Portuguese / English

Middle East Near You

Guerra em Gaza: Porque a selvageria de Israel é sinal de sua derrota iminente

O reconhecimento de que a perda dos poderes coloniais está próxima leva conquistadores ao uso de métodos mais bárbaros para tentar suprimir a revolta dos povos nativos
Palestinos diante de uma fila de mortos por um ataque israelense à residência da família Karajah, em Deir al-Balah, em Gaza, 15 de maio de 2024 [Baher Hamed Alnahhal/Agência Anadolu]

Os anos derradeiros de todas as colônias de povoamento costumam se marcar por versões mais nítidas da selvageria colonial, incluindo genocídio. O reconhecimento de que a perda dos poderes coloniais está próxima leva os conquistadores ao uso de alguns dos métodos mais bárbaros para tentar suprimir a revolta dos povos nativos.

No Quênia, estima-se que os britânicos mataram cerca de cem mil pessoas a fim de conter a guerra por libertação, que deu fim ao regime supremacista branco em 1963. As guerras de libertação da Angola e de Moçambique contra os conquistadores portugueses deixaram dezenas de milhares de mortos entre 1956 e 1976.

Receosos de que a independência de ambos os países acelerasse a queda do apartheid na África do Sul, tanto os Estados Unidos quanto o regime supremacista branco, junto a forças mercenárias do continente africana, travaram guerras racistas contra as populações locais entre 1975 e 1992. Aproximadamente 1.5 milhão de pessoas foram mortas em Angola e Moçambique, de um total combinado de 23 milhões de pessoas. Outros doze milhões se tornaram refugiados.

Na África do Sul, uma vez que o regime colonial se viu sem opção senão negociar com as lideranças do Congresso Nacional Africano (CNA), em 1989, tentou romper com a união do ativismo negro ao apoiar o príncipe zulu Mangosuthu Buthelezi, cujos seguidores entraram em confronto com a organização anti-apartheid.

Revelou-se mais tarde que o governo deu apoio financeiro e mesmo treinou o Partido de Liberdade Inkatha (PLI), de caráter separatista e de ultradireita, de Buthelezi. Com o apoio da polícia, membros do partido conduziram ataques em algumas cidades. Cerca de 15 mil negros africanos foram mortos pela polícia sul-africana e seu aparato de segurança racista entre 1989 e 1994, durante o chamado processo de paz.

LEIA: Israel restringe espaço a hospitais de campo em Gaza, obstrui trabalho

Israel também matou milhares de palestinos desde que assinou um tratado preliminar em setembro de 1993. Nas três décadas do “processo de paz”, desde então, até setembro de 2023, pouco antes de eclodir o genocídio em Gaza, Israel matou 12 mil pessoas.

Mas de todos os precedentes, quem sabe é a Argélia o melhor exemplo para o que ocorre em Gaza.

Repressão violenta

Em janeiro de 1955, Jacques Soustelle, ex-ministro francês para as colônias e antropólogo das civilizações pré-colombianas, além de notório protestante antifascista de Montpellier, foi nomeado governador-geral da Argélia.

À medida que o novo governo de Edgar Faure, que ascendeu ao poder um mês depois, se ocupava em reprimir as lutas anticoloniais na Tunísia e no Marrocos, Soustelle governava a Argélia a bel-prazer. Soustelle criou as Seções Administrativas Especializadas (SAS) a fim de sabotar a Frente de Libertação Nacional (FLN) e tentar conquistar os argelinos.

O exército, neste entremeio, começou a despovoar as aldeias, ao reassentar seus cidadãos a áreas distantes da influência e das atividades do grupo de resistência. Estabeleceu ainda milícias argelinas anti-FLN, que retratavam seus combatentes como “gafanhotos”, em uma campanha de propaganda que alegava salvar os argelinos dos males do comunismo e das promessas nacionalistas árabes do então presidente egípcio Gamal Abdul-Nasser. De fato, não muito distante dos esforços dos Estados Unidos e de Israel para “salvar” os palestinos dos males do “terrorismo” e da influência do Irã.

LEIA: Nakba, um crime permanente contra a humanidade

Em abril de 1955, o governador francês declarou estado de emergência em partes do país, ao estendê-lo gradualmente a toda a Argélia. Punição coletiva contra aldeias e tortura sem quaisquer restrições se tornaram ordem do dia, enquanto o governo convocava reservistas ao campo de batalha.

Um levante em agosto viu argelinos atacando residentes do colonato de Philippeville, além de soldados e policiais. Cem europeus foram mortos.

As tropas coloniais retaliaram com milhares de mortos entre os argelinos nativos. Alguns foram baleados à queima-roupa e centenas foram aglomerados em um campo de futebol de Philippeville, onde foram executados. Estima-se algo entre 12 mil e 20 mil vítimas. Uma nova fase da revolta então começou.

Mesmo colaboracionistas e argelinos assimilados, descritos como “evoluídos” ou “elus”, se mostraram horrorizados pela escala da repressão e abandonaram Soustelle.

