Terras estilhaçadas: Como Doha e Dubai quase integraram Índia—Paquistão

Imran Mullah
5 meses ago

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Um século atrás, grande parte da Península Arábica, incluindo os Estados contemporâneos de Iêmen, Omã, Emirados Árabes Unidos, Catar, Bahrein e Catar, era legalmente parte da Índia. Hoje, muitas pessoas, tanto no Oriente Médio como no subcontinente indiano, não têm ideia disso e pensariam se tratar de algo bizarro e absurdo. Porém, foi este o caso, como demonstra o historiador Sam Dalrymple em seu novo livro Shattered Lands: Five Partitions and the Making of Modern Asia — ou Terras estilhaçadas: Cinco partilhas e a construção da Ásia Moderna.

Muito raramente um livro sobre História é capaz de transformar a compreensão do público de todo uma região e seu passado. Shattered Lands, livro inaugural de Dalrymple, é, no entanto, magistral — podemos dizer, revolucionário.

Ao compilar evidências de uma miríade de arquivos, entrevistas e diários particulares em vários idiomas, Dalrymple produziu uma estreia impressionante. Melhor que isso, sua leitura é um deleite. Muitos livros de História — convenhamos — relegam personagens e eventos extraordinários à monotonia. A prosa enérgica e eletrizante de Dalrymple é, portanto, uma brisa de ar fresco. Cada parágrafo tem cor e vida. 

O escopo de sua obra é descomunal. A premissa é que, não muito tempo atrás, em 1928, doze nações modernas — Índia, Paquistão, Bangladesh, Birmânia, Butão, Nepal, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Omã, Catar, Bahrein e Kuwait — estavam “no mesmo barco”, como parte do Império Britânico na Índia, ou Raj. Uma entidade única, o Raj abrigava quase um quarto da população mundial, governado pela rúpia.

Shattered Lands documenta como, por mais de meio século, este vasto império foi feito em pedaços. Este livro é particularmente pertinente a nossos leitores no que diz respeito à Península Arábica e sua separação dos territórios da Índia.

Grande parte do Raj permaneceu oculto. Mapas oficiais jamais retratavam a totalidade do império. Para evitar a ira de Istambul, Estados árabes fronteiriços ao Império Otomano foram bizarramente apagados do mapa, “como um sheikh ciumento esconde suas esposas preferidas”, como disse um palestrante da Real Sociedade Asiática.

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Oman, como o Nepal a leste, não integrava oficialmente o Raj, mas era governado como um protetorado informal pelo vice-rei da Índia, incluindo uma lista de principados indianos, sob controle direto do Reino Unido. Segundo Dalrymple: “A lista padrão de principados até mesmo abria em ordem alfabética, com Abu Dhabi, e o próprio vice-rei, Lorde Curzon, argumentou que Omã deveria ser considerado ‘tão parte do Estado nativo da Índia como Lus Beyla ou Kalat”.

‘Central à própria noção da Índia’

Muscate, Doha e Dubai constituíam legalmente parte da Índia sob o Ato de Interpretação de 1889. Os abonados Estados do Golfo representam hoje, portanto, alguns dos poucos principados indianos remanescentes. Os maiores, destinados ao Paquistão ou à Índia, foram esquecidos. 

Dalrymple conta que “as fronteiras árabes e birmanesas do Raj foram, certa vez, centrais à própria noção da Índia, e vários dos pais-fundadores de Burma e do Iêmen chegaram a conceber a si mesmos como nacionalistas indianos”.

Laços próximos entre o Golfo e o subcontinente indiano antecipam, contudo, o domínio britânico: “Por mais de dois milênios, culturas e comunidades do Sul Asiático se estenderam por toda a Ásia até China, Arábia e Afeganistão”. Os britânicos, todavia, levaram tudo isso a uma escala sem precedentes.

No início do século XX, membros das elites árabes recebiam sua educação em Bombaim ou Aligarh, na Índia, e vestiam túnicas no estilo indiano. A partilha dentre a Índia e a Península Arábica começou em 1937 com a separação do Iêmen. No mesmo ano, foi decidido que a Índia “não poderia governar o Golfo Pérsico”, caso independente.

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Em abril de 1947, os Estados do Golfo deixaram o território indiano. Soldados indianos foram substituídos por oficiais britânicos e Índia e Paquistão perderam a então desconhecida fortuna em petróleo de países como Catar, Bahrein, Kuwait e Emirados Árabes Unidos. Para Dalrymple, a “grande oportunidade perdida” do Estado da Índia.

Décadas depois, em 1971, o Reino Unido finalmente aboliu seus protetorados nos Estados do Golfo. 

Uma era de nacionalismo

Um dos capítulos mais fascinantes deste livro examina o papel crucial desempenhado pelo nacionalismo hindu na partilha da Península Arábica. Devido a sua obsessão com antiga terra santa de Bharat, como ponto referencial historiográfico, diversos nacionalistas indianos não se interessaram na Birmânia ou Arábia. Isso enfraqueceu o nacionalismo indiano nessas partes do Raj e fomentou ideologias alternativas.

Somos apresentados, a certa altura do livro, ao jovem jornalista árabe Muhammad Ali Luqman, que serviu em Aden como tradutor do árabe-guzerate a um cidadão conhecido como Mahatma Ghandi, quando este viajou à cidade antes da partilha. Naquela curiosa ocasião, os apoiadores de Ghandi ostentaram uma bandeira da Índia a “gritos ensandecidos daqueles presentes”, enquanto, em Aden, muitos já demonstravam oposição ao nacionalismo indiano.

