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Thomas Friedman e a desinformação da “burrice”

Manifestantes carregam imagem de Qassem Soleimani, comandante das Forças al-Quds, grupo de elite da Guarda Revolucionária do Irã, assassinado por ataque aéreo americano em Bagdá, durante um protesto na Praça Palestina, em Teerã, Irã, 4 de janeiro de 2020 [Fatemeh Bahrami/Agência Anadolu]

Diariamente somos surpreendidos pelo exagero na prepotência e na capacidade de desinformar, fazer circular ideias equivocadas, enfim, “mentir com estilo”. A estas técnicas de manipulação de audiências massivas – embora circular e muitas vezes temporária – o Império e seus aliados vêm denominando de “disputa narrativa ou disputa pelo controle da narrativa”. Como em todas as guerras, a primeira vítima é a verdade. Na guerra híbrida de 4ª geração o padrão é o mesmo. Vejamos um exemplo de inversão de prioridades e denominações pejorativas para fazer valer uma tese falsa, onde quem reage agride e quem agride se torna apenas “preventivo”.

No dia 03 de janeiro de 2020, ainda antes da resposta iraniana ao ato terrorista autorizado pelo presidente do Império Donald Trump, o célebre articulista e ex-editor do New York Times, Thomas Friedman, produziu um artigo de opinião que correu o mundo ocidentalizado. O título em inglês é “Trump kills Iran’s most overrated warrior” (“Trump mata o guerreiro mais superestimado do Irã”). E a linha de apoio afirma: “Soleimani pushed his country to build an empire, but drove it into the ground instead” (“Soleimani compeliu seu país a construir um império; em vez disso, o destruiu.”)

Em nosso país, o texto de Friedman – autor da infame ode à mundialização capitalista, o best-seller neoliberal “O mundo é plano” (editado no Brasil em 2005) – foi traduzido e publicado pelo jornal Folha de São Paulo e depois reproduzido em diversas publicações na internet. O principal veículo da família Frias fez circular a ideia de Friedman – Thomas, que também propagandeia Milton Friedman, mesmo que de forma dissimulada – ao afirmar a “burrice” iraniana. O título em português é “General iraniano morto em ataque americano era burro e superestimado”.

Quando Friedman se refere ao major-general Qasem Soleimani (1957-2020), refere-se ao Estado persa, considerando que o militar assassinado por ordem de Trump se reportava diretamente ao Líder Supremo, o Grande Aiatolá Ali Khamenei, logo se trata do mais alto nível decisório do país. Para Thomas, portanto, o Irã seria “burro” porque não seguiu aproveitando o bom momento de crescimento econômico advindo das negociações multilaterais coordenadas pela ONU. Nestes diálogos, a administração de Barack Hussein Obama – com John Kerry à frente do Departamento de Estado – aliviaram uma parcela importante das sanções e do bloqueio econômico. As negociações para controle da pesquisa atômica se deram em 2015 – com a participação intensa da diplomacia brasileira à época – implicando em um crescimento econômico de 12% em 2016.

A “burrice” seria não seguir o boom de sua própria economia com mediana complexidade e se “aventurar” a ampliar a atuação na política regional no Oriente Médio. Para Thomas Friedman, ser “inteligente” é ficar “bem comportado”, de maneira quieta, acatando a hegemonia fática de Arábia Saudita e Israel, e não participando de conflitos onde operam seus principais aliados. Enfim, a “esperteza” seria entregar o xiismo ampliado à própria sorte, incluindo a relação com o Hezbollah na defesa da soberania nacional libanesa. “Inteligência” poderia ser ajudar a entregar a Palestina às traições da Autoridade “Nacional”, o cerco à Gaza e a ocupação da maior parte da Cisjordânia, incluindo o roubo de terras e valiosos recursos hídricos. “Sagaz”, para Friedman, seria portar-se como Egito após a traição de Camp David ou quiçá como os hachemitas do Reino da Jordânia, inventado pelos ingleses.

Poucas vezes li algo tão cínico, menosprezando tanto as capacidades do Estado persa como superestimando os países “ocidentais”, dentre os quais Israel se inclui sem sê-lo. De maneira alguma estou “defendendo” o Irã dos aiatolás de forma incondicional. Sou crítico – muito crítico, por sinal – de sua política doméstica assim como me oponho a relação com a maioria sunita na Síria. A defesa da democracia política, das liberdades religiosas, do federalismo étnico-cultural e de uma economia com base cooperativa rumando a um modelo socialista adequado ao Oriente Médio não encontra eco no cinismo de Thomas Friedman.

O articulista do New York Times compara o Irã a uma força imperial na região. Em parte, sim, Teerã exerce projeção de poder, mas essa é a norma das relações internacionais e não a exceção. Em termos gerais, o autor do livro “De Beirute a Jerusalém” (editado em 1989, facilmente encontrado em português) critica a única das quatro potências regionais (Israel, Arábia Saudita, Turquia e Irã) que enfrenta diretamente os cruzados ocidentais e não adere de forma completa aos russo-bizantinos.

Logo, a “burrice” dita por Thomas Friedman é a vontade soberana de exercer relações exteriores por parte de um país independente com assento na Assembleia Geral da ONU. Ou o ex-editor do jornal mais prestigiado dos EUA também considera que países independentes e com vontade própria sejam “burros”, devendo os povos do mundo se resignar a condições subalternas de capitalismo periférico?! Inteligente é a adesão ao imperialismo dos Estados Unidos ou quem sabe, à projeção de poder imperial de China e Rússia?! Foi “burrice” a independência da Argélia através de sua guerra de libertação? É uma “estupidez” lutar pelos direitos inalienáveis de cerca de sete milhões de palestinos vivendo sob cerco, ocupação militar e apartheid impostos pelo Estado de Israel sendo estes últimos também financiados por Washington? Foi a “ameaçadora” presença do Irã no Líbano e na Síria que “forçou” Israel a influenciar o governo do Império e mudar sua política na região? O argumento absurdo contido no texto é precisamente esse.

Será que Thomas Friedman considera uma “burrice” do Reino do Qatar a afirmação de sua política externa independente, coordenando esforços comerciais e produtivos tanto com o Irã como com a Turquia? Seria pelo “raciocínio” do colunista um “despropósito” a existência de um conglomerado de comunicação de altíssima qualidade como a Al Jazeera?

Pela “lógica” de Friedman, a luta Federalista e Socialista do Curdistão é outra “estupidez” já que para tal a esquerda curda precisa enfrentar ao menos duas potências regionais simultaneamente. Poderia seguir em exemplos diversos desta caricatura de análise, mas creio já haver atingido o objetivo.

Thomas Friedman não quer analisar nada, é pura guerra de propaganda, disputa pelo controle da narrativa e a apresentação de “estórias” embaladas por preconceitos supostamente sofisticados de quem o lê. A grande “burrice” de Thomas Friedman é superestimar suas próprias versões, as quais se forem verdadeiras, são simplesmente “vazamentos” combinados de relatórios de inteligência. Melhore seu desempenho senhor colunista do Império, porque essa desinformação forçosa não emplacou.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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