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O legado do general Qassem Soleimani

Protesto contra o assassinato de Comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária Iraniana, Qasem Soleimani, por um ataque aéreo dos EUA na capital iraquiana Bagdá, em 3 de janeiro de 2020 [Fatemeh Bahrami / Agência Anadolu]
Protesto contra o assassinato de Comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária Iraniana, Qasem Soleimani, por um ataque aéreo dos EUA na capital iraquiana Bagdá, em 3 de janeiro de 2020 [Fatemeh Bahrami / Agência Anadolu]

No dia três de janeiro de 2021 completa um ano do martírio do tenente-general Qassem Soleimani (1957/2020), militar iraniano cuja liderança é reconhecida em todo o Grande Oriente Médio.

O assassinato foi realizado pelas forças armadas dos Estados Unidos, no Iraque, com uso de drones de ataque. Soleimani era responsável pelo comando da Força Expedicionária Al-Quds, unidade de elite e de operações no exterior dos Corpos da Guarda Revolucionária Islâmica Iraniana (IRGC ou Sepâh em farsi). Outra vítima do mesmo atentado terrorista foi Abu Mahdi al-Muhandis (1954/2020), comandante das Forças de Mobilização Popular (PMF da sigla em inglês ou al-Hashdi ash-Sha’bi em árabe), a mais importante frente de milícias iraquianas, estabelecida para garantir o recrutamento massivo pluriétnico e inter-religioso.

Um resumo de sua trajetória

Podemos afirmar, sem exagero, que esses dois comandantes são diretamente responsáveis pela derrota militar do Daesh, grupo terrorista salafista-wahhabita que se autodenomina Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS). Esta pode ser a mais conhecida vitória, mas não é o único triunfo militar e anti-imperialista de Soleimani. Seu envolvimento em operações de defesa nacional e solidariedade externa no Levante, Península Arábica e Mesopotâmia datavam de três décadas, desde a infame guerra de agressão promovida pelo Iraque de Saddam Hussein e financiada pelo Ocidente (incluindo o abundante e criminoso emprego de armas químicas).

A atuação desse general está diretamente vinculada à soberania libanesa e à resistência palestina, ajudando ambos os povos a combater os invasores israelenses. Sem a ação da Al Quds sob seu comando, a Síria poderia ser dirigida por integristas da Al Nusra e o Iêmen por aliados da Al Qaeda apoiados por Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Já o Iraque, além do terror do Daesh, estaria ainda sob a tutela dos EUA, refém de contratos draconianos de petróleo e sem capacidade de retomar sua soberania, nem o destino do enorme território multifacetado.

Trump assumiu o ato criminoso: alegou combater um “terrorista”

Infelizmente, o público nos países ocidentalizados é bombardeado por uma noção absurda da ideia de “terrorismo”. Como nos explica com riqueza de detalhes o intelectual palestino Edward Said (1935/2003), as visões “orientalistas” que nos são impostas fazem com que milhões de pessoas – incluindo boa parte dos árabe-descendentes na diáspora das Américas – tenham uma interpretação caricata e obtusa de “terrorismo”. O então presidente Donald Trump declarou abertamente que suas forças assassinaram ao tenente-general, uma autoridade reconhecida no governo do Irã (com assento na Assembleia Geral da ONU) e durante uma estada oficial no Iraque. Logo, o Império admite seu ato terrorista, não se dando o trabalho sequer de operar através da chamada false flag (escamoteando a origem e a autoria do atentado) ou talvez de modo terceirizado.

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A fala de Trump foi de uma “sinceridade” absurda. Justiça seja feita, o ex-proprietário de cassinos e notório especulador imobiliário sempre se portou dessa maneira. No que se refere ao Grande Oriente Médio, o condutor de reality show fez seu circo dos horrores desde a primeira viagem à região. Na ocasião, garantiu uma enorme compra de armamentos pela Arábia Saudita e se comprometeu com seu cúmplice Benjamin Netanyahu a transferir a embaixada do Império de Tel Aviv para a Jerusalém ocupada.

