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A declaração histórica da B’Tselem e a guerra aberta de Israel contra sua própria sociedade civil

Vista do Domo da Rocha, no complexo de Al-Aqsa em Jerusalém, a partir da cidade de Abu Dis, na Cisjordânia ocupada, separada por Jerusalém pelo muro do apartheid, em 23 de novembro de 2020 [Ahmad Gharabli/AFP/Getty Images]
Vista do Domo da Rocha, no complexo de Al-Aqsa em Jerusalém, a partir da cidade de Abu Dis, na Cisjordânia ocupada, separada por Jerusalém pelo muro do apartheid, em 23 de novembro de 2020 [Ahmad Gharabli/AFP/Getty Images]

“Um regime de supremacia judaica do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo: Isto é Apartheid” – este é o título de um relatório divulgado em 12 de janeiro pela proeminente organização israelense de direitos humanos B’Tselem. Não importa como interpretamos suas descobertas, o relatório é avassalador. A resposta oficial israelense meramente confirmou o que a B’Tselem denunciou sem sombra de dúvida.

Aqueles de nós que há anos e anos denunciamos Israel por ser um estado antidemocrático, governado por um regime de apartheid que discrimina sistematicamente suas minorias étnicas e raciais, em favor de uma maioria judaica, não nos vemos diante de nenhuma novidade na declaração da B’Tselem. Portanto, pode parecer que o relatório, que destacou a discriminação racial em quatro áreas majoritárias – terra, cidadania, liberdade de movimento e participação política –, apenas reverberou o óbvio. De fato, foi muito além.

A B’Tselem é uma organização de direitos humanos israelense com enorme credibilidade. Porém, como outros grupos de direitos humanos em Israel, raramente foi longe o bastante para contestar a autodefinição fundamental do estado sionista como democracia. Sim, em diversas ocasiões acusou corretamente o governo e o exército de Israel de cometer práticas antidemocráticas, violações humanitárias flagrantes e assim por diante. Mas demolir a própria razão de ser, a premissa básica que concede legitimidade a Israel aos olhos de seus cidadãos judeus e muitos outros em todo o mundo, é algo completamente novo.

“A B’Tselem rejeita a percepção de Israel como democracia (dentro da Linha Verde) que simultaneamente mantém uma ocupação militar temporária (para além dela)”, concluiu a organização israelense, ao argumentar: “Critérios para definir o regime israelense como regime de apartheid foram cumpridos, considerando o acúmulo de políticas e leis projetadas em favor para entrincheirar seu controle sobre os palestinos”.

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Sejamos claros sobre o verdadeiro sentido destas palavras. A principal organização de direitos humanos de Israel não está argumentando que o estado israelense pouco a pouco torna-se um regime de apartheid ou que age em contrariedade com o espírito da democracia ou que o regime opressivo se restinge aos confins geográticos dos territórios palestinos ocupados. Nada disso. Segundo a B’Tselem – que por décadas documenta diligentemente as várias práticas do governo israelense, sobre questões políticas, militares, sanitárias, relativas à propriedade de terras e distribuição de água, entre muitas outras –, Israel é neste momento presente, em absoluto, um regime antidemocrático de apartheid.

A análise da B’Tselem é muito bem vinda, não como admissão tardia de uma realidade evidente, mas como passo importante para estabelecer uma narrativa comum entre palestinos e israelenses sobre sua relação, posição política e ação coletiva, a fim de desmantelar o apartheid israelense.

‘Um regime de supremacia judaica do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo: Isto é Apartheid’ [B’Tselem]

‘Um regime de supremacia judaica do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo: Isto é Apartheid’ [B’Tselem]

Historicamente, grupos israelenses que criticam seu governo são consagrados com uma maior margem de liberdade do que grupos palestinos que fazem o mesmo. Contudo, não mais.

