A BBC, a instituição midiática mais poderosa do Reino Unido, desempenhou um papel crucial na formação da interpretação pública sobre a guerra de Israel contra a Faixa de Gaza — e, ao fazê-lo, optou repetidamente por ocultar, minimizar e sanitizar uma das campanhas militares mais brutais do século XXI.
Um novo e abrangente relatório do Centro de Monitoramento de Mídia (CfMM, da sigla em inglês) revela um padrão execrável na cobertura da BBC sobre a catástrofe no enclave: a constante priorização de vozes israelenses, a desumanização do sofrimento palestino e a recusa deliberada em nomear — muito menos questionar — o contexto de ocupação, cerco e apartheid que sustenta a crise.
Não se trata somente de pequenos erros editoriais. Trata-se de uma falha sistemática em tratar os palestinos como humanos — como pessoas cujas vidas e mortes merecem ser representadas com a mesma dignidade, gravidade e clareza moral deferidas aos israelenses.
Trata-se de uma emissora financiada com dinheiro público abandonando seu dever de cobertura responsável e equilibrada em benefício de uma narrativa profundamente politizada e unilateral.
Desde a deflagração dos ataques de Israel a Gaza, em outubro de 2023, a BBC enquadrou a crise não como uma continuação de décadas de colonização, cerco e expropriação, mas como um conflito supostamente simétrico entre dois lados.
Matérias que omitem a palavra “ocupação” não são exceção, mas regra. Termos como “assentamentos”, “cerco” e “apartheid” — corroborados pela Organização das Nações Unidas (ONU), Anistia Internacional e outras instituições respeitadas —seguem quase absolutamente ausentes.
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Em vez disso, a cobertura se reduz a supostas retaliações mútuas, com a resistência palestina desvinculada de qualquer contexto histórico ou legal.
Distorção grotesca
Resultado? Uma distorção grotesca da realidade, na qual a violência estrutural infligida por um dos exércitos mais tecnologicamente avançados do mundo contra uma população sitiada de dois milhões de pessoas é apagada em favor de eufemismos vazios e construções passivas.
O número de palestinos mortos em Gaza já ultrapassa 55 mil, a maioria mulheres e crianças. Contudo, como mostra o relatório do CfMM, a BBC caracteriza os palestinos como “tendo morrido” ou “sido mortos” em ataques aéreos, sem sequer mencionar quem os lançou. Já vítimas israelenses são descritas com linguagem passional: “massacradas”, “esquartejadas”, “abatidas a sangue frio”.
O estudo da última semana analisou mais de 35 mil matérias entre 7 de outubro de 2023 e 6 de outubro de 2024. Neste período, a cobertura da BBC recorreu à palavra “massacre” 18 vezes mais para qualificar mortes israelenses do que palestinas. Divulgou também quase o mesmo número de perfis de vítimas para ambos os lados — embora o volume de palestinos mortos seja imensamente maior. Não se trata de uma escolha editorial neutra; mas sim desvalorização da vida palestina.
E não para por aí. Convidados palestinos nos programas da BBC eram rotineiramente interrogados, interrompidos e pressionados a condenar o Hamas — como se este fosse o preço por seu lugar de fala. Já porta-vozes israelenses — muitos dos quais defenderam ao vivo crimes de guerra — eram tratados com deferência. Nenhum convidado israelense foi questionado a condenar o bombardeio intencional a hospitais, campos de refugiados ou escolas, apesar das montanhas de evidências e da indignação internacional.
A assimetria se estende à cobertura sobre reféns e prisioneiros. Prisioneiros de guerra israelenses recebem intenso destaque: entrevistas emotivas, atualizações em tempo real e detalhes humanizados. Já os presos políticos palestinos, incluindo milhares sem acusação ou julgamento, mal são mencionados.
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Até em casos de troca de prisioneiros, a cobertura da BBC focou quase exclusivamente nos israelenses libertados. Quem eram os prisioneiros palestinos? Há quanto tempo estavam presos? Foram torturados, abusados ou privados de devido processo legal? Essas perguntas permaneceram sem resposta.
Tamanha cegueira editorial não é acidental: advém de uma cultura institucional enraizada que se recusa a enxergar os palestinos como indivíduos com reivindicações legítimas, aspirações e direitos — uma cultura que demanda que os palestinos falem somente como vítimas ou terroristas, nunca como seres humanos que buscam resistir legitimamente à opressão.
Nada ilustra melhor isso do que o tratamento da BBC em relação à linguagem. O relatório documenta mais de cem incidentes em que apresentadores interromperam ou contestaram convidados por empregar o termo legal “genocídio” para descrever as ações israelenses em Gaza — mesmo após o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Haia, ter deferido a denúncia da África do Sul.
Traição profunda
Quando se trata da Ucrânia, a BBC não hesita frente à linguagem: seus jornalistas frequentemente invocam acusações de “crimes de guerra” para descrever a agressão russa. No caso de Israel, contudo, a estatal britânica se contorce em nós retóricos para evitar dizer o que milhões ao redor do mundo veem com seus próprios olhos: uma campanha sistemática e implacável de aniquilação.
Não é equilíbrio jornalístico. É censura — uma censura que protege poderosos e silencia oprimidos.
A traição é talvez mais profunda quando se trata dos próprios jornalistas. Mais de 225 profissionais de imprensa foram mortos em Gaza durante a campanha israelense — o período mais letal para trabalhadores da mídia na história recente. No entanto, a BBC considerou relevante noticiar apenas 6% dessas mortes.
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Não eram vítimas anônimas. Eram mães, pais, filhos e filhas, documentando o sofrimento de seu povo com extraordinária coragem. Muitos morreram ainda com as câmeras nas mãos. Suas mortes deveriam ter sido parte fundamental da autorreflexão de qualquer redação séria. Em vez disso, foram tratadas meramente como um ruído de fundo.
Compare isso com a Ucrânia, onde 62% das mortes de jornalistas foram reportadas pela BBC. A disparidade é gritante. Em Gaza, mesmo a morte de profissionais de imprensa — pessoas pelas quais enxergamos o mundo — é considerada indigna da devida atenção.
No final de 2024, mais de cem funcionários da BBC assinaram uma carta aberta para alertar que a emissora estaria falhando em sua responsabilidade de informar adequadamente o público britânico sobre Gaza. Os trabalhadores denunciaram uma cultura de intimidação, padrões editoriais duplos e relutância em permitir que perspectivas e vozes palestinas fossem veiculadas sem hostilidade.
A BBC defendeu sua cobertura de Gaza, ao alegar “transparência” quando supostos erros fossem cometidos, bem como “clareza para com seu público sobre as limitações” de seu trabalho devido às restrições de acesso — impostas por Israel — para reportagens em campo.
Os receios expressos pelas equipes da BBC ecoam aqueles do relatório do CfMM — e pedem mais do que uma resposta defensiva de relações públicas. O que efetivamente está em jogo aqui não é apenas a credibilidade da imprensa de massa, mas seu papel em tempos de violência.
A BBC gosta de se posicionar como padrão-ouro de jornalismo internacional. Porém, quando sua cobertura amplifica consistentemente vozes poderosas enquanto silencia aqueles que sofrem a aniquilação, deixa de ser um observador neutro.
Silêncio diante da injustiça não é imparcialidade. O público merece mais. Os palestinos mortos também — e os que ainda estão vivos, igualmente.
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Artigo publicado originalmente em inglês na rede Middle East Eye, em 19 de junho de 2025
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