A controvérsia que tomou o mundo após a performance da banda de punk Bob Vylan no festival de Glastonbury — especialmente seus cantos de “Death to the IDF”, em referência ao exército da ocupação israelense — expôs muito mais do que a preocupação com palavras.
De fato, desnudou os limites da liberdade de expressão no Reino Unido no que diz respeito à Palestina, o profundo desconforto em confrontar a cumplicidade histórica e a facilidade com que manifestações de solidariedade são demonizadas como suposto “discurso de ódio”.
Glastonbury é um palco tradicional de protestos políticos. Da Campanha por Desarmamento Nuclear a justiça ambiental, ativismo contra a pobreza, direitos das mulheres e da comunidade LGBTQ+, Glastonbury jamais se constrangeu perante verdades inconvenientes.
O fundador do festival, Michael Eavis, tornou-se famoso por dizer a quem não gostar da política de Glastonbury, que “vá a outro lugar”.
O festival recebe ainda uma plataforma política denominado Left Field, com debates e discussões diárias sobre diversas questões. Ao longo dos anos, Glastonbury vivenciou grandes momentos no âmbito político, da solidariedade aos trabalhadores da indústria de mineração, na década de 1980, a um depoimento em vídeo do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, no contexto da invasão russa, em 2022.
Desafiar a ordem estabelecida e expor os crimes da classe política está no código genético de Glastonbury. Neste ano, porém, um terrível viés se revelou.
Enquanto a estatal britânica BBC transmitia sem furor o uso de um palavrão considerado degradante às mulheres, pela cantora pop JADE, as palavras de Bob Vylan sobre o sofrimento do povo palestino atraíram indignação das elites. A BBC de fato retirou a performance de Bob Vylan de seu streaming e desculpou-se pela cobertura ao vivo, ao condená-lo por “antissemitismo”.
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Keir Starmer, primeiro-ministro do Reino Unido, descreveu o protesto como “chocante discurso de ódio”. A embaixada israelense em Londres entrou na onda, ao rechaçar os artistas. Em Washington, o Departamento de Estado revogou os vistos da banda para seus shows marcados no país. Autoridades britânicas não tardaram em lançar um inquérito penal contra os músicos da Bob Vylan e os rappers irlandeses do trio Kneecap.
Mensagem incontestável
Não se trata de mera resposta a uma linguagem supostamente ofensiva, mas sim um esforço coordenado para reprimir e silenciar uma expressão política que desafia a cumplicidade britânica e ocidental para com o genocídio, ainda em curso, conduzido por Israel em Gaza.
Enquanto choviam condenações às palavras indignadas de um músico, naquela mesma semana, soldados israelenses admitiam executar civis que tentavam obter comida a suas famílias em Gaza.
A mensagem é incontestável: cantos e frases que expõem a desumanidade contra o povo palestinos são consideradas maior ameaça pelo establishment do que a violência descomunal imposta ao povo palestino.
Não se trata da polidez ou não de Bob Vylan. A arte de protesto costuma preterir das boas maneiras. No entanto, caracterizar suas falas como “discurso de ódio”, enquanto se silencia sobre a retórica genocida do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, em seu apelo por um extermínio bíblico, ou da incitação de artistas pop israelenses pela morte de Dua Lipa e Bella Hadid, desvela não uma bússola moral, mas uma profunda agenda política.
Não se trata de civilidade, mas de preservar as narrativas genocidas e proteger o violentíssimo exército de Israel de quaisquer críticas, ao difamar seus oponentes como perigosos, odientos ou extremos.
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O canto de Bob Vylan sequer é proposição política ou apoio material; é um apelo desesperado, nascido de um sentimento de urgência e horror, diante de uma catástrofe que transcorre em tempo real. Em Gaza, pelos últimos 21 anos, a maioria das casas foi destruída, bem como escolas, universidades e hospitais; e ao menos 57 mil pessoas foram mortas.
A reação às declarações de Bob Vylan diz mais sobre o desconforto do Reino Unido em confrontar sua própria cumplicidade com a crise em Gaza do que qualquer suposto incitamento. O furor coincidiu com esforços do governo para criminalizar como “terrorista” o coletivo Palestine Action, ao equipará-lo a duas organizações de extrema-direita — novamente, ataques gravíssimos aos direitos de protesto no Reino Unido.
E cá repousa o perigo. Proibir o Palestine Action — e mesmo as performances críticas de Bob Vylan — reflete um esforço crescente para se policiar as fronteiras do discurso aceitável, sobretudo no que concerne os direitos fundamentais do povo palestino. Glastonbury — certa vez santuário da dissidência — arrisca se neutralizar, com seu verniz de rebeldia fadado a se alinhar ao establishment britânico.
Caso deferidas pelas autoridades, as acusações contra Bob Vylan e Kneecap carregarão consigo a seguinte mensagem, a artistas, ativistas e membros do público, sem distinção: a solidariedade, não apenas aos palestinos, mas a qualquer pauta que incomode os poderosos constitui um limite intransponível.
Quando palavras são punidas mais do que crimes de guerra e lesa-humanidade — mesmo genocídio —, devemos estar todos assustados. Não se trata de algumas palavras em um festival de música; é sobre permitir quem fala, sobre o quê e como; quais verdades merecem voz; e quais vidas vale a pena defender.
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Artigo publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 7 de julho de 2025.
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