Quando a África do Sul denunciou Israel por genocídio em Gaza no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), a corte deu nove meses à defesa. O prazo expirou. Os 17 juízes acataram a alegação israelense de que demandaria mais tempo para montar o caso por “questões de evidências”. Com efeito, a impunidade de Israel perante Haia se estendeu por outros seis meses. Estima-se agora que a corte não julgue a matéria antes de 2027 — na melhor das hipóteses.
Nestes nove meses, mais de 250 palestinos, metade crianças, morreram de fome, criada expressamente como arma pelo regime israelense. A carnificina seguiu inabalável. Outros milhares de civis foram mortos por bombardeios e dezenas de milhares mais certamente morrerão uma vez que Israel ocupe plenamente a Cidade de Gaza.
Um registro de uma reunião do gabinete israelense de 1º de março, vazado recentemente pelo Canal 13, revelou como o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu ministro de Assuntos Estratégicos Ron Dermer, atual chefe de negociações, argumentaram com êxito — contrariamente a oficiais militares e de segurança — a favor da fome como ferramenta de submissão na Faixa de Gaza.
Netanyahu decidiu então romper um cessar-fogo funcional e cortar toda e qualquer ajuda a Gaza para “coagir o Hamas a se render”, expôs o vazamento.
Na última semana, porém, Netanyahu negou os fatos. A política de fome que ele mesmo defendeu a seu gabinete seria ficção, parte de uma vilificação em massa do “povo judeu”. Dias depois, o exército israelense se juntou à campanha negacionista, ao alegar que não haveria quaisquer sinais de desnutrição em massa entre os palestinos.
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Em outras palavras, a Unicef, o Programa Alimentar Mundial e todos os especialistas que reportaram fome estariam mentindo. Imagens reduzidas a pele e osso seriam falsas. Tudo isso um “libelo de sangue contra os judeus”.
Pervertendo o curso da justiça
Se o TIJ está paralisado, o mesmo se diz de sua corte-irmã, o Tribunal Penal Internacional (TPI), também em Haia. Como reportamos em detalhes, os mandados de prisão emitidos contra Netanyahu e seu ex-ministro da Defesa, Yoav Gallant, foram neutralizados. Isso se deu por uma campanha orquestrada de difamação que forçou o promotor-chefe Kharim Khan a assumir licença, à espera de um inquérito externo sobre suposto assédio sexual — acusações que Khan nega com veemência.
Na semana passada, o Middle East Eye confirmou que mandados de prisão contra outros dois ministros israelenses — Itamar Ben-Gvir, da Segurança Nacional, e Bezalel Smotrich, da pasta das Finanças — estariam juntando poeira sobre as mesas dos vice-promotores. Os documentos, segundo as fontes, estão prontos; caso emitidos, seriam o primeiro caso de apartheid julgado pelo TPI em Haia.
Uma fonte interna alertou: “caso as aplicações contra Ben-Gvir e Smotrich simplesmente desapareçam, a oportunidade de julgar um dos mais flagrantes exemplos de apartheid no mundo hoje estará perdida para sempre”.
Não tenho expectativas. Os Estados Unidos impuseram sanções a Khan em fevereiro; em junho, foi a vez de quatro juízes, dois dos quais deferiram a aplicação da promotoria pelos mandados de prisão.
Essa campanha para perverter o curso da justiça internacional parece estar funcionando. O que quer que aconteça a Khan, Israel e Estados Unidos já lograram seu intuito primário de paralisar a corte. Ainda existe em nome, mas parou de existir de fato no que concerne os crimes de fome, limpeza étnica e apartheid cometidos diariamente por Israel.
Notícias dos mandados de prisão e do processo sul-africano no TIJ fomentaram uma onda de otimismo entre defensores de direitos humanos, que se provou prematura. Na época, argumentou-se que o mundo deveria suspender os infindáveis debates e permitir que as rodas da justiça enfim seguissem seu curso.
Com ambas as cortes inviabilizadas, sequer este argumento se aplica. Numerosos países subscreveram a ação da África do Sul, mas isso se mostrou não mais que gesticulações políticas. Mesmo a nação denunciante continua a vender carvão a Israel. A Turquia, cuja retórica sobre Gaza é incisiva, ainda permite que petróleo do Azerbaijão cruze o gasoduto de Ceyhan para alimentar a Força Aérea israelense.
A alegação de Ancara é de que carece de soberania no gasoduto, ou que os envios se dão em águas internacionais. A pergunta, no entanto, é se a Turquia permitiria o livre fluxo de petróleo por seu território caso destinado à Força Aérea grega, enquanto bombardeava o Chipre do Norte? Certamente, não me parece o caso.
