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Os Mascates – Como os ‘brimos’ ajudaram a construir o Brasil moderno?

Vendedor ambulante (mascate) [foto unsplash.com]
Vendedor ambulante (mascate) [foto unsplash.com]

Nas últimas três décadas do século XIX, teve lugar o início do afluxo de imigrantes do Oriente Próximo com destino ao Brasil. Obviamente, o Brasil não era o único destino procurado pelos imigrantes levantinos de então. A maior parte dos países das Américas do Norte, do Sul e Central receberam imigrantes da região da Síria Histórica. Naquela época, do final do século XIX até o final do da Primeira Guerra Mundial no século XX, a Síria Histórica fazia parte do Império Turco-Otomano, que acabou desintegrando-se após a sua humilhante derrota naquela guerra global. Por este motivo, os imigrantes árabes do Levante que chegavam aos portos brasileiros naquela época vinham com passaportes do Império Turco-Otomano, o que lhes rendeu, por parte da população brasileira, o adjetivo de “turcos”.

No entanto, este adjetivo não corresponde de forma exata e precisa à etnia da maior parte dos imigrantes levantinos. Em sua maioria eram árabes, tanto cristãos quanto muçulmanos, oriundos principalmente dos territórios correspondentes hoje aos estados da Síria e do Líbano. Os territórios que correspondem hoje aos estados da Palestina e da Jordânia enviaram imigrantes ao Brasil, porém em escala bem menor que os estados co-irmãos da Síria e do Líbano. Por este motivo, vamos adotar o termo imigração sírio-libanesa para nos referirmos à imigração dos árabes levantinos ao Brasil.

Embora tenha passado mais de um século desde o início da imigração sírio-libanesa, ainda o adjetivo “turco” tem o seu uso relativamente comum para referir-se aos imigrantes que não tem nada de turco no âmbito étnico e nem no âmbito linguístico. Com a facilidade do acesso à informação que caracteriza a nossa época, tem crescido a consciência da população brasileira a respeito das diferenças étnico-culturais entre termos como “turco”, “árabe”, “sírio”, “libanês”. Curiosamente, a comunidade verdadeiramente turca é ínfima se comparada com a gigantesca comunidade árabe de sírios, libaneses, palestinos, jordanianos e outros, com descendentes já plenamente incorporados e adaptados à sociedade brasileira.

Imigrantes libaneses, 1940 [Foto arquivo pessoal família Sati]

Imigrantes libaneses, família Sati, 1960 [Foto arquivo pessoal ]

A História relata com ênfase a famosa viagem que o maior monarca brasileiro, D. Pedro II fez ao Oriente Médio, visitando o Egito e o Levante, com visitas a monumentos históricos e ruínas arqueológicas, como as Pirâmides do Egito e as ruínas romanas de Baalbeck (a Heliópolis romana), cidade localizada no Vale do Bekaa, atual Líbano. Não é de estranhar a realização desta viagem, uma vez que D. Pedro além de ser um refinado intelectual e detentor de uma cultura vasta, era conhecedor do idioma árabe, no qual era fluente na sua norma culta, chegando a traduzir a famosa obra das Mil e Uma Noites do árabe para o português. Dizem os relatos que, nesta viagem, o soberano brasileiro convidou os súditos árabes levantinos do Império Turco-Otomano para emigrar ao Império Brasileiro, que era um vazio demográfico de dimensões continentais naquela época, e necessitava de gente para habitar e desenvolver o seu vasto território.

Não faltavam motivos aos levantinos para buscarem novas oportunidades de vida no Novo Mundo. As últimas décadas de vida do Império Turco-Otomano foram marcadas por conflitos e crises que levaram a população a níveis de pobreza e miséria crescentes. Além disso, o alistamento militar obrigatório dos jovens nas constantes guerras internas e externas do Império Turco-Otomano causava descontentamento das populações. Ao mesmo tempo, as notícias que chegavam do Novo Mundo descreviam a prosperidade emergente das Américas, terras praticamente inexploradas àquela época. Uniu-se à fome com a vontade de comer, e levas atrás de levas de emigrantes começaram a embarcar dos portos orientais do Mediterrâneo rumo às Américas.

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Diferentemente dos imigrantes europeus que chegavam ao Brasil no final do século XIX  e início do século XX, que chegavam para ocupar-se na agricultura, a maior a vasta maioria dos imigrantes sírio-libaneses engajou-se nas atividades comerciais. Eram pessoas provenientes de regiões rurais pobres e marginalizadas, mas que encontraram na atividade comercial uma forma de lutar pela conquista da tão sonhada prosperidade. Vinham apinhados em navios que cruzavam o Mar Mediterrâneo, com múltiplas escalas em portos asiáticos, africanos e europeus, até fazer a travessia do Atlântico. Muitos vinham com recursos muito parcos, e até mesmo a passagem do navio era muitas vezes conseguida somente em forma de dívida que era paga pelo imigrante com remessas provenientes dos seus primeiros rendimentos na nova pátria.

Tendo em vista o estado de pobreza que caracterizava a maior parte dos imigrantes sírio-libaneses, a falta de capital impedia que desenvolvessem atividades comerciais numa escala maior. A solução encontrada foi a venda ambulante de casa em casa e de porta em porta. Os vendedores ambulantes que exerciam este tipo de atividade recebiam o nome de “mascates”, do qual deriva o verbo “mascatear”, que significa exercer este tipo de venda ambulante. Os mascates desbravaram o Brasil por via férrea, fluvial ou nos lombos animais de montaria. Muitos deles instalavam-se nas periferias das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro. Outros iam para as mais diversas e longínquas cidades interioranas.

