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Triste, estranho e às vezes um pouco curioso

Pessoas comuns inspecionam os destroços de um edifício e enormes crateras deixados por ataques aéreos israelenses sobre a área residencial de Khan Yunis, na Faixa de Gaza, em 14 de novembro de 2019 [Ali Jadallah/Agência Anadolu]

Recebo e-mails de Khaled. Jamais o encontrei. Ele me diz que vive no sul de Gaza; que há muitos anos atrás leu um de meus artigos publicados no website counterpunch.org. Seus e-mails costumam ter o mesmo estilo. Um texto curto e o mesmo final conciso. Minhas respostas sempre foram concisas também. Eu o agradeço e então encorajo a voltar a escrever.

Durante a ofensiva militar israelense sobre Gaza em 2014, recebi e-mails diários de Khaled. Costumavam tratar de seu amor por Gaza, seu lar que jamais desejaria abandonar. Khaled leu minhas histórias e disse não ter se reconhecido: eram tristes demais.

Ao mesmo tempo, Khaled refletiu sobre o quão estranho era a administração americana ter questionado se o Tribunal Penal Internacional (TPI) deveria de fato investigar os bombardeios sobre Gaza, em 2014. Caso de fato houvesse razões para investigar. O poderoso Ocidente parecia mais preocupado sobre o que aconteceu a Israel do que com os 2.000 palestinos que foram mortos na ocasião. Khaled achava isso estranho e também um pouco curioso. É assim que costuma encerrar seus e-mails: triste, estranho e às vezes um pouco curioso.

Khaled contou-me que alguns de seus parentes se mudaram para sua casa. A casa de seus parentes havia sido demolida. Há cada vez mais gente na Faixa de Gaza. Famílias amontoam-se juntas, mas a área habitável torna-se cada vez menor e menor. Era triste. Khaled achou estranho que Netanyahu pensasse que os assentamentos deveriam ter direito à uma expansão orgânica. Ainda mais estranho que o então Presidente dos Estados Unidos Barack Obama, por meio do orçamento americano, continuasse a aumentar o apoio financeiro ao regime de apartheid em Israel.

É difícil aqui, escreveu Khaled, mas ainda há esperanças. É onde quero viver e jamais sairei. Vivo, escreveu, em uma casa que está mais perto do muro com o Egito. Vivia antes quase sobre a fronteira. Mas alguém propôs uma zona neutra ao longo do muro e já não tenho mais o direito de viver em nossa própria casa, nossa própria terra. De algum modo, o mundo não acha estranho que alguém alegue ter o direito de expulsar milhares de pessoas de suas casas; de expulsar a força milhares de pessoas; de tornar ainda mais superpovoada a Faixa de Gaza; de tornar ainda mais impossível viver aqui. É triste, escreveu Khaled, mas não será também estranho que países ocidentais, como Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Canadá, Suécia, Noruega e quase todos os outros, permaneçam em silêncio? Eles deixam acontecer. Nós choramos e rimos ao mesmo tempo. Choramos por nós e rimos do mundo.

Khaled perguntou-me se eu havia visto as imagens da escola da ONU bombardeada. Se eu havia visto as crianças. Aquelas que morreram, aquelas que foram feridas e todas as crianças assustadas que sobreviveram. Muito triste, escreveu, mas também estranho que os líderes mundiais demonstraram-se tão contentes quando Israel alegou ter cometido apenas um erro.

Certamente trata-se de um crime grave colonizar as pessoas, escreveu Khaled. Expropriar as terras, roubar e demolir suas casas, expulsar famílias e transformar terras agrárias em zonas militares. Certamente é algo bastante grave, não? Khaled escreveu-me que havia lido que eu e muitos outros nos referíamos a este processo como apartheid. Khaled havia aprendido na escola que o que ocorreu aos negros na África do Sul constituiu uma das piores tragédias da humanidade. Khaled escreveu-me que não havia percebido o quão pior era o que ocorria a eles na Palestina.

É triste que líderes do chamado mundo democrático tenham se tornado criminosos internacionais. Juntos, financiam essa loucura. Muito triste e um pouco estranho que Bush pai, Clinton, Bush filho, Obama e agora Trump não compreendam o fato de que exercem um papel central. Engraçado, afirmou Khaled, quando você observa que Obama chegou a receber o Prêmio Nobel da Paz. Imagine financiar guerras, assassinar crianças, demolir casas, ocupar terras e então receber o bom Prêmio Nobel da Paz. Khaled escreveu-me que isso era triste, estranho e realmente muito curioso.

Uma criança foi morta por uma granada disparada de um barco ao mar. Três outras crianças começaram a correr, procurando por refúgio; também foram mortas. Israel disse que eram terroristas. Triste como quatro crianças morreram; triste como o mundo não se importou. Muito triste, escreveu Khaled, e nada engraçado.

Começamos a chorar e rir quando clínicas foram destruídas. Nos hospitais, pode haver crianças com estilhaços alojados no corpo; jovens homens e mulheres com ferimentos de armas de fogo. homens e mulheres com pernas amputadas. Seres humanos saudáveis cujas vidas foram destruídas por nacionalistas, autoritários e fundamentalistas religiosos; o tipo de pessoa que jamais está satisfeita. Cá repousam, aqueles feridos pelas balas. Morrem agora enquanto a ONU está sob ataque. Choramos, escreveu Khaled, e rimos daqueles que tomam decisões “lá longe”. Todos aqueles que saúdam os abusadores e afirmam pensar que já não podemos suportar mais abusos. Enquanto isso, mais armas são exportadas a Israel, mais balas, mais bombas. Eles dizem uns aos outros que podemos suportar por apenas mais alguns dias.

É óbvio, afirmou Khaled, que cada casa, cada pintura ou conta bancária roubada que desapareceu na Alemanha foi devidamente devolvida. Não é triste e muito estranho que nossas casas demolidas e nossas pinturas roubadas em 1948 ainda não nos foram devolvidas? E que ambos os livros bancários de meu pai, datados de 1944, que ainda tenho em minhas mãos, tornaram-se sem valor algum em questão de segundos? É tragicômico como o mundo democrático de fato age. Um dia, pune o ladrão; no outro, o recompensa.

Trabalho como professor, escreveu Khaled. No mês seguinte aos bombardeios de Ano Novo, os estudantes queriam falar sobre o que aconteceu; sobre a razão pela qual muitos de seus colegas jamais voltaram às aulas. Sobre a razão pela qual suas casas foram destruídas. Khaled escreveu-me que, na escola, tentou explicar aos alunos o que ocorreu, mas não conseguiu. Não pôde encontrar as palavras. Considera muito triste que já não tinha palavras para explicar o que ocorreu ao seu redor. Tentei fazer as crianças sorrirem. Vez ou outra, vesti-me de palhaço. Ajuda por um breve momento. Você sabe, Khaled escreveu, o palhaço é triste e engraçado ao mesmo tempo.

Estou indignado, Khaled escreveu. Muito indignado. Três jovens colonos mortos. Triste, Khaled escreveu. Por quê? Para Khaled, aqueles que mataram os três jovens também eram terroristas. Não temos o direito de matar inocentes.

Alguns dias se passaram. Novos e-mails. A guerra começou, as bombas começaram a cair. Um novo e-mail. Mats, crianças estão sendo mortas! Centenas massacradas! Triste e cinicamente curioso que os pilotos não sejam chamados pelo nome: terroristas. Mats, como não pode ser terrorista quando se bombardeia um campo de refugiados, um gueto?

Os e-mails continuaram a chegar. O triste mesclou-se com o engraçado, o curioso. Khaled estava feliz que eu não estava lá ao seu lado. Que não precisam de mim lá, mas em outro lugar. Ele escreve que alguém precisa nascer aqui para sobreviver aqui, para não enlouquecermos. Não é tão ruim quanto pensa, Mats. E ao mesmo tempo é muito, muito pior. Já vivo no inferno. Nada pode piorar.

Ao mesmo tempo, Mats, é infinitamente maravilhoso. Lindo quando o sol se põe sobre o Mar Mediterrâneo. Quando as crianças nadam e brincam na praia, correm atrás umas das outras à margem das águas.

Mats, escreve-me Khaled, nenhuma criança foi morta na praia hoje. Talvez você devesse estar aqui. Ainda temos bom café. O homus é delicioso e os morangos são vermelhos. Logo teremos mais um filho. Tudo só pode melhorar.

De repente, não recebi mais e-mails. Vazio. Silêncio. O último e-mail que recebi era sobre crianças brincando na praia. Nenhuma criança foi morta nas praias naquele último dia.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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