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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

EUA e Reino Unido sabiam de plano de transferência de Gaza há 50 anos, mostram documentos

Dezenas de milhares de palestinos, deslocados pelo genocídio israelense, retornam a suas casas pela via al-Rashid, após cessar-fogo, na Faixa de Gaza, em 27 de janeiro de 2025 [Stringer/Agência Anadolu]
Dezenas de milhares de palestinos, deslocados pelo genocídio israelense, retornam a suas casas pela via al-Rashid, após cessar-fogo, na Faixa de Gaza, em 27 de janeiro de 2025 [Stringer/Agência Anadolu]

Serão justificados afinal os temores sobre um eventual plano do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para transferir à força os palestinos de Gaza ao Egito — sobretudo ao Sinai —, após o genocídio israelense no enclave?

A resposta simples é “sim”, como mostram documentos do Reino Unido.

Registros encontrados nos Arquivos Nacionais Britânicos confirmam que Israel desenvolveu um plano secreto, mais de cinco décadas atrás, para expatriar milhares de refugiados palestinos de Gaza, ao norte do Sinai, no Egito.

Os documentos apontam ainda que tanto Londres quanto Washington tinham ciência do plano israelense, mas escolheram não intervir.

Após o exército israelense ocupar Gaza, junto da Cisjordânia, de Jerusalém Oriental e das colinas de Golã, pertencentes à Síria em junho de 1967, o pequeno enclave costeiro se tornou uma tremenda preocupação de segurança a Israel. Seus campos de refugiados superlotados logo se converteram em focos de resistência armada contra a ocupação. De Gaza, diversas operações de resistência foram lançadas contra as forças ocupantes e seus colaboradores.

LEIA: ‘O plano é apenas matar’: testemunhos pessoais sobre o genocídio de Israel em Gaza

Segundo estimativas britânicas, quando Israel ocupou Gaza, havia 200 mil refugiados de outras áreas do país, sob a tutela da Agência das Nações Unidas para a Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), além de 150 mil habitantes nativos.

Documentos do Reino Unido chegam a alegar, no entanto, que Gaza não seria “economicamente viável devido a problemas sociais e de segurança, criados pela vida nos campos e pelas atividades de guerrilha, que somavam baixas”.

Além disso, os relatórios estimam que, dentre 1968 e 1971, ao menos 240 combatentes árabes e palestinos foram mortos e 878 feridos, contra 43 soldados israelenses mortos e outros 336 feridos. A Liga Árabe, neste contexto, passou a insistir na plena cessação das atividades israelenses contra os refugiados palestinos do território costeiro, ao decidir por “medidas conjuntas em apoio à resistência em Gaza”.

O Reino Unido se mostrou particularmente preocupado com a situação nos territórios palestinos ocupados, sobretudo em Gaza. Em depoimento em plenário, os representantes do governo britânico disseram à Câmara dos Comuns manter “um olho bastante atento” sobre os desenvolvimentos em Gaza, ao afirmar “ver as movimentações israelenses com interesse ímpar e testemunhar com apreensão, naturalmente, quaisquer ações das autoridades israelenses capazes de afetar, de modo negativo, o bem-estar e a moral da população de refugiados árabes [palestinos]”.

Enquanto isso, a embaixada britânica em Tel Aviv monitorava esforços do Estado israelense para deslocar à força milhares de palestinos a El-Arish, no norte da península egípcia do Sinai, a aproximadamente 54 km da fronteira de Gaza. Conforme os relatórios de então, o plano incluía “transferência compulsória” dos palestinos ao Egito ou outros territórios, a fim de mitigar a resistência e os problemas de segurança procedentes da ocupação.

Em janeiro de 1971, o então embaixador Ernest John Ward Barnes informou seu governo em Londres dos planos e das ações israelenses para expulsar os palestinos de Gaza. “A única ação questionável de Israel [sic], do ponto de vista do direito internacional, parece ser o reassentamento de alguns refugiados de Gaza ao território egípcio”, declarou Barnes em despacho a seu chefe no Ministério das Relações Exteriores, Commonwealth e Desenvolvimento do Reino Unido. Neste mesmo documento, Barnes confirmou ainda que a embaixada dos Estados Unidos em Tel Aviv compartilhava da análise e recomendava ao governo em Washington, porém, que não agisse de forma alguma, em termos oficiais, contra as ações israelenses.

Oito meses depois, em relatório especial sobre Gaza, o embaixador reportou ao chanceler a questão da transferência, ao sugerir que Israel “havia se exposto a críticas de que estariam tirando proveito de propriedades legais para criar fatos”. Para o embaixador, o reassentamento dos palestinos de Gaza ao El-Arish constituía “um caso clássico de insensibilidade para com a opinião internacional”.