Em junho de 1956, havia 450 mil soldados franceses posicionados na Argélia. Conforme as estimativas, lutaram contra 20 mil revolucionários, que receberam o apoio de 40 mil forças auxiliares. A FLN também recrutou duas mil mulheres a suas fileiras.

Os franceses queimaram aldeias, assumiram uma política aberta de execuções sumária e torturaram detidos, sejam combatentes da resistência ou não. Prisioneiros da FLN foram mortos pela guilhotina em Argel. O grupo retaliou com a morte de dez colonos. Estes, em troca, explodiram o bloco argelino de Argel, deixando 70 mortos. A resistência, entretanto, não se acanhou, ao detonar explosivos em dois cafés no distrito branco da cidade, o que deixou quatro colonos mortos.

Justificativas imperiais

Embora negociações entre o governo francês e a liderança política da FLN ocorressem no Cairo, em 22 de outubro de 1956, o exército colonial decidiu interceptar um avião rumo a Túnis, a partir do Marrocos, enquanto passava pelo espaço aéreo argelino. Cinco líderes da ala política do FLN estavam a bordo, incluindo Ahmed Ben Bella, que viajava para um dos encontros, em situação de sigilo. Ben Bella foi preso e mantido encarcerado até 1962.

LEIA: Guerra em Gaza: Haia pode aproveitar a janela para julgar Israel

Ao culpar o Egito pela revolta na Argélia, a França lançou uma invasão ao país em parceria com os britânicos e israelenses, em novembro de 1956, que culminaria em sua derrota e aumento da popularidade de Nasser em todo o mundo árabe.

Frantz Fanon, jovem psiquiatra de Martinica, que se juntou ao FLN em 1956, compreendeu a importância das motivações francesas para sua invasão: “A expedição de Suez pretendia atacar a Revolução Argelina em seu ápice. O Egito, acusado de orientar a luta popular no país, foi criminalmente bombardeado”.

Em contraste, os filósofos alemães Max Horkheimer e Theodor Adorno, fundadores da Escola de Teoria Crítica de Frankfurt, que fugiram dos nazistas aos Estados Unidos ainda na década de 1930, se tornaram campeões do sionismo e celebraram a guerra. Horkheimer e Adorno descreveram Nasser como um “cacique fascista” que “conspirava com Moscou”. Para ambos, “ninguém sequer se aventura a dizer que esses Estados usurpadores árabes esperam há anos uma oportunidade para atacar Israel e massacrar os judeus”.

Caso tais justificativas imperialistas sejam capazes de nos lembrar o que se diz hoje sobre o Irã, como suposta força por trás da revolta em Gaza e na Cisjordânia e ameaça a Israel, os Estados Unidos e seus aliados árabes, é porque a retórica é exatamente a mesma.

Isolamento internacional

A mobilização da resistência contra a ordem colonial levou a enorme repressão francesa durante a Batalha de Argel, entre janeiro e setembro de 1957, incluindo tortura em massa de civis. Em outubro, a escala da repressão e o assassinato em massa conduzido por forças militares, policiais e colonos, incluindo o assassinato ou a captura de líderes da resistência, encerrou efetivamente as confrontações.

LEIA: Ocupar a passagem de Rafah não é vitória irreal para Netanyahu

Contudo, apesar da derrota militar, a FLN obteve vitórias diplomáticas sem precedentes. Já em dezembro de 1957, o encontro da Conferência Afro-Asiática no Cairo deu seu absoluto apoio ao grupo de resistência e seu chamado por independência, assim como fez o então senador americano John F. Kennedy ainda em julho.

Soldados do Exército de Libertação Nacional (ALN) durante a Guerra da Independência da Argélia, em 1958 [Wikimedia/Reprodução]

A Organização das Nações Unidas (ONU) vivenciou um sentimento crescente de apoio à independência argelina. Washington, todavia, se absteve de uma resolução da Assembleia Geral, daquele mês de dezembro, reconhecendo o direito da Argélia à independência.

Apesar de derrotada a onda de resistência em Argel, a guerra entre colonos e a resistência seguiu, culminando no chamado Massacre de Saqiyat Sidi Yusuf. Em fevereiro de 1958, um bombardeio francês à fronteira com a Tunísia matou 70 civis, incluindo crianças, um crime de guerra condenado por todo o mundo árabe e até mesmo pela gestão americana de Ike Eisenhower

Meses depois, em 4 de julho, Charles De Gaulle, novo primeiro-ministro da França, visitou a Argélia, sob uma recepção entusiasmada de colonos aos quais dizia “Eu entendo vocês”. De Gaulle promulgou uma nova Constituição e se declarou Presidente da República. Suas manobras preocuparam parte da liderança do FLN, sob a impressão de que, se derrotados, “os argelinos teriam o mesmo destino da Palestina”.

LEIA: Barras de ferro, choques elétricos, cães e queimaduras de cigarro: como os palestinos são torturados em detenções israelenses

Em setembro de 1958, no Cairo, a FLN proclamou seu Governo Provisório da Argélia, para sua nova República a ser libertada, logo reconhecido pelos Estados árabes e outros países do chamado Terceiro Mundo.

