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Dos Diários de um Médico Árabe na Amazônia

Parte 2
Foto que retrata a paisagem de Borba, município do Amazonas [WikiMedia]
Foto que retrata a paisagem de Borba, município do Amazonas [WikiMedia]

Parte 1

O Primeiro Dia

Nosso primeiro dia em São Gabriel da Cachoeira-AM era um domingo de folga. Não tinha nenhuma atividade marcada para aquele dia. Era uma excelente oportunidade para acomodar-nos adequadamente no quartel e na cidade, e começarmos o processo de adaptação ao município que seria o nosso anfitrião por cerca de 12 meses a partir de então. Estávamos bem distantes de familiares, amigos e parentes e isolados da civilização. De uma certa forma, o êxtase da memorável viagem pelo Rio Negro já havia passado. A realidade da nossa vida militar agora impunha-se com vigor.

Logo na manhã daquele domingo, no alojamento de capitães, apareceu um dos tenentes de infantaria, que estava designado para acompanhar a nossa recepção e treinamento, ele apareceu para solicitar a presença de um médico voluntário para examinar um colega farmacêutico, oriundo do estado do Acre, e que estava passando mal. Me voluntariei. Peguei o meu estetoscópio e fui examinar o colega de serviço militar de saúde daquele ano. À ausculta, o jovem farmacêutico, moreno magro e de biotipo longilíneo, encontrava-se em franco broncoespasmo. O estado geral dele estava bom apesar disso. Não tinha cianose ou outros sinais de sofrimento respiratório mais grave. Imediatamente comuniquei o tenente que o paciente necessitava ir ao hospital para atendimento.

Veio uma viatura militar a fim de transportar o paciente para o Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira. Administrado e mantido pelo Expercito Brasileiro, era o único hospital da cidade. Estávamos em quatro pessoas na viatura: o motorista (soldado ou cabo), o tenente, o farmacêutico e aspirante-a-oficial e eu. No pronto socorro, o médico que nos atendeu era um simpático capitão de carreira, de ascendência japonesa, com especialidade na área de Ginecologia e Obstetrícia. Este médico concordou com o meu diagnóstico. Prescreveu inalação com broncodilatadores, além de corticóide intravenoso. Questionei-lhe sobre a necessidade real do corticóide, se não seria suficiente somente a inalação, ele achou melhor aplicar o corticóide também. O que me mais me chamou a atenção neste momento foi o próprio médico capitão ter realizado a punção venosa para a aplicação do medicamento diluído em soro fisiológico. Normalmente, a praxe nos hospitais e demais serviços de saúde a punção venosa e a aplicação de medicamentos ficam por conta da equipe de enfermagem. Este médico mostrou-se, além de competente no seu ofício, simpático e acolhedor conosco. Foi gentil ao fornecer-nos informações sobre a cidade na qual ele ja estava morando há algum tempo a serviço do exército.

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 Aproveitei um orelhão do quartel do Quinto Batalhão de Infantaria de Selva para ligar aos meus pais em São Paulo – SP, a fim de tranquilizá-los quanto à minha chegada segura a São Gabriel da Cachoeira. Eu não tinha telefone celular na época. E não me lembro de ninguém dos colegas que tivesse (talvez pela dificuldade do serviço de celular na região naquela época). Do mesmo orelhão, liguei também para o Sr. Barakat Waked, empresário da Zona Franca de Manaus, e conterrâneo meu, não apenas de de país, mas também de cidade (Kamed EL-Lawz, localizada no Vale do Bekaa, Líbano). Na minha breve estadia em Manaus, o Sr. Barakat, seu filho Charif, e toda a família Waked tinham me honrado e agraciado com sua generosidade, hospitalidade e amizade. Este contato com amigos conterrâneos serviu para atenuar as agruras da difícil estadia no quartel na capital do estado do Amazonas.

A Cidade

Localizado no extremo Noroeste do Brasil, o município de São Gabriel da Cachoeira, também conhecido como região da “Cabeça do Cachorro”, é o terceiro maior município da federação em extensão territorial, com uma área total estimada em cerca de 109 mil km quadrados, área maior que a de muitos países do globo terrestre. Em 2008, a população total deste município era estimada em cerca de 25 mil habitantes, sendo 15 mil na área urbana, e cerca de 10 mil espalhados nas cerca de 500 comunidades indígenas ribeirinhas. A riqueza cultural do município é imensa, com 22 etnias diversas, com todas as implicações de diversidade linguística e cultural que este fato acarreta.

Incrustada entre o rio e a selva, a área urbana de São Gabriel é isolada do resto do mundo. Não há nenhum acesso por terra. Só se chega para lá pelas vias fluvial ou aérea. A linha do Equador passa pelo município, poucos quilômetros ao norte do centro da cidade, localizado na margem esquerda do Rio Negro. Dentre os marcos geográficos notáveis da cidade, podemos citar: 1) A Bela Adormecida, espécie de uma elevação montanhosa coberta pela selva, localizada na margem direita do Rio Negro, e vista da outra margem do rio, onde fica a cidade; 2) A Ilha do Sol, na frente da praia principal de São Gabriel, nesta ilha, é delicioso passar momentos de lazer e folga; 3) A Cachoeira, ponto mais estreito do Rio Negro em toda a sua extensão, desde a nascente até o encontro com o Rio Solimões (na cachoeira a correnteza torna-se mais forte). Há crenças de que o Forte São Gabriel, que deu nome ao município, e que foi construído pelos portugueses na época do Brasil colônia, tenha sido erguido neste ponto da cachoeira. Não sobrou muita coisa deste forte, apenas dois canhões que foram transferidos para a sede do Quinto Batalhão de Infantaria de Selva.

Em 2008, São Gabriel da Cachoeira tinha o seu comércio dominado por comerciantes em boa parte nordestinos, que faziam o abastecimento da cidade com mantimentos e produtos vindos da civilização. É considerada a cidade mais indígena do Brasil, por ser a sua população, em sua esmagadora maioria, composta por membros das mais de vinte etnias indígenas que historicamente habitam o Alto Rio Negro. Os migrantes de outras regiões do Brasil são uma restrita minoria, e ocupam-se principalmente com o comércio e outros serviços.

O que me chamou a atenção de uma forma gritante, e talvez positiva, era a ausência das grandes redes de comércio varejo e outras empresas existentes nas demais regiões do Brasil e do mundo. Nada das grandes redes nacionais e internacionais de supermercados e hipermercados. Nada das redes nacionais e internacionais de lanchonetes e restaurantes. O comércio tem um aspecto local e regional somente. As mercadorias vêm por grandes balsas de Manaus principalmente. O transporte aéreo de cargas é mais restrito às Forças Armadas. As instituições religiosas cristãs marcam forte presença, com destaque para a Igreja Católica, que teve papel fundamental no desbravamento e desenvolvimento da região. Um outro fato que me chamou muito a atenção é a presença de uma loja maçônica no centro da cidade. Diferentemente de tantas outras cidades brasileiras interioranas, não vi nenhum marco do Rottary ou Lions, que junto com a maçonaria formam um trio de presença obrigatória em muitas praças dos centros de muitas cidades no Brasil afora. Em vão procurei a presença de algum árabe ou muçulmano. Parecia que eu era o único árabe e muçulmano naquele gigante município amazônico naquele momento. Não achei nenhuma mesquita ou associação árabe. Me causou estranheza os árabes não terem chegado até lá ainda, pois já nos primórdios do sec XX, comerciantes árabes corriam a bacia amazônica de Belém a Acre.

O meio de transporte mais usado por nós na cidade era o tal da “lotação”. Esta lotação não era nada mais que carro comum de passeio que funcionava como táxi que ia pegando passageiros em diversos pontos da cidade, até atingir a sua lotação máxima (normalmente quatro passageiros, sendo o motorista o quinto). A tarifa era única: com apenas R$ 2,00, você podia ir de qualquer ponto da área urbana a qualquer outro. Esta tarifa não incluía a corrida para o aeroporto, com preço bem mais salgado. A localização do aeroporto é fora da área urbana à qual é conectado por uma estrada que corta a selva. De aspecto bem simples, e servido por apenas uma rudimentar cafeteria, aeroporto é uma ilha no meio da selva. A frota de veículos de “lotação” de São Gabriel era composta por carros populares comuns, a maioria operados por motoristas provenientes da região Nordeste do país.

Naquele ano, não havia nenhum shopping center na cidade. Na principal rua comercial da cidade, havia uma edificação com um conjunto de lojas, restaurante e sorveteria, mas nada que de longe pudesse ser chamado de shopping center. Um dos nossos pontos prediletos de lazer era a principal praia da cidade. No tempo da estação seca, quando chegamos lá em fevereiro de 2008, esta praia tinha uma considerável faixa de areia, que serve para as atividades de lazer. Na estação da cheia, boa parte desta praia fica submersa. Senti falta de livrarias, teatros e cinemas na cidade. Em termos de atividade cultural urbana, a cidade era totalmente carente.

A Forte Presença do Exército

Pode-se dizer que São Gabriel da Cachoeira, além de ser a cidade mais indígena do Brasil, é uma das cidades nas quais a presença militar faz-se mais forte, decisiva e influente. Fora os dois quartéis localizados na área urbana, e constituindo as sedes da Segunda Brigada de Infanataria de Selva e do Quinto Batalhão de Infantaria de Selva, há o Hospital de Guarnição, mantido, administrado e servido pelo Exército Brasileiro. Isso sem falar da Vila Militar, que serve de moradia aos oficiais, e do hotel militar, localizado próximo à praia do centro, num morro de belo panorama.

Talvez São Gabriel seja uma das poucas cidades do país em que você encontra militares fardados perambulando pelas ruas e avenidas da cidade, com uma relativa frequência. Isso quando você não se depara com eles nas manhãs são-gabrielenses a realizar as corridas de rua (previstas no treinamento físico militar de rotina) nas vias da cidade.

Sem dúvida, os militares incluem-se na elite financeira, intelectual e social do município tão carente em infra-estrutura e tão rico em natureza, biodiversidade e recursos minerais. Mesmo com a rotatividade dos oficiais e sargentos, oriundos das mais diversas regiões do país, a constante presença militar movimenta a economia local e marca todas as esferas do gigante município amazônico. Nas comunidades do município, mais afastadas selva adentro, torna-se cada vez mais rara e escassa a presença de dinheiro em espécie. O escambo é ainda uma prática difundida na região da Cabeça do Cachorro.

Os oficiais de carreira do Exército Brasileiro que vão a serviço a São Gabriel da Cachoeira, geralmente permanecem por dois anos no município. O atrativo para servir nesta região afastada e isolada do país constitui o gordo galardão em dinheiro que cada oficial recebe para fazer a mudança de sua cidade de origem para São Gabriel e, depois, recebe um outro considerável galardão em dinheiro para voltar à sua cidade de origem, ao término do período de serviço. Isso além do adicional mensal (auxílio-fronteira) que cada militar recebe junto com o seu soldo por servir numa região fronteiriça. Portanto, São Gabriel é uma cidade amazônica indígena e militar. Esta afirmação dá uma idéia bem ampla e precisa da vida deste excêntrico município.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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