírias deslocadas por ataques conduzidos por forças do regime sírio e aliados, em um campo em Idlib, Síria, 14 de fevereiro de 2020 [Muhammed Said/Agência Anadolu]

menso sofrimento, mas não conseguem desalojar regimes como o do Irã ou da Síria.

Uma abordagem mais eficaz, eles argumentam, são sanções inteligentes visando os ativos de líderes individuais, que são menos prejudiciais para as pessoas oprimidas, como a Lei Magnitsky – usada contra Vladimir Putin da Rússia e seus comparsas.

Outra ferramenta importante disponível para ativistas de direitos humanos e grupos jurídicos é a legislação de jurisdição universal, que tem sido usada para levar funcionários do regime de Assad a tribunais em países como Alemanha e Espanha.

Baghdadi, um emirado palestino, coloca o conflito do Oriente Médio dentro da mesma estrutura triangulada, argumentando que o colonialismo israelense foi auxiliado em certa medida pelas escolhas dos líderes palestinos, incluindo Yasser Arafat e Hamas, em favor de ataques armados e terrorismo. Eles traçam um paralelo direto entre a forma como a intervenção dos EUA no Iraque “alimenta o terrorismo” e “como a violência palestina serviu para justificar a ocupação dos Territórios Palestinos por Israel”.

Essa crítica parece profundamente falha e ecoa as do sionismo liberal, comparando a resistência armada à violência da ocupação israelense e sua recusa a todas as tentativas genuínas de encontrar um fim pacífico para o conflito.

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Violência gera violência, mas devemos pelo menos identificar em que ponto a violência começa. Isso não é simplesmente um loop, tem uma causa estrutural, que é o colonialismo e o imperialismo dos colonos, que então leva à resistência.

Violência gera violência, mas devemos pelo menos identificar em que ponto a violência começa. Tem uma causa estrutural, que é o colonialismo de colonos e o imperialismo

No caso do Hamas, após a onda de ataques contra civis israelenses na Segunda Intifada, mudou de estratégia, favorecendo a mobilização eleitoral e popular, e também buscando opções diplomáticas para encerrar o conflito, todos já encerrados por Israel e seus aliados ocidentais. No caso da Grande Marcha de Retorno em 2018, como em vários ataques israelenses a Gaza desde 2008, ela se deparou com atiradores israelenses e ataques aéreos.

Os autores mal reconhecem essa evolução, embora identifiquem o longo histórico de Benjamin Netanyahu de armamento do terrorismo contra todas as formas de ativismo pacífico, de forma semelhante aos regimes em toda a região.

Os autores trazem seu conhecimento pessoal das revoltas de 2011 para seu compromisso com uma nova política pan-regional que vai além do nacionalismo árabe de antigamente e o aumento posterior do Islã político e do terrorismo jihadista. Eles abraçam uma política heterodoxa não violenta e não sectária de direitos humanos e rejeitam a ideia racista de que árabes, iranianos, curdos ou Imazighen não estão prontos para a democracia.

Contrarrevolução

A contrarrevolução que se opõe a isso é liderada pelo príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, Mohammed bin Zayed de Abu Dhabi e seus aliados, como Abdel Fattah el-Sisi do Egito. O eixo liderado pelo Irã também é implacavelmente hostil a esse projeto.

Ativistas de toda a região enfrentaram não apenas as ameaças dessas forças entrincheiradas e do terrorismo, mas também as “atitudes ocidentais racistas consagradas sobre quem éramos como povo e o que merecemos ter, ou mesmo almejar, em termos de governança, dignidade e direitos humanos”.

O Middle East Crisis Factory oferece muitos insights, sendo que o colonialismo e a ocupação nem sempre vêm de fora, mas também podem ser impostos de dentro, quando uma ditadura trata sua própria população, ou a de seus vizinhos, como a outra colonial a ser enjaulada e reprimida, em uma continuação dos regimes coloniais anteriores.

Baghdadi é associado ao Fórum da Liberdade de Oslo, fundado pelo rico venezuelano-norueguês Thor Halvorssen e financiado pelo bilionário do Google, Sergey Brin, e pelo fundador do PayPal e libertário conservador, Peter Thiel.

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Isso pode oferecer uma pista para a infusão parcial do livro com narrativas de think tank ocidentais sobre a política da região.

Como parte de uma nova geração de ativistas que não se renderá facilmente à agência que descobriu na revolta de 2011, eles também deveriam se proteger contra a cooptação dessa agência pela classe bilionária.

The Middle East Crisis Factory, de Iyad el-Baghdadi e Ahmed Gatnash, foi publicado pela Hurst em 8 de abril por £ 14,99.

Artigo publicado no Middle East Eye em 2 de abril de 2021.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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