A liberdade de expressão do povo palestino sempre foi severamente limitada e a mera crítica à ocupação israelense leva a medidas extremas, como espancamentos, prisões arbitrárias e mesmo assassinatos. Em 2002, uma entidade supostamente não-governamental, financiada pelo governo, denominada Monitor, foi criada precisamente para monitorar e controlar organizações palestinas de direitos humanos nos territórios ocupados, incluindo Addameer, Centro al-Mezan, al-Haq, entre outros.O exército israelense invadiu os escritórios da Addameer em Ramallah, Cisjordânia ocupada, em setembro de 2019, como um dos inúmeros exemplos de tais práticas violentas.

Entretanto, as ações do governo israelense nos últimos anos apontam agora para uma mudança irrefutável de paradigma, na qual organizações da sociedade civil israelense também são cada vez mais consideradas inimigas do estado, atacadas por uma miríade de formas, incluindo difamação, restrições financeiras e corte no acesso a canais da opinião pública.

Este último método foi plenamente exposto em 17 de janeiro, quando o Ministro da Educação de Israel Yoav Galant anunciou no Twitter ter instruído sua pasta a “impedir a entrada de organizações que chamam Israel de ‘estado de apartheid’ ou desonram os soldados israelenses de palestrar nas escolas”.

Curiosamente, Galant demonstrou o ponto da B’Tselem, que contestou a própria alegação de democracia e liberdade promovidas por Israel, justamente ao reprimir o direito de expressar críticas de profissionais humanitários, educadores e intelectuais, em contraponto legítimo à narrativa oficial do governo. Em resumo, a decisão de Galant é a definição funcional de totalitarismo em curso.

Entretanto, a B’Tselem não recuou. Ao contrário, expressou sua determinação em “manter sua missão de documentar a realidade” e levar suas descobertas ao público israelense e internacional. Foi ainda além, quando Hagai el-Ad, diretor da organização, reuniu-se com centenas de estudantes israelense em 18 de janeiro, para debater a inconsistência entre ocupação militar e respeito aos direitos humanos. Após o evento, el-Ad compartilhou em seu Twitter: “A palestra da B’Tselem ocorreu nesta manhã e o governo de Israel terá de nos aturar até o fim de seu regime de apartheid”.

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O episódio entre Galant e a B’Tselem não é isolado, mas parte de muitos outros exemplos, que demonstram que o governo israelense torna-se agora um estado policial não apenas contra os árabes palestinos, mas até mesmo contra cidadãos judeus.

De fato, a decisão do Ministério da Educação tem raízes em uma legislação prévia, promulgada em julho de 2018, que ficou conhecida como “lei do Breaking the Silence”. A organização civil Breaking the Silence nasceu em Israel para dar voz a veteranos do exército que tornaram-se críticos à ocupação, dedicados a educar o público israelense sobre a imoralidade e ilegalidade das práticas militares do estado sionista na Palestina ocupada. Para silenciar os soldados, o ex-Ministro da Educação Naftali Bennett ordenou escolas a impedirem tais críticos conscientes de utilizar seus espaços e falar diretamente com os estudantes.

A mais recente decisão do governo, tomada por Galant, somente aprofundou a mesma definição, ao expandir assim as restrições impostas a todos os israelenses que recusam-se a aderir à retórica do regime.

Por anos, um pressuposto persistente dentro do discurso Israel-Palestina insistiu que, embora o estado sionista não seja uma democracia perfeita, é todavia uma “democracia aos judeus”. Democracias de verdade devem ser fundadas na igualdade e inclusão, mas a máxima propagandeada sobre Israel concedeu alguma credibilidade ao argumento de que Israel ainda pode equilibrar a balança, ao declarar-se democracia enquanto permanece como estado exclusivamente judaico.

Esta noção agora cai por terra. Mesmo aos olhos de muitos judeus israelense, o governo de Israel já não possui mais qualquer ideário democrata. De fato, como sintetizou bem a B’Tselem, Israel é um regime de supremacia judaica – do rio ao mar.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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