Enquanto isso, o serviço secreto da França investiu em uma onda de assassinatos e atacou membros da FLN e mesmo comerciantes de armas na Alemanha. Em Hamburgo, agentes franceses explodiram um navio que supostamente carregava armas à Argélia, ataque que o então chanceler Konrad Adenauer, da Alemanha Ocidental, decidiu ignorar, à medida que espionava argelinos e outros muçulmanos a serviço de Paris.

Em outubro, De Gaulle falou da “paz dos corajosos”, uma expressão que o bem-humorado Yasser Arafat adotaria mais tarde. De Gaulle insistiu em manter seu controle na Argélia, ao ordenar uma nova ofensiva contra a resistência.

Últimos dias

A França continuou a recrutar colaboradores argelinos que, até então, haviam expandido suas tropas de 26 mil a 60 mil homens, a fim de acossar o Exército de Libertação Nacional (ALN) da FLN, algo não muito distinto do que fazem mercenários da Autoridade Palestina, treinados hoje por americanos e europeus.

Em abril de 1959, afogados pela brutal repressão francesa e pelo volume de soldados da colônia e forças colaboracionistas, metade dos combatentes da ALN haviam sido mortos. Em outubro, estimativas indicavam que 2,15 milhões de argelinos haviam sido “relocados” pelos franceses, aglomerados em 1.242 campos de concentração sob regime militar, com mais de 250 mil forçados ao exílio na Tunísia e no Marrocos.

O mundo supremacista branco da Europa e suas colônias remanescentes apoiam tanto o genocídio de Israel na Palestina histórica como o fizeram na África.

Os 60 mil colaboracionistas argelinos, ou “harkis”, se organizaram em unidades cujo intuito era auxiliar os franceses a capturarem combatentes da liberdade. Outros 19 mil se filiaram a uma milícia aliada da França.

LEIA: Como os aliados dos EUA estão se preparando para um possível segundo mandato de Trump

No entanto, com apoio do chamado Terceiro Mundo, a Assembleia Geral da ONU votou a favor de uma resolução pela autodeterminação da Argélia e negou a partilha proposta por De Gaulle no ano anterior. Sessenta e três países votaram a favor, oito se opuseram e 27 preferiram se abster.

Pouco após a votação, De Gaulle lançou mão de negociações com a resistência e colonos franceses instituíram uma nova associação terrorista, batizada de Organização do Exército Secreto (OAS), na cidade Madrid do líder fascista Francisco Franco. As conversas deveriam começar em Evian, na Suíça, em abril de 1961. No entanto, a organização emergente logo interveio, ao assassinar o prefeito da cidade.

Em julho, franceses conduziram um ataque à bomba na cidade portuária de Bizerte, na Tunísia, deixando quatro mil civis mortos e milhares de feridos, em uma área que servia de base ao exército da França e a qual os colonizadores se negavam a deixar.

As ações ampliaram o rechaço internacional e o então isolamento da França. No entanto, Estados Unidos e Grã-Bretanha, em ato similar a sua proteção vigente a Israel nas Nações Unidas, mataram uma resolução que pedia negociações para a evacuação francesa de sua base em Bizerte.

Os ataques terroristas perpetrados por colonos continuariam, mas seriam derrotados, em último caso, pelos próprios soldados da França.

Quando os argelinos enfim alcançaram sua independência, em 1962, haviam perdido em torno de 300 mil pessoas, mortas pelos francesas no curso de oito anos. No total, mais de um milhão de argelinos foram assassinados pela França desde o início de sua colonização no país em 1830.

Israel, por sua vez, matou 33 mil pessoas em somente seis meses, com milhares mais que permanecem sepultadas sob os escombros. O regime israelense já demonstrou, em várias ocasiões, o apetite e a prontidão para matar quantos mais forem necessários para manter sua supremacia colonial judaica.

LEIA: Os dias de cheques em branco para Israel meio que acabaram’, diz ex-oficial do Exército dos EUA

Quando às forças colonialistas do mundo, supremacistas brancos na Europa e apoiadores subservientes apoiam tanto o genocídio conduzido por Israel como o fizeram com os atos que o antecederam na África desde a Segunda Guerra Mundial — da exata mesma forma que ideólogos e intelectuais ocidentais o fizeram no caso da Argélia, como os escritores da Escola de Frankfurt.

Quanto ao número de palestinos que ainda deixarão ser mortos, nos anos derradeiros da colonização e do apartheid israelense, até que seja instituído um Estado não-sectário, com verdadeira democracia para todos, é algo que, por ora, somente os estrategistas da Casa Branca parecem saber.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 16 de abril de 2024 pela rede Middle East Eye.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

Categorias
ÁfricaArgéliaArtigoEgitoEuropa & RússiaFrançaIsraelOpiniãoOriente MédioPalestinaReino Unido
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments