O novo livro de Adam Shatz é um tributo a um dos mais influentes pensadores anticoloniais do século XX. Escrita com riqueza intelectual e vigor narrativo, a nova biografia de Frantz Fanon transborda profundidade histórica e ressonância contemporânea.
Desde as primeiras páginas, a vividez de seu relato cativa o leitor: encontramos Fanon em novembro de 1960, viajando sob pseudônimo líbio pelo Saara como parte de uma unidade de comando da Frente de Libertação Nacional (FLN). Shatz descreve a cena com detalhes cinematográficos — Fanon maravilhado com o pôr do sol no deserto enquanto pressente a história em movimento.
Em seu diário, Fanon observa: “Esta parte do Saara não é monótona”; e exclama: “Um continente está em movimento, e a Europa dorme languidamente” — embora “o espectro do Ocidente” permaneça “presente e ativo em toda parte”.
Passagens como essas ilustram o estilo de Shatz: elegante e evocativo, mesclando com maestria a voz do próprio Fanon com o olhar do historiador. O resultado é uma biografia que por vezes se lê como um romance, sem jamais abrir mão da profundidade analítica.
“The Rebel’s Clinic” oferece uma exploração minuciosa da vida breve, porém impactante, de Fanon, ao jogar luz sobre as múltiplas facetas do homem frequentemente mitologizado como um revolucionário ardente.
A vida e a época de um revolucionário
Shatz restaura Fanon em sua totalidade — não apenas como o autor de Os condenados da terra, conhecido por defender a violência anticolonial, mas também como o psiquiatra em atividade, filho e marido dedicado, e “humanista expansivo”, que lutava contra os efeitos psicológicos do racismo.
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Organizado tanto cronológica quanto tematicamente, o livro traça a trajetória de Fanon: desde sua formação caribenha na Martinica, passando por seu serviço militar e despertar existencial na França, até sua radicalização na Argélia e, finalmente, seus compromissos pan-africanos no último ano de vida.
Nessas seções, Shatz situa a jornada pessoal de Fanon dentro dos grandes movimentos de libertação do século XX — do declínio do colonialismo francês no Norte da África ao caos da política da Guerra Fria nos países africanos recém-independentes.
A narrativa é repleta de minúcias. Vemos Fanon atender pacientes em um hospital psiquiátrico em Blida, na Argélia, enquanto apoia secretamente a resistência armada da FLN. Acompanhamos sua passagem por Acra e Leopoldville, onde navegou na complexa política das conferências pan-africanas ao lado de figuras como Kwame Nkrumah e Patrice Lumumba.
Shatz dedica atenção especial às contradições e desafios enfrentados por Fanon. Por exemplo, discute seu papel ambíguo como enviado da FLN que, por razões geopolíticas, aconselhou Lumumba a recuar diante da crise do Congo — exemplo revelador de como um intelectual engajado podia ser limitado pela própria revolução que defendia.
Esses episódios, tratados com nuance, evitam qualquer retrato simplificado ou hagiógrafico de Fanon.
Shatz destaca a voz apaixonada e o pensamento dinâmico de Fanon em consonância a esses eventos de sua vida. Acompanhamos a gênese de Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), em sua análise profunda do complexo de inferioridade imposto pelo racismo colonial e das dimensões existenciais da consciência negra.
O amadurecimento de suas ideias em Sociologia de uma Revolução (1959) e Os Condenados da Terra (1961), quando a experiência na guerra argelina impele Fanon a defender a violência revolucionária como transformação psíquica e social.
O livro mostra como a formação psiquiátrica e as leituras fenomenológicas de Fanon fundamentaram seus insights sobre o “inconsciente racializado”, e como seus diálogos com contemporâneos — como Aimé Césaire, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre — moldaram suas filosofias de libertação.
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A riqueza da biografia está em mapear as linhagens do pensamento: Shatz apresenta Fanon não como um profeta isolado, mas um intelectual em diálogo com o radicalismo negro e as tradições dissidentes da esquerda europeia.