‘Exemplo clássico de genocídio’
O mundo e o Oriente Médio, em particular, não podem meramente lavar suas mãos diante do genocídio. Este é um termo legal, definido na lei internacional. Por meses, dezenas de especialistas corroboraram o fato — incluindo estudiosos do Holocausto. Há divergências de opinião sobre quando começou, mas são unânimes: o que ocorre em Gaza cumpre os critérios de genocídio, como assassinato de membros de um grupo e medidas calculadas para levá-lo à destruição.
Deixe me citar alguns dos especialistas.
Raz Segal, professor de estudos de genocídio e Holocausto na Universidade de Stockton, em Nova Jersey, foi um dos primeiros a recorrer ao termo para descrever o morticínio em Gaza. Em edição de 13 de outubro de 2023 da publicação Jewish Chronicles, caracterizou os ataques de Israel como “exemplo clássico de genocídio”.
Ao Middle East Eye, explicou Segal: “Como um pesquisador israelo-americano da história judaica e do Holocausto, tenho que assumir com seriedade o imperativo moral de ‘nunca mais’. Ao estudarmos genocídio e Holocausto, ensinamos nossos alunos a identificar os primeiros sinais de alerta: processos que se intensificam, sinais vermelhos que requerem intervenção. Críticos perguntam por que recorremos ao termo ‘genocídio’ tão cedo. Minha resposta é que se deve a vermos, desde já, indicadores-chave. Ética e legalmente, o dever de prevenir o genocídio surge na presença de risco, não somente quando a destruição se torna evidente”.
Em 13 de outubro de 2023, Segal observou que o deslocamento forçado de um milhão de palestinos ao sul de Gaza em 24 horas seria um indicador claro de risco de genocídio. “Na ocasião, argumentei e continuo argumentando que isso marcou uma transição ao campo do genocídio, ou ao menos à ameaça considerável de genocídio, a qual, sob a Convenção de Genebra, basta para ativar mecanismos legais para preveni-lo”.
Além da disputa
Expressões de intent são fundamentais para provar genocídio.
Neste aspecto, Barry Trachtenburg, professor de história judaica e estudos do Holocausto na Universidade de Wake Forest na Carolina do Norte, reiterou: “Desde o princípio, vimos declarações genocidas de líderes israelenses, que logo se seguiram de ações alinhadas àquelas declarações de intento”.
“Na maioria dos casos de violência genocida, não temos declarações explícitas de líderes políticos e militares de que pretendam alvejar civis, ou que recusem distinguir militantes e não-combatentes, ou que responsabilizem toda uma população por um certo incidente. No entanto, neste caso, é precisamente isso o que vimos”, acrescentou.
Para Omer Bartov, que compartilha da cátedra na Universidade de Brown, os objetivos de guerra foram cruciais ao determinar genocídio: “Meu ponto de vista é que os objetivos de guerra declarados por Israel — destruir o Hamas e libertar os reféns — acabaram por não ser os verdadeiros objetivos de guerra. O exército israelense jamais tentou de fato destruir o Hamas ou libertar os reféns. O que se concentrou em fazer foi tornar Gaza inabitável a sua população”.
Não temos, portanto, qualquer hesitação em chamar o que Israel segue fazendo em Gaza — também na Cisjordânia e Jerusalém ocupadas — pelo que são: genocídio. Não é mais “genocídio plausível”, como afirmou, a princípio, o TIJ, ao acatar a denúncia sul-africana. Não se trata de genocídio entre aspas. É genocídio, ponto final.
O bicho-papão conveniente
As vanguardas de políticos ocidentais que, por 22 meses, clamaram pelo “direito de Israel a autodefesa” — incluindo o presidente francês Emmanuel Macron, o chanceler alemão Friedrich Merz e o premiê britânico Keir Starmer, entre outros — agora concentram a culpa em Netanyahu, Bem-Gvir e Smotrich.
Verdade, há evidências mais do que suficientes para indiciar cada um deles por crimes de guerra, mas estes não passam de bichos-papões convenientes. Parar nessas lideranças e somente nelas cria uma ficção oportuna: o mito de que, se Netanyahu e seus extremistas deixarem o poder, Israel abandonaria intenções supremacistas.
Os mesmo líderes ocidentais chegam a sugerir um Estado israelense comandado por um líder mais “pragmático”, como Naftali Bennet — militante colonial —, que supostamente negociaria com o Hamas o retorno dos reféns, bem como cessar-fogo nas operações em Gaza. Com o tempo — sabe-se lá quando —, haveria ainda um Estado palestino. Uma vez retomadas as negociações, a Arábia Saudita firmaria relações com Israel via Acordos de Abraão e tudo magicamente voltaria a 6 de outubro de 2023, à véspera do genocídio.
Tudo isso não passa, também, de fantasia.
Aqueles que tanto se afirmam “amigos de Israel” — e que agora se questionam se vale a pena ser lembrado como amigo do genocídio e apartheid — insistem mansamente que a ocupação tem direito de defender suas fronteiras. Por quase dois anos, porém, estas não passaram de pit-stop à jornada coletiva de tanques e blindados a sua solução e objetivo finais: a conquista do sonho bíblico de Grande Israel.
À medida que Israel avançou a cada um de seus vizinhos — primeiro Gaza e Cisjordânia, então Líbano, Irã e Síria — e a ocupação absoluta de Gaza toma corpo, junto de postos avançados no sul libanês e sírio, novos mapas começaram a emergir, ao indicar a tomada de terras para além das linhas declaradas.
Tampouco é incidental. Durante entrevista à rede i24 News, na qual recebeu de presente um amuleto com o mapa da “Terra Prometida”, Netanyahu foi questionado se se sentia conectado à visão da Grande Israel. “Bastante”, respondeu o premiê, ao proclamar para si “uma missão geracional — gerações de judeus que sonharam em vir, gerações de judeus que virão depois de nós. Portanto, se me perguntarem se sinto ter uma missão, histórica e espiritualmente, a resposta é sim”.
O mapa em si foi omitido na edição, mas é absolutamente notório. Sua “Terra Prometida” abrange toda a Palestina e partes da Jordânia, Líbano, Egito, Síria, Iraque e mesmo Arábia Saudita. No ano passado, Smotrich apareceu em vídeo defendendo expandir os limites de Israel até Damasco, capital da Síria.
A ideia não é novidade. Em janeiro de 2024, o político israelense Avi Lipkin preconizou que “eventualmente nossas fronteiras se estenderão do Líbano ao Grande Deserto — ou seja, a Arábia Saudita —, e então do Mediterrâneo ao Eufrates. Do outro lado do Eufrates? Os curdos! Os curdos não são inimigos … Então, o Mediterrâneo atrás de nós e os curdos na frente, e então tomaremos o Líbano, que precisa da proteção de Israel, e também, penso eu, Meca, Medina e o Monte Sinai, para purificar esses lugares [sic]”.
Hora de acordar
Theodor Herzl, pai-fundador do sionismo político, escreveu em seus diários que o Estado judaico se estenderia “dos ribeiros do Egito ao Eufrates”, frase emprestada do Gênese, em que Deus teria cedido a Abraão e seus descendentes o direito às terras.
Alguns israelenses citam uma visão mais estreita mencionada em Deuteronômio. Outros invocam Samuel, que descreve as terras conquistadas pelos reis Saulo e Davi, incluindo a Palestina, o Líbano e partes da Síria e Jordânia. Para todos, no entanto, um elemento em comum: a busca de Grande Israel seria um mandato teológico.
Novamente, não é novidade. O que é novidade é que Israel tem meios militares de tornar seu sonho realidade.
O genocídio contra os palestinos de Gaza não é dano colateral de um povo ocidentalizado que se cansou das terras que já ocupa; tampouco é meramente o trabalho de religiosos, que são apenas parte de um amplamente beligerante espectro político. O genocídio, ao contrário, ecoa esforços para consolidar um sonho fundamentalista, maior e longevo: o suposto retorno dos judeus à chamada Terra Prometida.
A única coisa no caminho é o povo palestino, que — armado ou não — se nega a deixar as terras que são suas por direito.
Caso os avanços de Netanyahu cessem agora, será, entretanto, temporário. Nenhum líder israelense ordenará a saída de suas tropas da Síria ou do Líbano. As colinas de Golã estão perdidas. E nenhum líder israelense removerá seu quase um milhão de colonos ilegais da Cisjordânia e Jerusalém ocupadas.
Os vizinhos de Israel seguem dormindo frente à ameaça, uma ameaça que não cabe em negociações e que os Estados Unidos certamente não farão nada para conter. Quem sabe, apenas um pacto regional — aplicado por exércitos modernos que descubram como colaborar entre si — poderia impedir a expansão de Israel e proteger os jovens Estados regionais em todo o Oriente Médio. Deveriam acordar antes tarde do que nunca.
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 12 de agosto de 2025
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