A palavra “mascate” deriva do nome próprio “Masqat”, capital atual do estado de Omã, localizado na Península Arábica. É provável que este termo tenha ganhado espaço na língua portuguesa por ocasião da ocupação de “Masqat” pelos portugueses há cerca de cinco séculos, à época das Grandes Navegações. O legado português da colonização desta cidade litorânea do Mar das Arábias foi a construção de fortes que resistiram até os dias de hoje. Não encontrei a ligação entre “Masqat” e “mascate”, mas a Enciclopédia Larousse Cultura confirma esta origem etimológica.

Etimologia à parte, e dado que a maior parte dos mascates era semi-analfabeta ou completamente analfabeta, pelo fato de terem vindos de condições extremamente adversas no Levante, é praticamente possível afirmar que a maioria deles desconhecia a raiz árabe do termo aportuguesado que descrevia a profissão deles. A maioria dos mascates carecia de refinamento cultural, mas em contrapartida tinha uma ferrenha força de vontade para superar as adversidades, vencer os obstáculos e prosperar. E prosperar significava juntar capital suficiente para poder montar um comércio fixo, ou seja, inaugurar a tão sonhada “lojinha” ou “armazém”. Aliás, cabe lembrar aqui que a palavra armazém é herança árabe da época em que os árabes ocuparam a Península Ibérica. Armazém deriva da palavra árabe “Al-Makhazen”.

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A vida dos mascates não era nada fácil. Tinham que enfrentar dificuldades e adversidades das mais diversas naturezas. Desde as intempéries do tempo, até a insuficiência de recursos financeiros para ter condições condignas de trabalho. Atravessavam longas distâncias a pé em busca da sobrevivência em primeiro lugar e, se possível, da prosperidade numa etapa posterior. Esta atividade não foi exclusividade dos imigrantes pioneiros somente, mas persistiu até as décadas finais do século XX, embora em escala menor e em condições já melhores. Todo imigrante novato contava com a comunidade sírio-libanesa já existente e relativamente organizada no Brasil.

O fato de dizermos que os mascates constituíram a maioria das levas de imigrantes não significa que não houve outras categorias de imigrantes em melhores condições sócio-econômicas. Eram geralmente membros das elites das cidades da Síria e do Líbano que vinham ao Brasil já com certos recursos em mãos. A maioria dos imigrantes oriundos desta categoria empreendeu atividades comerciais e empresariais também, mas sem precisar passar pela fase de mascate.

Herdeiros da milenar cultura árabe e levantina, os mascates, mesmo em condições adversas, e no meio da aguerrida luta pela sobrevivência, não perderam a cordialidade e os bons modos. Daí vem a forma carinhosa com a qual os mascates tratavam o próximo, seja ele conterrâneo ou não, que é o famoso “brimo”. Esta palavra nada mais é do que a palavra portuguesa “primo”. Mas, dada a inexistência do fonema “p” na língua árabe, os imigrantes eram incapazes de pronunciar todo e qualquer “p” em qualquer palavra. Está aqui, então, explicada a origem do “brimo”, expressão que virou marca registrada da comunidade árabe no Brasil.

Muitos imigrantes vinham bem jovens ao Brasil, na segunda e terceira décadas de vida. Após o sucesso inicial nos negócios, vinha a preocupação dos “brimos” em constituir família. As esposas muitas vezes eram buscadas da Síria, Líbano ou eram da comunidade sírio-libanesa do Brasil. Isso não significa que não houve casamentos entre “brimos” e brasileiras, mas era pensamento corrente que o árabe deveria buscar uma esposa árabe. Não eram raros os casamentos arranjados. Como tudo na vida e no mundo, nos dias de hoje este cenário é completamente diferente. As comunidades árabes no Brasil perderam muito dos valores dos pioneiros e ancestrais.

Houve casos de mascates que começaram do nada e acabaram virando grandes magnatas. Outros não tiveram tanta sorte assim. Mas a maior parte dos “brimos” acabou adaptando-se à nova terra, adotando o Brasil como pátria definitiva, na qual nasceram filhos e netos, que acabaram tornando-se cidadãos brasileiros, com seus direitos e deveres. O incentivo dos imigrantes ao estudo dos filhos tornou possível a chegada de muitos destes filhos de imigrantes sírio-libaneses aos mais altos postos e cargos.

Os nomes árabes na política brasileira dos séculos XX e XXI revelam o quão forte foi a participação deste grupo étnico-cultural para o crescimento do Brasil. O ápice desta participação foi a chegada do filho de libaneses, o advogado e político Michel Temer, ao cargo de Presidente da República. Nas profissões liberais e nas universidades brasileiras os nomes e sobrenomes árabes tem uma honrosa participação. Basta citarmos o Hospital Sírio-Libanês que tornou-se referência no tratamento de poderosos e celebridades. Até na Literatura e Letras brasileiras temos uma representação árabe honrosa. Aqui gostaríamos de citar três nomes: os escritores Raduan Nassar e Milton Hatoum, e o filólogo Antônio Houaiss, o autor do famoso dicionário Houaiss. E nunca é demais lembrar a influência árabe na culinária brasileira, que já adotou e adaptou muitos pratos e iguarias árabes.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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