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No Egito, a vida de uma mulher não significa nada, mas um policial tem direito a tudo

Cantora libanesa Suzanne Tamim, em sessão fotográfica, no Egito [STR/AFP/Getty Images]

Em 2008, Mohsen Al-Sukhari, policial egípcio, entrou no apartamento da estrela do pop Suzanne Tamim, ao mostrá-la um crachá de identificação falso que o caracterizou como gerente do bloco. Na manhã seguinte, Tamim foi encontrada morta no chão do local, com múltiplos ferimentos de faca em seu rosto e garganta.

Apenas alguns meses depois, uma corte egípcia assistiu os vídeos de circuito fechado no qual Al-Sukkari entrava e saía do apartamento de Suzanne, em Dubai, Emirados Árabes Unidos, além de ouvir gravações de telefone de outro homem com ordens para o assassinato. A voz pertencia ao magnata Hisham Talaat Moustafa, um dos principais empresários imobiliários do Egito.

Na época, a história sensibilizou corações e mentes por todo o mundo árabe, apesar de uma ordem de sigilo impedir a imprensa de reportar detalhes sobre o caso. Conforme avançou a história, foi revelado que Hisham e Suzanne tornaram-se amantes após ela pedir ajuda ao empresário para conduzir seu próprio divórcio.

Quando Hisham pediu a Suzanne para tornar-se sua segunda esposa, a cantora recusou e então entrou em um relacionamento com o campeão mundial de kickboxing Riyad Al-Azzawi, nascido no Iraque. Diante de sentimentos de rejeição e vingança, Hisham ordenou Al-Sukkari a assassinar Suzanne, em troca de US$2 milhões.

A pena inicial proferida pela corte condenou Hisham e Al-Sukkari à morte, o que surpreendeu todos que acompanhavam o caso. Hisham era amigo de Gamal Mubarak, filho do ex-ditador Hosni Mubarak, e membro do chamado Partido Democrático Nacional, então no governo. Coisas assim não parecem acontecer a pessoas como ele.

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Conforme aproximava-se um segundo julgamento, em 2010, um comentário de Mohammed el-Khodiry, ex-vice-líder da corte de recursos, parece-nos absurdo diante do que sabemos hoje sobre o judiciário egípcio – por exemplo, marcado por diversos julgamentos coletivos e revoltantes detenções preventivas sem o devido processo.

“Esta pode mostrar-se uma decisão perigosa”, afirmou el-Khodiry. “Caso as pessoas percam completamente sua fé no judiciário, perderão sua fé em tudo. Digo, nossas vidas serão um inferno. Será a lei da selva.”

O veredito voltou atrás: nenhum dos acusados seria enforcado. Hisham deveria servir a 15 anos de prisão e Al-Sukkari foi condenado a pena perpétua.

Sete anos mais tarde, sob o governo do general Abdel Fattah el-Sisi, Hisham foi libertado via perdão presidencial. Enfim, a história assumiu tons mais conhecidos. No mesmo ano, o próprio Mubarak foi inocentado de assassinar manifestantes. Seu ministro do interior Habib Al-Adly e o magnata Hussein Salem estão entre outros membros da elite que receberão o passe-livre da cadeia, ao invés de servir devidamente seu tempo de pena perante a justiça.

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Um outro insulto representou-se pelo fato do perdão de Hisham justificar-se por questões de saúde, devido a diabetes, apesar do fato do regime demonstrar pouca ou nenhuma consideração pela saúde de prisioneiros, reiteradamente. A negligência médica deliberada foi responsável pela morte de centenas de presos políticos no Egito, manifestada nos mais alto níveis.

Por anos, a família do presidente deposto Mohamed Morsi, além de políticos da comunidade internacional, imploraram às autoridades egípcias para libertá-lo sob questões de saúde, como diabetes, cujo tratamento era ignorado. O governo de Sisi lavou as mãos, o que levou à morte de Morsi.

Ex-Presidente do Egito Mohamed Morsi ora em sua cela, durante julgamento, em 21 de março de 2016 [Stranger/Apaimages]

Agora, Al-Sukkari foi libertado sob o perdão presidencial do Eid deste ano. Trata-se de uma mensagem clara de que o abuso contra mulheres é aceitável, o que se torna ainda mais crítico em momento no qual a violência contra a mulher chega a níveis sem precedentes durante o período de isolamento.

Também ocorre em contexto no qual o regime egípcio realiza campanha de perseguição contra diversas mulheres sob acusações de “devassidão” e ofensa contra a moral pública, incluindo as influencers da rede social TikTok Haneen Hassan e Mawada Eladhm, além da cantora e dançarina Sama el-Masry.

Nesta terça-feira (26), uma jovem egípcia apareceu com hematomas em uma postagem do TikTok, na qual denunciou que seu amigo Mazen Ibrahim a havia estuprado. Ao invés de ouvir sua denúncia, autoridades do Egito decidiram prendê-la.

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Legisladores egípcios pedem ainda por maior vigilância contra mulheres em aplicativos de vídeos de redes sociais, por “violar a moral pública, os costumes e tradições do Egito”. Libertar Al-Sukkari deixa claro suas verdadeiras intenções e desmentem qualquer alegação de que o fazem para de fato protegê-las.

O regime egípcio não tem qualquer interesse em salvaguardar suas cidadãs. Fracassou sistematicamente em lidar com o assédio nas ruas e não apenas ignorou, mas ainda encorajou a violência sexual nas prisões, como forma de dissuadir denúncias feitas por prisioneiras.

Mais cedo neste mês, uma propaganda de televisão para um complexo residencial de luxo, no ar durante o Ramadã, foi duramente criticada por usuários das redes sociais por tentar dourar a pílula da desigualdade social, quando muitos egípcios sequer podem pagar o que comer. No Egito, dois terços das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, o que é exacerbado pelo covid-19 e pela crise decorrente da doença.

No vídeo para o complexo Madinaty, a leste do Cairo, residentes se gabam de que tudo lhes está ao alcance naquele local. “Não temos sequer de sair”, afirmam os indivíduos. Trata-se, portanto, de um pedaço do paraíso em terra, povoado somente por “pessoas como nós”.

Madinaty pertence a Hisham, que alegou surpresa diante das críticas: “Meu projeto agregou valor concreto ao país”, declarou em entrevista televisionada. “Minha empresa não demitiu qualquer empregado ou trabalhador, diante da atual crise econômica decorrente da propagação do novo coronavírus.”

A negação dos privilégios de classe e a falta de empatia são apenas uma face de um homem que saiu impune de um assassinato à medida que milhares de prisioneiros políticos continuam encarcerados. Hisham Talaat Moustafa e Mohsen Al-Sukkari representam absolutamente tudo que está errado na política egípcia.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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