Amal Ismail havia ouvido o suficiente. Por dois dias, ela implorara ao comandante das Forças de Suporte Rápido (RSF, na sigla em inglês) — coalizão paramilitar sudanesa, em conflito com o exército regular — que lhe desse alguma informação sobre seus dois irmãos, cunhado e primo.
Eles foram vistos pela última vez sendo arrastados de um caminhão que transportava a família de Amal e cerca de 200 outros membros da tribo Jame’at. O veículo seguia de al-Salha, região nos arredores de Omdurman, em direção ao centro da cidade sudanesa.
O comandante confirmou que algumas pessoas do caminhão haviam sido mortas. Ordenou paciência. “A situação está tensa”, retrucou irritado, de modo que o destino de seus parentes seria revelado “no momento certo”.
“Você cometeu um erro tentando sair de al-Salha. Por que não nos avisou se tinha problemas para viver aqui?”. Foi o que Amal lembra de ele ter dito.
Então, foi embora. Em casa, pegou um telefone que havia escondido e foi a um dos poucos locais com sinal. Sua tela foi inundada de mensagens: vídeos que combatentes postaram nas redes sociais, exibindo-se em festa e brutalidade em frente a homens seminus, além de mensagens de amigos questionando se Amal estava viva.
Em um vídeo, homens armados disparam contra um grupo de detidos, sentados indefesos no chão. “Ninguém será poupado”, promete um deles.
LEIA: 239 mil sudaneses seguem presos na fronteira com o Chade, alerta Acnur
Outro mostra pilhas de corpos. Entre eles, Amal reconheceu um homem jogado sob um pneu de carro. Era seu irmão, Mohammed, sem vida. Seu cunhado, al-Khair Ibrahim, surge no registro, enquanto é açoitado.
Com o tempo, ficou claro: pelo menos 31 pessoas foram executadas pelas RSF.
“Ele era corajoso. Mesmo no vídeo dá para vê-lo olhando nos olhos de seu agressor”, comentou Rihab Ismail, esposa de Ibrahim. “Jamais perdoaremos a RSF por isso. Jamais esqueceremos”.
‘Fomos torturados’
O calvário de Amal e Rihab começou no final de abril, quando sua família e dezenas de outros membros da tribo Jame’at se viram forçados a deixar al-Salha em um comboio. O subúrbio — a oeste da capital Cartum, na outra margem do Nilo Branco — estava sob controle das RSF havia dois anos.
Não havia eletricidade, quase nenhum alimento e a única fonte de água era um líquido amargo extraído de um poço artesiano – que até mesmo as forças paramilitares se recusavam a consumir. Como resume Amal: “Tudo estava ruim”.
A maioria das pessoas se amontoou em um caminhão, enquanto outras seguiram em carros e veículos menores.
LEIA: Navio Madleen resgata quatro refugiados náufragos no Mediterrâneo
Ao norte ficava Omdurman, a cidade-irmã de Cartum, sob controle das Forças Armadas há meses e que mantinha um mínimo de condições habitáveis. Dezenas de combatentes das RSF, no entanto, bloquearam o caminho. Ao avistarem o caminhão, atiraram nos pneus e obrigaram todos a descer.
Cinco sobreviventes relataram ao Middle East Eye que foram açoitados, baleados e torturados. Os reféns foram divididos em grupos de seis e arrastados a lojas à beira da estrada.
“Lá, fomos torturados”, conta Yusuf Hussein. “Usaram qualquer objeto que encontraram – nos batiam com chicotes e pedaços de madeira”. Segundo Hussein, os milicianos teimaram com o fato de o grupo ser da tribo Jame’at, acusando-a de matar muitos de seus camaradas.
Quando Ali Wedaa, outro membro do comboio, tentou dizer que era de outra tribo, executaram-no. “Atiraram nele duas vezes no coração”, recordou Hussein.
Amal, Rihab e outras mulheres foram separadas dos homens.
Qualquer dinheiro, ouro ou celular encontrado foi apreendido. “Se vissem que você tinha dinheiro em um aplicativo bancário, obrigavam a transferir tudo para eles também”, destacou Rihab.
Após cinco horas de interrogatório e ameaças, as mulheres foram liberadas e começaram a voltar para casa.
No caminho, três combatentes as interceptaram e tentaram forçá-las a entrar em uma casa. Rihab se negou, e um deles apertou uma faca contra seu pescoço. Quando Amal interveio, espancaram-na com tanta força que ela quase desmaiou.
Os membros do comboio foram liberados paulatinamente. Ahmed Amin Abdulhakka, estudante e barbeiro de 23 anos, foi solto após cinco dias de tortura. Fora acusado de integrar uma milícia adversária, ligada ao exército regular. Entretanto, após pagar um resgate de um milhão de libras sudanesas — em torno de US$500 —, libertaram-no.
“No final, tudo se resumia a dinheiro”, reconheceu Ahmed.
Al-Salha: Brutalizada pela guerra
O corpo de Mohammed foi visto pela última vez em um vídeo gravado do lado de fora do quartel-general da inteligência militar das RSF no distrito de al-Salha — uma antiga alfaiataria transformada em casa de morte.
Na parede do prédio, um grande mural de Mohammed Osman Eshag, mártir famoso da revolução pró-democracia sudanesa, encara a rua com serenidade. Eshag foi morto durante os protestos de 30 de junho de 2019, que forçaram os militares a dividirem o poder com civis.
A somente quatro ou cinco quilômetros do centro de Omdurman, al-Salha parece um mundo distante do charme discreto das vilas modernistas à beira do Nilo. Embora a rua do mercado tenha sido brutalizada — com barracas reduzidas a metal retorcido e toldos esfarrapados —, os fantasmas de tempos mais felizes ainda parecem impregnar o local com uma energia palpável.
Há alguns anos, este era o ponto de encontro de milhares de sudaneses que reivindicavam o fim da autocracia e da perseguição política. Seus sonhos, no entanto, foram esmagados por jogos de poder, um golpe militar e, agora, por aquela que talvez seja a guerra civil mais devastadora do Sudão.
Embora o exército e as RSF tenham derrubado, juntos, o governo civil transicional em 2021 e depois dividido o poder, os planos para integrar organizações paramilitares ao exército regular desencadearam um conflito que resultou em dezenas de milhares de mortos e treze milhões de deslocados.
LEIA: Sudão registra mais de 170 mortes por cólera em 1 semana
Ao longo da guerrra, as RSF alvejaram reiteradamente civis, com execuções, pilhagens e violência sexual. Diversos grupos de direitos humanos acusam a coalizão paramilitar de cometer genocídio em Darfur, no oeste do país.
Seu principal apoiador são os Emirados Árabes Unidos, que negam fornecer armas ao grupo, apesar de indícios de que abastece seus combatentes.
O exército sudanês — também sancionado pelos Estados Unidos por supostos crimes de guerra — retomou al-Salha em 19 de maio e anunciou o controle total do estado de Cartum pela primeira vez desde o início da guerra.
Dias depois, corpos ainda eram encontrados.
O brigadeiro al-Rayah Dafallah, oficial das forças regulares, observou que os trabalhos para recolher soldados das RSF mortos nas ruas ainda deviam continuar por um tempo indeterminado. Quanto a suas vítimas, corpos seguem sendo descobertos em lugares incomuns.
“Encontraram pessoas enterradas sob o piso de suas casas”, alertou Dafallah.
Segundo o exército, foram descobertas valas comuns contendo 465 corpos de pessoas que morreram por negligência, falta de comida, tratamento ou medicamentos — incluindo algumas com até 27 cadáveres.
Corpos saindo do chão
No necrotério de uma universidade usada como base pelas RSF, três tanques armazenam cerca de 20 cadáveres. Alguns estão em avançado estado de decomposição, fundidos numa espécie de massa escura. Outros ainda têm traços reconhecíveis, além de furos nas laterais do torso e cortes nas solas dos pés.
O exército sudanês afirma que são vítimas de seus adversários; os paramilitares insistem que eram apenas corpos usados para estudos médicos.
A poucos metros, valas comuns — menos controversas — exalam o odor de carne putrefata. Em frente a uma delegacia convertida em centro de detenção, um cemitério improvisado surge na praça. Cobertores e colchões usados para arrastar corpos jazem abandonados, manchados de sangue.
Os túmulos mais recentes foram claramente cavados às pressas: um joelho emerge da terra como um zumbi em ascensão.
Iptisam Ayyad, professora local, testemunhou como o cemitério se expandiu rapidamente sob domínio das forças paramilitares. Iptisam demonstra luto sobre a cidade que antes conhecia: “Era um lugar bom de viver. Era seguro”. Iptisam corroborou os relatos de assédio e sequestro de mulheres. “Levavam até mesmo as filhas de nossos vizinhos”.
Diante da repercussão dos vídeos do massacre, um oficial paramilitar insistiu que os detidos eram membros da Brigada al-Bara ibn Malik, milícia radical aliada ao exército. Mais tarde, as RSF voltaram atrás, ao negarem qualquer envolvimento com as imagens.
Amal, Rihab e dezenas de moradores vivem no limbo. Suspeitam do pior — sem corpos, contudo, é impossível seguir em frente.
“Até hoje não sabemos exatamente quem morreu”, reiterou Amal. “Nosso pai ainda percorre os necrotérios atrás dos desaparecidos. É doloroso não saber se foram mortos ou sobreviveram”.
LEIA: Israel aplica detenção administrativa contra imigrantes africanos
Passar por túmulos recém escavados tornou-se um ritual de tortura psicológica.
“Alguns falam em abri-los em busca de respostas”, comentou Rihab.
Artigo publicado originalmente em inglês na rede Middle East Eye, em 2 de junho de 2025
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.