Após sua separação da Índia, a descoberta de petróleo converteu Aden em um dos mais importantes portos do planeta. Na década de 1950, havia se desenvolvido a “uma cidade vibrante de empresários e sonhadores, onde cruzeiros aportavam lado a lado com veleiros no estilo arábico e judeus iemenitas congregavam com hindus guzerates e muçulmanos somalis”.

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Contudo, mudanças monumentais emergiram junto de uma nova liderança política, quando, em 1954, Gamal Abdel Nasser ascendeu a presidente do Egito.

‘Um ambiente perigoso para não-árabes’

O modelo nasserista de nacionalismo árabe disseminou-se como fogo em capim seco por toda a região. “Em rápida sucessão, Estados de todo o Raj árabe vincularam formalmente sua cidadania a ‘um conhecimento razoável do idioma árabe’ e à noção de serem ‘árabes pertencentes a um país árabe”, escreve Dalrymple. “No processo, a antiga sociedade cosmopolita do Oceano Índico pouco a pouco se substituiu por uma série de identidades nacionais consideravelmente arbitrárias”.

E em quase toda parte, habitantes do Sul da Ásia “se descobriram do lado errado da fronteira, forçados a vender suas propriedades”. Luqman, antes um nacionalista indiano, aderiu então ao conceito do “Grande Iêmen”.

Neste contexto, a União Comercial de Aden anunciou sua intenção de criar “um ambiente hostil e perigoso a não-árabes”. Um sentimento anti-indiano ganhou tração também pelas consequências da queda de Haiderabade, maior principado da Índia —então reconhecido por muitos como centro do mundo islâmico. A população de Haiderabade compreendia dezenas de milhares de árabes. Soldados indianos cercaram e detiveram seus habitantes, em setembro de 1948, quando o incipiente Estado indiano decidiu anexar o território. No fim, milhares foram expatriados.

“Foi assim que acabou a ideia de que ser ‘árabe’ seria uma etnia indiana, como bengali ou punjabi — algo que fora senso comum por muitos e muitos séculos”, nota Dalrymple.

O imperialismo é brutal e opressivo. Porém, as conexões que reproduz podem incorrer em um cenário ora cosmopolita ou multicultural. O nacionalismo pode ser igualmente brutal. Neste processo, muito do que era complexo e fascinante se perdeu, por convulsões violentas pós-colonização.

O Sultanato Quaiti

Sob gestão do nizam, então homem mais rico do mundo e protetor do califa otomano destituído após a Primeira Guerra Mundial, Haiderabade governou, na prática, mediante vassalagem, o Sultanato Quaiti, o terceiro maior Estado da Península Arábica. Entre seus bem-afortunados frutos culturais, estão variações da culinária árabe famosas até hoje.

Um dos personagens mais marcantes entrevistados por Dalrymple é Ghalib al-Qu’aiti, charmoso ex-governante do sultanato, cuja mãe era sobrinha do nizam de Haiderabade. Em 1966, tornou-se o gestor da região do sul do Iêmen, aos 18 anos de idade. Bastante popular, o sultão Ghalib trabalhava ao lado de operários comuns três vezes por semana, para exprimir uma mensagem de “verdadeiro socialismo, em confluência com os ensinamentos do Islã”.

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Em 1967, contudo, Ghalib foi traído pelos britânicos e deposto em um golpe executado pela Frente de Libertação Nacional, milícia nacionalista árabe que proclamou a República Socialista do Sul do Iêmen. Após ser destituído, seguiu a Cambridge e Oxford e se tornou um distinto historiador.

Até hoje, tragicamente, permanece apátrida.

‘Inimaginável inversão de classes’

Outro fato fascinante documentado por Dalrymple é que os sultões omanis usufruíram da propriedade do porto de Gwadar, na costa paquistanesa, até a década de 1950, desde que um khan baloche concederam sua tutela em 1783.

Dentre os sultões omanis, Said bin Taimur foi educado como príncipe ainda em Ajmer, no atual estado do Rajastão, e era tão indiano em seus gostos que o cônsul-geral britânico o chamava de “Babu”. Sua própria política discriminava abertamente os árabes, ao negá-los educação e posições no governo. Não surpreende, era detestado por sua gente, substituído por seu filho reformista, o sultão Qaboos.

Qaboos descartou, por sua vez, o nacionalismo árabe, ao declarar “muitas das comunidades do Oceano Índico como tribos nativas”. Chegou até mesmo a formalizar Kanak Khimji, mercador guzarate, como sheikh, incumbido de 200 mil hindus de Omã — de fato, o primeiro sheikh hindu da História árabe. 

Poucos livros de não-ficção valem ler da capa ao colofão. Shattered Lands é uma agradável exceção.

Fora de alguns nichos acadêmicos, a história do Raj árabe foi deveras esquecida. O livro de Dalrymple deve ressoar no Golfo contemporâneo, que abriga uma população massiva de imigrantes do Sul da Ásia — em enorme maioria, trabalhadores pobres, no que o autor descreve como “inimaginável inversão de classe”.

Este livro, no entanto, deve abalar também ortodoxias no subcontinente.

Shattered Lands é um triunfo — e suspeito que Dalrymple tem outros ases na manga.

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Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 21 de junho de 2025

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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