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Um ano em revisão: 2020 será um divisor de águas na Palestina?

Cartazes do Primeiro Ministro de Israel Benjamin Netanyahu e do Presidente dos EUA Donald Trump, antes das eleições gerais ocorridas em Jerusalém, em 16 de setembro de 2019 [Faiz Abu Rmeleh/Agência Anadolu]

Este foi um ano decisivo para Palestina e Israel. Apesar da habitual estagnação política da liderança palestina, dois fatores contribuíram para tornar 2019 particularmente importante e, olhando para o futuro, consequencial: a luta pelo poder político sem precedentes em Israel e a retirada total dos EUA de seu próprio papel autoproclamado como “corretor de paz honesto”.

Desde seu primeiro dia no cargo, o presidente dos EUA, Donald Trump, não esconde seu desejo de abraçar totalmente a agenda de direita do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Embora o processo tenha começado antes, 2019 testemunhou o completo colapso da política externa tradicional dos EUA, que foi, por quase três décadas, baseada no princípio de uma solução política negociada.

Este ano foi o último ataque americano aos direitos palestinos. Ao bater da meia-noite da véspera de Ano Novo de 2019, os EUA deixaram oficialmente a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), acusando a instituição global de “preconceito anti-Israel”. O governo dos EUA contribuia com mais de 22% para o orçamento da UNESCO. Entre outras coisas, a ação americana pretendia alertar a liderança palestina e seus aliados de que Washington estava pronto e disposto a usar sua força financeira e política para reprimir qualquer crítica a Israel.

As ameaças de Washington, no entanto, falharam em alcançar os resultados desejados. Em 8 de fevereiro, o principal conselheiro e genro de Trump, Jared Kushner, chegou ao Oriente Médio para promover seu chamado “acordo do século”, uma estratégia que girava em torno da criação de um paradigma político alternativo para substituir o “processo de paz” extinto.

As medidas punitivas dos EUA continuaram. Em 4 de março, os EUA fecharam seu Consulado em Jerusalém, agora que possuía uma embaixada totalmente operacional na cidade. O ato pretendia rebaixar a missão dos EUA na Palestina e, portanto, o relacionamento diplomático com a Autoridade Palestina. Alguns dias depois, em 14 de março, os EUA abandonaram o termo “territórios ocupados” ao se referir aos Territórios Palestinos Ocupados em seu relatório anual de direitos humanos. Essa medida foi entendida, e com razão, como um prelúdio para um futuro reconhecimento dos EUA da soberania de Israel sobre as terras palestinas ocupadas. Em 18 de novembro, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, declarou que os assentamentos ilegais dos judeus na Cisjordânia e Jerusalém são “consistentes” com o direito internacional.

Infográfico mostra o aumento dos assentamentos ilegais na Palestina, desde a eleição de Trump nos Estados Unidos

Embora Washington parecesse determinado a enviar uma mensagem clara a Tel Aviv e Ramallah de que as políticas passadas foram revertidas para sempre, não conseguiu articular claramente, até agora, uma agenda política alternativa. O discurso do “acordo do século”, outrora badalado, desapareceu lentamente do cenário político do Oriente Médio. Inicialmente, a marginalização do “acordo” ocorreu em antecipação aos resultados de duas eleições gerais em Israel, realizadas em abril e setembro. No entanto, com o tempo, ficou cada vez mais claro que o “acordo” de Trump não tinha chance de sucesso.

Um sinal de problemas nos esforços de “paz” dos EUA foi a renúncia do principal enviado dos EUA para o Oriente Médio, Jason Greenblatt, em 5 de setembro. Greenblatt, que foi um dos três principais defensores da nova política de Washington para o Oriente Médio – os outros sendo Kushner e o embaixador dos EUA em Israel, David Friedman – causou muitos danos antes de sua saída abrupta. Pouco antes de seu retorno a Washington, ele declarou que os assentamentos judeus ilegais são apenas “bairros e cidades” e que “as pessoas [deveriam] parar de fingir” que “são a razão da falta de paz”.A pressão dos EUA sobre os palestinos se estendeu além dos Territórios Ocupados, para incluir uma repressão ao movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). Em 23 de julho, o movimento foi condenado pela Câmara dos Deputados, na Resolução 1850, apesar de alguma clara resistência. Israel teme que o BDS tenha manchado sua imagem internacionalmente, especialmente quando o movimento levou a luta dos palestinos a inúmeras plataformas internacionais.

