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O caso Bob Vylan: Reino Unido se queixa de palavras, mas não de crimes de guerra

14 de julho de 2025, às 06h00

Músico Bob Vylan, da banda homônima, com uma bandeira palestina, durante performance em Glastonbury, na Inglaterra, em 28 de junho de 2025 [Matt Cardy/Getty Images]

A controvérsia que tomou o mundo após a performance da banda de punk Bob Vylan no festival de Glastonbury — especialmente seus cantos de “Death to the IDF”, em referência ao exército da ocupação israelense — expôs muito mais do que a preocupação com palavras.

De fato, desnudou os limites da liberdade de expressão no Reino Unido no que diz respeito à Palestina, o profundo desconforto em confrontar a cumplicidade histórica e a facilidade com que manifestações de solidariedade são demonizadas como suposto “discurso de ódio”.

Glastonbury é um palco tradicional de protestos políticos. Da Campanha por Desarmamento Nuclear a justiça ambiental, ativismo contra a pobreza, direitos das mulheres e da comunidade LGBTQ+, Glastonbury jamais se constrangeu perante verdades inconvenientes.

O fundador do festival, Michael Eavis, tornou-se famoso por dizer a quem não gostar da política de Glastonbury, que “vá a outro lugar”.

O festival recebe ainda uma plataforma política denominado Left Field, com debates e discussões diárias sobre diversas questões. Ao longo dos anos, Glastonbury vivenciou grandes momentos no âmbito político, da solidariedade aos trabalhadores da indústria de mineração, na década de 1980, a um depoimento em vídeo do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, no contexto da invasão russa, em 2022. 

Desafiar a ordem estabelecida e expor os crimes da classe política está no código genético de Glastonbury. Neste ano, porém, um terrível viés se revelou.

Enquanto a estatal britânica BBC transmitia sem furor o uso de um palavrão considerado degradante às mulheres, pela cantora pop JADE, as palavras de Bob Vylan sobre o sofrimento do povo palestino atraíram indignação das elites. A BBC de fato retirou a performance de Bob Vylan de seu streaming e desculpou-se pela cobertura ao vivo, ao condená-lo por “antissemitismo”.

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Keir Starmer, primeiro-ministro do Reino Unido, descreveu o protesto como “chocante discurso de ódio”. A embaixada israelense em Londres entrou na onda, ao rechaçar os artistas. Em Washington, o Departamento de Estado revogou os vistos da banda para seus shows marcados no país. Autoridades britânicas não tardaram em lançar um inquérito penal contra os músicos da Bob Vylan e os rappers irlandeses do trio Kneecap.

Mensagem incontestável 

Não se trata de mera resposta a uma linguagem supostamente ofensiva, mas sim um esforço coordenado para reprimir e silenciar uma expressão política que desafia a cumplicidade britânica e ocidental para com o genocídio, ainda em curso, conduzido por Israel em Gaza.

Enquanto choviam condenações às palavras indignadas de um músico, naquela mesma semana, soldados israelenses admitiam executar civis que tentavam obter comida a suas famílias em Gaza.

A mensagem é incontestável: cantos e frases que expõem a desumanidade contra o povo palestinos são consideradas maior ameaça pelo establishment do que a violência descomunal imposta ao povo palestino.

Não se trata da polidez ou não de Bob Vylan. A arte de protesto costuma preterir das boas maneiras. No entanto, caracterizar suas falas como “discurso de ódio”, enquanto se silencia sobre a retórica genocida do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, em seu apelo por um extermínio bíblico, ou da incitação de artistas pop israelenses pela morte de Dua Lipa e Bella Hadid, desvela não uma bússola moral, mas uma profunda agenda política.

Não se trata de civilidade, mas de preservar as narrativas genocidas e proteger o violentíssimo exército de Israel de quaisquer críticas, ao difamar seus oponentes como perigosos, odientos ou extremos.

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O canto de Bob Vylan sequer é proposição política ou apoio material; é um apelo desesperado, nascido de um sentimento de urgência e horror, diante de uma catástrofe que transcorre em tempo real. Em Gaza, pelos últimos 21 anos, a maioria das casas foi destruída, bem como escolas, universidades e hospitais; e ao menos 57 mil pessoas foram mortas.

A reação às declarações de Bob Vylan diz mais sobre o desconforto do Reino Unido em confrontar sua própria cumplicidade com a crise em Gaza do que qualquer suposto incitamento. O furor coincidiu com esforços do governo para criminalizar como “terrorista” o coletivo Palestine Action, ao equipará-lo a duas organizações de extrema-direita — novamente, ataques gravíssimos aos direitos de protesto no Reino Unido.

E cá repousa o perigo. Proibir o Palestine Action — e mesmo as performances críticas de Bob Vylan — reflete um esforço crescente para se policiar as fronteiras do discurso aceitável, sobretudo no que concerne os direitos fundamentais do povo palestino. Glastonbury — certa vez santuário da dissidência — arrisca se neutralizar, com seu verniz de rebeldia fadado a se alinhar ao establishment britânico.

Caso deferidas pelas autoridades, as acusações contra Bob Vylan e Kneecap carregarão consigo a seguinte mensagem, a artistas, ativistas e membros do público, sem distinção: a solidariedade, não apenas aos palestinos, mas a qualquer pauta que incomode os poderosos constitui um limite intransponível.

Quando palavras são punidas mais do que crimes de guerra e lesa-humanidade — mesmo genocídio —, devemos estar todos assustados. Não se trata de algumas palavras em um festival de música; é sobre permitir quem fala, sobre o quê e como; quais verdades merecem voz; e quais vidas vale a pena defender.

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Artigo publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 7 de julho de 2025.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.