Ao mesmo tempo, Shatz preserva a humanidade de Fanon. Entre discussões sobre estratégia guerrilheira e trauma, surgem lampejos encantadores de sua vida cotidiana — um homem que, além de polêmicas e manifestos, adorava boa comida, música e amizades.
Em termos de estilo, The Rebel’s Clinic equilibra rigor acadêmico e prosa fluida. Shatz, ensaísta de grande talento, explica com clareza conceitos bastante complexos, como “a vida onírica da raça e da opressão” ou os efeitos psicossociais da violência colonial — sem, no entanto, recorrer a jargões.
Quando cita trechos densos dos textos de Fanon, Shatz os contextualiza, ao permitir a compreensão plena de leitores mais leigos. O resultado é uma biografia que convida o público geral a este universo, mas que também informa, com profundidade ímpar, aqueles familiarizados com a obra.
Gaza, genocídio e violência revolucionária
Um dos aspectos mais marcantes de The Rebel’s Clinic é sua atualidade. Shatz concluiu o livro em 2022, mas um epílogo intitulado “Espectros de Fanon” traz seu legado para o presente, especificamente para o contexto do genocídio israelense em Gaza, que eclodiu em outubro de 2023.
Nestas páginas finais, Shatz aborda diretamente a luta palestina em curso e a guerra de extermínio travada por Israel, ao recorrer ao arcabouço teórico de Fanon para analisar os eventos ainda em curso. O resultado é uma conclusão ousada e provocativa que naturalmente gerou debate.
Shatz traça um paralelo contundente entre a brutal contrainsurgência da França na Argélia da década de 1950 e a resposta israelense ao ataque transfronteiriço de outubro de 2023 pela resistência palestina. Shatz logo observa que a campanha israelense “seguiu o manual do exército francês”, ao apelar a “bombardeios, limpeza étnica e fome” na Faixa de Gaza, em ações de genocídio.
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A retórica israelense também ecoa a linguagem desumanizadora da guerra colonial. Shatz menciona a declaração do ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant — “Lutamos contra animais humanos” —, de modo a corroborar, de maneira arrepiante, a tese de Fanon de que “quando o colonizador fala do colonizado, usa termos zoológicos”, ao reduzir os oprimidos a um “bestiário de subumanos”.
Shatz é implacável ao condenar essa brutalidade. Sua linguagem no epílogo, embora moderada, carrega uma urgência moral; é possível sentir sua indignação com a campanha de punição coletiva de Israel.
De fato, Shatz se alinha com as vozes internacionais que classificaram o ataque a Gaza como genocídio. Ele lembra aos leitores que países com histórias de colonização, como a África do Sul pós-apartheid, acusaram formalmente Israel de genocídio no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Haia.
Neste entremeio, as elites políticas ocidentais, tão ávidas em invocar princípios morais em outros conflitos, “fizeram pouco para acabar com os massacres israelenses, quando não se mobilizaram para defendê-los”.
Na interpretação de Shatz, o genocídio em Gaza revelou uma ordem mundial “cortada ao meio”, de maneira similar como Fanon descreveu durante a guerra por independência na Argélia. De um lado, povos colonizados e seus aliados que reivindicam justiça; do outro, potências imperiais e apologistas, que buscam justificar as atrocidades em nome de uma suposta segurança.
Ao invocar essa imagem fanoniana, Shatz enfatiza o pouco que mudou nas dinâmicas fundamentais de opressão e solidariedade.
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Contudo, vai além de condenar a violência colonial israelense. Aborda uma controvérsia, que tem provocado intenso debate entre leitores e ativistas: como devemos ver a violência dos colonizados neste conflito?
O que Fanon faria?
O ataque liderado pelo movimento palestino Hamas em 7 de outubro de 2023, que matou e capturou soldados e colonos no sul do território designado Israel, imediatamente evocou o espectro de Fanon no debate global.
Shatz observa que vozes pró-palestinas, especialmente na esquerda radical, foram rápidas em citar Fanon para defender a operação militar. Em sua leitura, o ataque do Hamas seria Fanon em seu estado mais puro: uma explosão de justiça pelos condenados da terra, levando ao colonizador seu próprio remédio.
Por outro lado, detratores de Fanon aproveitaram os eventos para pintá-lo como um avatar de violência indiscriminada, acusando qualquer um que condene os assassinatos — mesmo passivamente — de estar sob o domínio de suas ideias perigosas.
Diante dessa invocação polarizada de Fanon, Shatz expõe diretamente a questão incômoda: Fanon teria endossado as ações de 7 de outubro?
A resposta de Shatz é ambígua.
Por um lado, reconhece que muito do que ocorreu se encaixa no padrão de violência anticolonial que Fanon defendia. Para o pensador, a luta armada seria uma catarse imprescindível aos povos colonizados. Por essa lógica, a fase inicial da operação “Tempestade de Al-Aqsa”, o ataque a alvos militares, poderia muito bem ter recebido a aprovação de Fanon.
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Além disso, como psiquiatra, Fanon prontamente “entenderia por que os palestinos pegaram em armas” após décadas de ter suas terras roubadas, suas fronteiras seladas e suas famílias bombardeadas impunemente.
Nas próprias palavras de Fanon, seria “lógico” que “as mesmas pessoas que constantemente ouviam que a única linguagem que entendiam era a da força, agora decidissem se expressar por meio da força”.
Até mesmo o aspecto de celebração, não teria surpreendido Fanon. No universo moral de soma zero de uma guerra colonial, Fanon notou que “o bem é simplesmente o que mais fere os oprimidos”. Estes calham por inverter os valores do colonizador, ao ver o sofrimento de seu inimigo como sua própria recompensa.
Todos esses pontos demonstram Shatz utilizando os insights psicológicos e políticos de Fanon para contextualizar a raiva subjacente à revolta em Gaza. O autor se recusa a fazer o coro à demonização simplista da resistência palestina como “terrorismo”, divorciado de contexto. Em vez disso, Shatz valida as causas profundas e a lógica emocional do levante: décadas de humilhação tornaram inevitável a erupção de violência — até mesmo “lógica”.
Nesse aspecto, mantém-se firmemente no campo anticolonial, enfatizando a justiça da luta nacional palestina e a profunda culpabilidade do Estado israelense por engendrar um barril de pólvora que enfim explodiu.
Sem ‘torcida’ para o derramamento de sangue
Por outro lado, Shatz recusa-se a endossar plenamente todos os aspectos de 7 de outubro. É aqui que sua abordagem gera irritação em setores mais radicais.
Invocando a própria visão de Fanon sobre a violência, Shatz insiste que ele “não considerava todas as formas de violência anticolonial igualmente legítimas”. Contrária à sua caricatura, Fanon não seria um defensor irrefletido do derramamento de sangue.
Na verdade, teria criticado, por exemplo, combatentes da FLN que acusados de cometerem atrocidades, ao descrever ações gratuitas como “uma brutalidade quase fisiológica que séculos de opressão alimentam e fazem surgir”.
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Em uma passagem de Os condenados da terra, Fanon alerta que “o racismo, o ódio e o ‘desejo legítimo de vingança’ não sustentariam, sozinhos, uma guerra de libertação”. O ódio acenderia as chamas da revolta — “esses clarões de consciência que lançam o corpo em uma zona de turbulência” —, mas, “deixado para se alimentar de si mesmo”, implodiria e perderia a direção.
Para Shatz, o próprio Fanon teria recuado diante de “excessos”.
O papel da mobilização
Shatz conclui que o verdadeiro avanço fanoniano de nosso tempo pode residir não na violência militante, mas na solidariedade e na mobilização de massa. Numa reviravolta surpreendentemente esperançosa, observa a indignação e os protestos mundiais desencadeados pelo genocídio em Gaza.
“Se houve um ‘salto de invenção’ fanoniano desde 7 de outubro”, escreve Shatz, “foi o surgimento de um movimento internacional amplo pela liberdade palestina, iniciado por estudantes de todos os grupos raciais e todas as fés”.
