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Julgamento de Bashir pelo golpe de estado de 1989 vai contra a lei do Sudão

Presidente deposto do Sudão Omar al-Bashir, durante julgamento em Cartum, 1° de setembro de 2020 [Mahmoud Hjaj/Agência Anadolu]
Presidente deposto do Sudão Omar al-Bashir, durante julgamento em Cartum, 1° de setembro de 2020 [Mahmoud Hjaj/Agência Anadolu]

Como o Sudão será capaz de condenar o ex-ditador Omar al-Bashir e 27 réus por executar o golpe de estado, em 1989, permanece ainda um grande impasse. Não apenas perante a corte extraordinária, que reuniu-se ontem (23), mas também dentre o público geral, ansioso por justiça após trinta anos do fato.

A sessão desta quarta-feira foi interrompida após advogados de defesa apresentarem nova objeção a um dos juízes, referente à localidade e legalidade do caso, sob o estatuto de limitações do país. “Sob as atuais leis sudanesas, o julgamento do ex-Presidente Omar al-Bashir, por um golpe de trinta anos atrás, é ilegal. As leis do Sudão não permitem indiciamento a crimes que ocorreram há mais de dez anos; o caso, portanto, está atrasado em vinte anos”, declarou Sirajuddin Hamid, advogado de defesa, um dia antes de nova audiência.

Hamid é um advogado veterano e ex-diplomata no governo de Bashir. Seu cliente é Nafie Ali Nafie, ex-chefe de inteligência e secretário-geral do Partido do Congresso Nacional, que governou o país junto de Bashir. Nafie enfrenta julgamento ao lado de Bashir e outras 25 figuras de destaque no golpe de 1989, incluindo os vice-presidentes Ali Osman Taha e Hasan Bakri Salah e o ideólogo Ibrahim Sanousi, conselheiro próximo de Hasan Al-Turabi – então chefe do movimento islâmico, visto como orquestrador do golpe, que faleceu em 2016. Os réus são acusados de conspirar e conduzir um golpe em 30 de junho de 1989, durante o qual o exército prendeu líderes políticos sudaneses, suspendeu o parlamento e outras instituições estatais, fechou aeroportos e anunciou a tomada do poder em transmissão de rádio.

Caso julgados culpados, os réus enfrentarão pena de morte. Hamid alega que tal sentença também seria contra a lei. O advogado crê que o atual governo tenta emendar a legislação de modo retroativo, para assegurar um veredito de culpa. “Sob a lei atual, réus com mais de 70 anos de idade não podem receber pena de morte ou períodos extensivos em prisão”, argumenta Hamid.

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Promotores no julgamento de Bashir por corrupção enfrentaram a mesma dificuldade, ao assegurar uma sentença substancial. Bashir foi condenado por aceitar e utilizar ilegalmente US$25 milhões do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, mas sua pena resumiu-se a somente dois anos de prisão. Foi revelado que o ex-ditador não declarou oficialmente enormes somas de moeda estrangeira, destinadas a fundos públicos, para serem depositadas no Banco Central do país. Ainda assim, Hamid alega que o governo planeja secretamente emendar as leis para que os réus septuagenários seja executados publicamente.

Exército do Sudão remove Bashir [Arabi21]

Exército do Sudão remove Bashir [Arabi21]

Desde a deposição de Bashir, em 11 de abril de 2019, o governo de transição, liderado pelo General do Exército Abdel Fattah al-Burhan, recusou-se a entregar o ex-presidente ao Tribunal Penal Internacional (TPI), apesar da intenção de líderes civis em cooperar com a corte de Haia. Não obstante, governantes militares do país norte-africano sugeriram que Bashir enfrentasse julgamento por seus crimes em cortes híbridas, estabelecidas no próprio Sudão. Bashir é acusado pelo TPI de cometer genocídio, crimes de guerra e lesa-humanidade, durante a guerra civil de Darfur, com início em 2003, encerrada oficialmente com a assinatura do acordo de paz pelo governo transicional do Sudão, no fim de agosto.

O último julgamento pelo golpe de 1989 tornou-se possível apenas em 17 de agosto, pela assinatura da Convenção Constitucional, que permite indiciamento por qualquer crime cometido após 30 de junho de 1989. Na sessão de ontem, o advogado de defesa Baroud Sandal pediu a remoção de um juiz supostamente envolvido nos protestos sit-in contra o regime de Bashir, ao acusá-lo de entoar palavras de ordem contra os réus. “Nossos clientes sentem que a corte está contra eles”, alegou Sandal.

Os advogados de defesa prosseguiram ao argumentar que o julgamento violou a lei pois não houve instituição de uma “corte especial”, como supostamente previsto pelo documento constitucional. O julgamento foi adiado para 3 de outubro, à medida que os advogados de defesa também exigiram uma nova localidade capaz de aderir aos protocolos de distanciamento social. A nova manobra sucede um surto de coronavírus na Prisão Federal de Kober, onde muitos dos réus são mantidos. Todos os réus permanecem em condições de aglomeração diante da corte lotada, mantidos em jaulas de metal. O local sugerido – o chamado Salão da Amizade, edifício para conferências no Sudão – foi logo descartado, mas a ex-sede da Missão das Nações Unidas e União Africana em Darfur (UNAMID) está em fase de consideração.

A defesa alega ainda que sete dos oito juízes da Suprema Corte não renovaram contratos para seguir com o processo. Portanto, não há corte de recurso. Hamid descreveu a eventualidade como medida deliberada do governo para subverter o devido processo legal. Hamid confirmou que mais de cem servidores públicos do judiciário foram dispensados sob novas leis, a fim de desmontar as instituições do regime prévio. Sob a lei internacional, não há precedente para indiciamento de réus acusados de realizar um golpe de estado; promotores, contudo, têm precedente no Sudão, quando o ex-presidente Yaffar al-Nimeiry foi acusado e julgado culpado, in absentia, por executar o golpe de 1969, contra o governo de Ismail Al-Azhari.

Nos próximos meses, promotores esperam provar que o golpe constituiu um ato criminoso, que removeu o governo eleito de Sadiq al-Mahdi. Desejam provar ainda que o julgamento de Bashir tem bases legais. Entretanto, a defesa demonstra receios de que a corte tenha motivações políticas para condenar os réus independente do processo legal. Os 120 advogados responsáveis pela defesa dos 27 réus mantêm-se resolutos ao afirmar que a corte é inconstitucional. Não importa o resultado, promotores esperam que o caso estabeleça um precedente jurídico capaz de impedir futuros golpes.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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