Desimpedido por um grau mínimo de responsabilidade, o governo israelense tem ainda mais liberdade para expandir assentamentos ilegais, especialmente na área de Jerusalém, e para acelerar o confisco de terras em toda a Cisjordânia.

Em janeiro, Israel fechou todas as escolas operadas pela agência da ONU responsável pelo bem-estar dos refugiados palestinos, a UNRWA, em Jerusalém, minando ainda mais qualquer reivindicação palestina sobre sua cidade. Uma semana depois, o exército israelense expulsou a força internacional de observação da cidade palestina ocupada de Al-Khalil (Hebron). Em março, Netanyahu foi acompanhado por Pompeo em uma visita provocativa ao Muro das Lamentações, em Jerusalém, transmitindo outra mensagem aos palestinos que, nas palavras de Trump, “Jerusalém está fora da mesa” de negociações. Esse ato foi repetido em 1º de abril, quando Netanyahu se juntou ao recém-eleito presidente brasileiro de direita Jair Bolsonaro. Este último prometeu seguir a liderança americana ao mudar sua embaixada para Jerusalém.

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro (E) e o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu acenam para a imprensa durante uma visita ao muro ocidental, o local de oração mais sagrado para os judeus, na Cidade Velha de Jerusalém, em 1º de abril de 2019 [Menahem Kahana/AFP/Getty Images]

Enquanto isso, o alcance e a frequência da violência israelense contra os palestinos aumentaram dramaticamente na Cisjordânia ocupada e na sitiada Faixa de Gaza. A violência do exército israelense na Cisjordânia se manifestou nos ataques às aldeias palestinas, na repressão frequente a protestos e na prisão e matança de ativistas. Ao mesmo tempo, colonos judeus israelenses armados atacaram agricultores e estudantes palestinos e invadiram locais sagrados. A Mesquita de Al-Aqsa, em particular, foi um ponto de conflito entre colonos judeus armados e o exército israelense, por um lado, e seguidores palestinos desarmados, por outro. O tiroteio a sangue frio no posto de controle de Qalandiya de Nayfeh Kaabneh, em 18 de setembro, em que um assassinato que foi capturado em vídeo, simbolizava a natureza desonesta da brutalidade israelense.

Em Gaza, o cerco e a violência continuaram. Os protestos da Grande Marcha do Retorno, uma forma coletiva de resistência popular, iniciada em 30 de março de 2018, continuaram inabaláveis. Toda sexta-feira, milhares de palestinos se reuniam na cerca que separava a Faixa sitiada de Israel, exigindo o fim de 13 anos de isolamento e bloqueio econômico. Em 2019, o número de mortos entre manifestantes ultrapassou a marca dos 300. Outros milhares foram feridos. O bombardeio de Gaza pelas forças armadas israelenses, que ocorreu em muitas ocasiões, foi muitas vezes justificado por Israel como uma “resposta” aos foguetes disparados por militantes palestinos. As duas conflagrações mais notáveis ocorreram em 5 de maio e 12 de novembro. No primeiro ataque, Israel matou pelo menos 24 palestinos, enquanto quatro israelenses também teriam sido mortos. O segundo ataque resultou na morte de 34 palestinos, incluindo oito da mesma família de Abu Malhous. Nenhum israelense foi morto.

Havia uma ligação clara entre a violência israelense em Gaza e as eleições gerais, onde Netanyahu, em apuros, tentou convencer seu grupo de direita de sua capacidade de reprimir os palestinos e proteger as cidades israelenses na parte sul do país.

A retórica muitas vezes racista de Netanyahu e as políticas violentas, no entanto, não lhe renderam os votos necessários para formar um governo, nem em abril nem na votação subsequente em setembro. Em ambas as ocasiões, o primeiro-ministro israelense tentou reunir uma coalizão de direita que lhe daria a maioria no Knesset (Parlamento). Sua primeira tentativa foi esmagada pelo líder ultra-nacionalista e chefe do partido Yisrael Beiteinu, Avigdor Lieberman. A última votação enfraqueceu a posição política de Netanyahu, quando seu oponente centrista e chefe do Partido Kahol Lavan (azul e branco), general aposentado Benny Gantz, ganhou a vantagem.

