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100 anos de divisão política continuam afetando o Egito

Manifestantes e soldados antigovernamentais assistem a um programa de TV na Praça Tahrir enquanto o presidente, Hosni Mubarak, faz um anúncio, em 10 de fevereiro de 2011, no Cairo, Egito. [Kuni Takahashi/Getty Images]
Manifestantes e soldados antigovernamentais assistem a um programa de TV na Praça Tahrir enquanto o presidente, Hosni Mubarak, faz um anúncio, em 10 de fevereiro de 2011, no Cairo, Egito. [Kuni Takahashi/Getty Images]

A divisão política no Egito moderno não é nada nova. Tem suas raízes no movimento nacional que surgiu a partir da revolução de 1919, ou mesmo antes dela. A divisão se intensificou entre o National Party fundado por Mustafa Kamel e o Wafd Party, em termos da metodologia de enfrentamento da ocupação britânica e da interação com o processo político, a ponto de estudantes filiados ao National Party tentarem assassinar o líder do Wafd Saad Zaghloul, um incidente que ele não discutiu em suas memórias. Provavelmente estava entre as 100 páginas que faltavam.

No entanto, essa tentativa nos diz que o uso do assassinato como ferramenta política não foi inventado pelos islâmicos, como afirmou o regime de Sisi no Egito. Precedeu a fundação da Irmandade Muçulmana, já que o National Party a usou para tentar liquidar oficiais britânicos, bem como líderes nacionais como Zaghloul. Entre os grupos políticos exilados durante o período da ocupação britânica, a divisão política chegou a um ponto em que se trocaram acusações de traição, a cooperação com os britânicos era comum e os adversários eram espionados no exterior. Isso é semelhante ao que acontece hoje com a oposição no exílio desde o golpe militar de 2013.

A história da divisão política do Egito não pode ser coberta em algumas centenas de palavras. No entanto, quero salientar que é um dos fatores decisivos que muitos deixaram de abordar ao olhar para o fracasso da política no Egito em diferentes períodos. É também uma evidência do fracasso dos grupos políticos em administrar suas diferenças, mesmo durante os grandes momentos de mudança, como as revoluções de 1919 e 2011, por exemplo. O espectro da divisão prevaleceu sobre todos e dominou a arena política.

No período que antecedeu a Revolução de janeiro de 2011, havia uma margem de liberdade que permitiu aos atores se mobilizarem e desempenharem um papel na vida política. As forças políticas da época eram caracterizadas por uma pluralidade de movimentos políticos, como o Movimento Egípcio pela Mudança (Kifaya) e outros movimentos de juventude que se ramificaram posteriormente. Havia partidos políticos com ideologia nacionalista e de esquerda, partidos liberais e o National Democratic Party, no poder. Depois, havia a Irmandade Muçulmana, que representava a tendência islâmica, e o Wasat Party, o único partido político com referência islâmica que representava o centro do espectro político. Isso se soma às organizações de direitos humanos e à extensão do neoliberalismo que elas representavam.

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Enquanto a Irmandade Muçulmana dominou o movimento estudantil, os movimentos de esquerda dominaram o movimento trabalhista e as organizações de direitos humanos. Um ano antes do início da revolução, a Associação Nacional para a Mudança foi formada com o surgimento de Mohamed ElBaradei como potencial rival e alternativa a Hosni Mubarak na eleição presidencial. A associação formou uma aliança de forças nacionais, da extrema direita à extrema esquerda, com exceção de figuras públicas da autoridade nacional, que não aderiram à aliança por motivos relacionados com a divisão política, que se transformou em disputa pessoal.

Dez anos depois da Revolução Egípcia. [Mohammed Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Dez anos depois da Revolução Egípcia. [Mohammed Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Os principais objetivos da nova aliança – a Assembleia Nacional – eram trabalhar por um sistema político baseado na democracia e na justiça social. Desse ponto de vista, a Associação Nacional para a Mudança formulou sete demandas para afirmar garantias básicas para eleições livres e justas, incluindo todos os egípcios, com igualdade de oportunidades nas eleições legislativas e presidenciais. São garantias e procedimentos exigidos por amplos grupos da sociedade egípcia ao longo de muitos anos. As forças políticas não foram além de formular um plano para o período pós-Mubarak ou para tentar discutir a posição do exército no processo político no Egito, um papel que apareceu fortemente mais tarde no período de transição e depois dele. Em outras palavras, a ausência de um projeto político desempenhou um papel importante no aprofundamento da polarização após a queda de Mubarak. Esse ponto é considerado uma das lacunas mais importantes na incapacidade dessas forças de formular um projeto político para o qual todos se sintam capazes de contribuir.

Essas forças compartilhavam dois fatores principais no período pré-levante: o acordo sobre a saída de Mubarak do poder e a divisão política. Este último não era tão intenso como agora, mas sua presença era clara. No entanto, concordar com o objetivo de remover Mubarak do poder atrasou o aprofundamento dessa divisão e sua preeminência atual. Com a eclosão da revolução, a contrarrevolução em toda a região começou a se preparar para sitiar esse movimento popular e explorar áreas de diferença e divisão para se infiltrar e derrotar o levante. Novas forças políticas entraram em cena com a intenção de se engajar em uma experiência e estabelecer partidos políticos. Era notável o interesse pelo trabalho partidário entre vários grupos sociais, especialmente a classe média. Como resultado, muitos agrupamentos e coalizões políticas foram formados, juntamente com novos partidos. As primeiras se caracterizavam pela falta de organização, projeto político ou base popular. Sua presença temporária contribuiu para piorar a divisão política entre grupos de jovens. Em todo caso, sem uma base de apoio forte, não duraram muito.

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Como de costume, o regime conseguiu tirar proveito dessa divisão política, a fim de apoderar-se das instituições do poder e afastar qualquer iniciativa das forças civis de construir futuras alianças para superar essa divisão, ou mesmo pactuar uma visão unificada que ameace a existência e o futuro do regime. Houve também uma estratégia de regime bastante utilizada para esperar a hora de ganhar mais espaço, contando com a paciência e a resistência do povo. Essa estratégia tornou-se mais proeminente durante a Revolução de Janeiro.

Com a atual e crescente deterioração econômica, junto com o declínio da política egípcia e os fracassos totalitários em vários níveis, o regime se deu conta de que perdeu a popularidade que tinha no período imediatamente posterior ao golpe. Não tem outra solução senão impor mais opressão, o que expressa sua verdadeira crise. Cada vez que há algum movimento ou debate político, a divisão política emerge mais feroz do que antes, enfraquecendo, assim, qualquer chance de futuro consenso ou acordo sobre uma visão específica como ponto de partida para a mudança. Em vez disso, o assunto saiu do controle e o direcionamento pessoal daqueles com diferentes visões políticas tornou-se o meio pelo qual as forças políticas lidam umas com as outras. A questão agora é como essas forças políticas podem aprender com os erros do passado e ser capazes de administrar a divisão política e transformá-la em uma disputa política que pode ser administrada facilmente e racionalizada?

Este artigo foi publicado pela primeira vez em árabe em Al-Araby Al-Jadeed, em 27 de fevereiro de 2021.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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