Em campi universitários e ruas de cidades, jovens de diversas origens se uniram para reivindicar o fim do massacre em Gaza e da cumplicidade institucional com a opressão. “Somos todos palestinos”, entoam, num espírito de solidariedade interseccional que, por mais idealista que seja, Fanon talvez apreciasse.
Shatz recorda sua visita a um acampamento estudantil no Bard College — onde leciona —, quando viu mais de um aluno lendo Os condenados da terra. Essa anedota serve como fecho comovente: as palavras de Fanon, seis décadas depois, inspiram uma nova geração que enfrenta um império distinto, mas a mesma luta fundamental pela dignidade humana.
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O autor especula sobre quais lições os estudantes extraem de Fanon e se ele ficaria satisfeito ou desolado por seguir tão atual. O epílogo termina com uma nota pungente, sugerindo que Fanon esperava que sua obra não permanecesse atemporal —que sua relevância expirasse com o fim da opressão colonial.
Moralismo liberal?
A perspectiva de Shatz sobre Gaza e a questão da violência não agradou a todos.
Do ponto de vista de alguns revolucionários, a crítica do autor pode parecer vacilação, em um momento que demanda compromisso inabalável. Afinal, se é possível reconhecer que Gaza é cenário de um genocídio unilateral, todo e qualquer enfoque nos supostos erros dos oprimidos parece diversionismo.
Detratores de Shatz podem argumentar que enfatizar as “transgressões” da resistência palestina — mesmo que em um contexto amplo — arrisca cair na falsa narrativa de “dois lados” — uma que a imprensa corporativa explora ostensivamente para equiparar opressor e oprimido.
Há quem veja um tom paternalista quando observadores externos, sobretudo ocidentais, pregam aos povos oprimidos sobre a melhor maneira de conduzir sua resistência. Fanon certamente desprezava aqueles que tanto pregavam a não-violência, enquanto gozavam dos frutos da violência colonial.
Para os críticos, a perspectiva de Shatz pode parecer uma traição da própria solidariedade revolucionária, em um exemplo franco de moralismo liberal em meio a uma luta que não abriga qualquer chance de neutralidade.
Por outro lado, leitores mais conservadores podem condenar a disposição de Shatz de contextualizar, se não justificar, atos de violência contra colonos israelenses. Estes podem acabar por acusá-lo de normalizar o “terrorismo”, enquanto evoca de fato a opressão histórica que engendra a violência.
Shatz repousa sobre o fio da navalha — um lugar árduo de estar. Ao tentar se equilibrar, o biógrafo ressalta a tensão inerente do legado de Fanon e do pensamento anti-imperialista como um todo: entre o compromisso inabalável pela libertação dos povos e uma preocupação ética e universal para com a humanidade.
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Fanon era tanto um teórico da violência revolucionária como humanista que lutava, em último caso, por um mundo de novas relações humanas.
Ao ler Shatz, Podemos compreender que a obra de Fanon não traz um conforto fácil — nem aos pacifistas, nem aos militantes.
The Rebel’s Clinic explora, portanto, o ideário de Fanon como um espelho a discussões contemporâneas, enquanto revela os limites concomitantes tanto do anti-imperialismo liberal como do purismo revolucionário. Shatz — como pensador e escritor — parece testar essas fronteiras. Permanece claramente ao lado do oprimido, e mesmo legitima pegar em armas sob certas condições — posicionamento que colegas liberais jamais alcançam.
Contudo, rejeita a ideia de “todos os meios necessários”.
Dentre as ruínas de Gaza e os fantasmas de Argel, The Rebel’s Clinic, mesmo quando se acanha frente às interpretações mais radicais de Fanon, ostenta contestação e rebeldia, ao exigir que olhemos para os custos da liberdade sem recuarmos.
O livro vale a leitura.
Sua conclusão é um lembrete de que não devemos ver Fanon seja como santo ou apologista de guerras, mas um guia capaz de ajudar-nos a navegar na jornada perigosa à verdadeira libertação. Até que um mundo mais justo torne desnecessário o ideário de Fanon, seguimos a encontrar um norte em sua leitura.
Artigo publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 11 de julho de 2025