Pôster da candidatura de Benny Gantz é visto antes das últimas eleições gerais em Jerusalém, em 16 de setembro de 2019. [Faiz Abu Rmeleh/Agência Anadolu]

Enquanto os objetivos dos EUA e Israel pareciam claros, a liderança palestina afundou ainda mais em sua estagnação política. Todas as conversas de unidade entre os grupos palestinos Fatah, Hamas e outros fracassaram, especialmente quando o primeiro-ministro da AP, Rami Hamdallah, que defendeu a causa do diálogo, renunciou ao cargo em 29 de janeiro. Hamdallah foi substituído por Mohammad Shtayyeh, um partidário do líder palestino, Mahmoud Abbas.

A nomeação de Shtayyeh, juntamente com várias outras medidas adotadas por Abbas para consolidar seu poder, deixou claro para o povo palestino que a questão da unidade não é mais uma prioridade para o antigo presidente. Em 25 de setembro, Abbas pediu a realização de eleições na Cisjordânia, Gaza e Jerusalém, convidando todas as facções palestinas, incluindo o Hamas, a participar. O Hamas concordou rapidamente em participar, mas não sem questionar os motivos de Abbas.

Houve ocasiões, no entanto, em que os palestinos, independentemente de sua ideologia ou política, pareciam unidos, especialmente quando Israel reprimia os prisioneiros palestinos. Em 21 de janeiro, a polícia israelense atacou brutalmente prisioneiros palestinos na prisão Ofer e em outros lugares. Muitos palestinos foram feridos nos ataques. Em resposta, milhares de palestinos na Cisjordânia e Gaza se levantaram em protesto e em solidariedade aos quase 5.000 prisioneiros mantidos por Israel.

Ao longo do ano, vários prisioneiros palestinos morreram enquanto estavam detidos, principalmente devido a negligência médica. Eles incluíram Faris Baroud, que morreu em 6 de fevereiro, depois de passar 27 anos nas prisões israelenses, e Bassam Al-Sayyeh, que morreu em 8 de setembro. A parlamentar palestina eleita Khalida Jarrar foi libertada de sua detenção administrativa – prisão sem julgamento – em 28 de fevereiro, apenas para ser novamente presa em 31 de outubro.

Outro exemplo de unidade entre os palestinos foi a indignação coletiva sentida após o assassinato de Israa Ghrayeb, uma jovem mulher que teria sido morta por membros de sua própria família. Os protestos em massa forçaram a Autoridade Palestina a alterar leis que concediam clemência nos casos do chamado “assassinato de honra”.

De certa forma, 2019 realmente provou ser um divisor de águas na Palestina e Israel. É o ano em que o governo israelense conseguiu obter apoio total e incondicional dos EUA, enquanto a liderança palestina ficou amplamente isolada e incapaz de formular uma agenda alternativa. No entanto, enquanto Israel persiste em sua prolongada crise política e como a comunidade internacional ainda não pode ou, talvez não queira, desempenhar um papel mais fundamental no fim da ocupação israelense da Palestina, 2020 promete ser igualmente tumultuado e desafiador.

Um desenvolvimento particularmente interessante a ser observado no próximo ano é o que se seguirá à decisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) anunciada em 20 de dezembro para iniciar “uma investigação sobre a situação na Palestina”. Como era de se esperar, os EUA rejeitaram a decisão da TPI e o governo israelense ameaçou impedir os investigadores da TPI de entrar no país.

Se as tendências de 2019 continuarem, a luta entre as elites políticas de Israel provavelmente aprofundará a instabilidade do país. No entanto, também poderia abrir o caminho para a minoria árabe há muito marginalizada em Israel e seus representantes, para desempenhar um papel mais substancial, pelo menos, na mudança do discurso político no país de um que seja racialmente centrado para um mais sistema inclusivo e, de fato, mais democrático. Embora isso possa parecer uma ilusão, dado o racismo profundamente arraigado em Israel, só podemos esperar que a natureza destrutiva de sua política de direita também possa trazer a necessidade de um grande repensar. O tempo vai dizer.

 

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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