O raciocínio é simples, quase que simplório por parte do caricato bufão à frente da Superpotência. Se as vontades do Império apontam para um rumo e um país soberano projeta sua liderança militar no sentido contrário, a máquina de propaganda cruzada não hesita em taxar como “terrorista” ao inimigo, por mais legítimo que ele seja. Como o próprio Soleimani admite em discurso proferido em 2018 , após Trump ter ofendido o presidente do Irã, ainda que ocupasse o posto mais poderoso do planeta, Donald tinha uma retórica de gerente de cassino e comportamento aquém da sua posição. Como jogador inveterado e empresário de duvidosa reputação, foi dobrando a aposta até criar tensão no Oriente Médio ainda com consequências imprevisíveis.

Quem são os terroristas?

A dubiedade moral do Império não é exclusividade de Trump, embora o derrotado candidato à reeleição seja um de seus exemplos mais perfeitos. Acusar de “terrorista” um general de carreira que arrisca sua vida por mais de 30 anos consecutivos justamente combatendo forças beligerantes – regulares ou não – que atentam contra alvos não legítimos diante do direito internacional é o cúmulo. É como Israel acusando a sólida liderança do Hamas em Gaza (por sinal partido eleito no último pleito geral na Palestina Ocupada), que resiste aos bombardeios indiscriminados e ao cerco criminoso. Tal e qual todo e qualquer gabinete de Tel Aviv afirmando que o Hezbollah (partido legítimo e com assentos na coalizão de governo em Beirute) é um partido “terrorista” quando justamente essa força político-militar é diretamente responsável pela expulsão dos invasores do sul do Líbano. Não por acaso os que acusam têm origem em agrupações terroristas (Irgun, Stern, Palmach e também a Haganah na destruição de aldeias inteiras) e são os mesmos criminosos que promoveram limpeza étnica e ocupação ilegal de territórios palestinos, em 1948 e 1967.

A lista seria grande de ofendidos pelo imperialismo. Posso afirmar que por essa “lógica”, o general egípcio Gamal Abdel Nasser (1918/1970) seria “terrorista” ao nacionalizar o acesso ao Canal de Suez; ou o presidente da Argélia Houari Boumedienne (1932/1978) deveria por tanto manter o petróleo de seu país sob o controle francês! No limite do absurdo, o sultão Salahuddin (1137/1193) seria o “criminoso internacional” ao comandar as forças que libertaram Jerusalém após nove décadas de tirania cruzada, garantindo com seu triunfo o fim da apostasia e a proteção das minorias, como cristãos do oriente e hebreus?! É esse tipo de contrassenso e falsificação da história que tentam impor nas audiências ocidentalizadas, incluindo os quase 16 milhões de descendentes de árabes no Brasil. Todas e todos nós nos acostumamos a ver nossos patrícios serem bombardeados por aviões de caça destruindo o Líbano ou tanques atropelando crianças tanto na 1ª como na 2ª Intifada e, ainda assim, os grupos de mídia chamavam os protetores dessas vítimas como “operadores do terror”. É hora de dizer basta de mentiras e de inversões de valores.

Se há uma especialidade reconhecida no mártir Qassem Soleimani é justamente a de montar amplos arcos de alianças, superando o sectarismo intrínseco, e desta forma, poder tanto combater o terrorismo integrista como os invasores eurocêntricos e anglo-saxões, assim como seus aliados normalizadores do Apartheid israelense na região. Considerando o fato dos mesmos aliados dos EUA serem os maiores financiadores do terror salafista, só nos resta concluir que o assassinato do tenente-general iraniano teve como principal motivação suas atividades anti-imperialistas e os intentos cada vez mais frutíferos de diminuir ou expulsar os cruzados do Oriente Médio.

A única conclusão possível

A razão me leva a concluir algo simples. Qualquer pessoa com honestidade intelectual e estudiosa dos países árabes e do mundo islâmico tem de reconhecer o legado destes voluntários sob a responsabilidade do general iraniano. Como militar profissional e intelectual refinado, sempre deu exemplo de conduta em todos os níveis, sendo um bastião em defesa dos oprimidos e da luta anti-imperialista. O legado de Qassem Soleimani é a própria resistência.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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