No início de setembro de 1971, o governo israelense confidenciou aos britânicos que havia, sim, um plano secreto para deportar palestinos de Gaza a outras áreas, sobretudo El-Arish. Shimon Peres, então ministro dos Transportes e da Comunicação, que se tornaria líder do Partido Trabalhista, ministro da Defesa, das Relações Exteriores e então premiê e presidente israelense, apregoou a seu conselheiro político na embaixada britânica na cidade de Tel Aviv que “seria hora de Israel fazer mais em Gaza e menos na Cisjordânia”.

Em relatório sobre o encontro, a embaixada afirmou que Peres, então responsável pela pasta dos territórios ocupados, revelou que já havia sido instaurado um comitê ministerial para avaliar a situação em Gaza. Peres observou ainda que as recomendações do comitê “não seriam publicadas, tampouco haveria anúncios dramáticos sobre a nova política”, ao confirmar, no entanto, que havia “um acordo em seu gabinete sobre uma abordagem nova e de longo prazo sobre o problema [sic] dos refugiados” em Gaza. Conforme o relatório, Peres “acreditava que essa nova abordagem levaria a uma mudança na situação dentro de aproximadamente um ano”.

Ao tentar justificar o segredo sobre a nova política, Peres afirmou que anunciá-la “daria munição aos inimigos de Israel”. Questionado sobre quantas pessoas seriam transferidas para “restaurar a paz e viabilidade de Gaza”, o futuro premiê mensurou um “cerca de um terço da população dos campos, reassentada em outras áreas do território ou fora dele” e ecoou a crença de seu regime de que “haveria necessidade, talvez, de reduzir a população total em cerca de cem mil pessoas”. Peres ainda expressou “esperanças de transferir em torno de dez mil famílias à Cisjordânia e um número menor a Israel”. Todavia, informou Londres de que este deslocamento “envolveria problemas práticos, como alto custo”.

O diplomata britânico chegou a alegar a seus superiores, sem qualquer embasamento, que “a maioria dentre aqueles afetados estaria, de fato, contente diante de uma alternativa melhor de moradia, com indenização a ser recebida assim que suas tendas fossem removidas”. Peres, de sua parte, afirmou que os refugiados palestinos ficariam satisfeitos em “aceitar apartamentos de alta qualidade construídos pelos egípcios em El-Arish, onde poderiam desfrutar de residência semipermanente [sic]”.

El-Arish era, portanto, parte da “nova política” de Israel. Ainda assim, o diplomata britânico chegou a questionar o oficial israelense: El-Arish seria considerada então uma extensão da Faixa de Gaza”, ao que obteve como resposta: “O emprego de acomodações até então vagas seria uma decisão puramente prática […] sem um [suposto] impacto ao processo de paz [sic]”.

Em análise à parte sobre as informações confidenciais enunciadas por Peres, o embaixador britânico notou que os israelenses acreditavam que qualquer solução final aos problemas de Gaza “deveria abarcar a reabilitação [sic] de parte da população fora de suas presentes fronteiras”. A nova política, argumentou o diplomata, incluía reassentar os palestinos no norte da península egípcia do Sinai, de maneira que o “o governo israelense enfrentaria risco de críticas, muito embora os resultados práticos fossem mais importantes”.

Documento registra plano de transferência de Israel [Arquivo]

Documento registra plano de transferência de Israel [Arquivo]

Em outro relatório sobre a matéria, M. E. Pike, chefe do Departamento de Oriente Próximo no Ministério de Relações Exteriores, admitiu que “medidas drásticas estariam sendo tomadas para reduzir o tamanho dos campos de refugiados [incluindo] a remoção à força dos refugiados de suas casas atuais — ou tendas, para ser mais preciso — e sua evacuação a El-Arish, no território egípcio”. Segundo Pike, “um programa mais ambicioso de reassentamento parecia estar em curso”.

Um mês depois, o exército israelense, em reunião oficial, informou a um grupo de adidos estrangeiros sobre detalhes adicionais do plano para Gaza. Durante o encontro, o brigadeiro-general Shlomo Gazit, coordenador de Atividades nos Territórios (Ocupados), afirmou que suas tropas não destruiriam as residências de Gaza “a menos que houvesse uma alternativa de habitação”, ao insistir que a operação “seria limitada ao volume de acomodações disponíveis dentro de Gaza, incluindo El-Arish”. O general israelense disse aos adidos em visita que 700 das famílias palestinas cujas casas foram destruídas pelo exército israelense supostamente haviam encontrado opções de acomodação por conta própria. “O restante foi reassentado dentro de Gaza ou em El-Arish”, acrescentou.

Segundo relato do coronel P. G. H-Harwood, adido da Força Aérea britânica, o general israelense explicou aos presentes que “as residências em El-Arish haviam sido escolhidas porque era o único lugar com suprimento já disponível de moradias vazias, em bom estado de reparo”. Sobre uma dúvida de H-Harwood, Gazlit destacou que as casas vagas haviam sido “previamente” de propriedade de oficiais egípcios.

A situação parecia estranha, do ponto de vista britânico, diante de três princípios enunciados pelo general Moshe Dayan, ministro da Defesa israelense, após a ocupação dos territórios de 1967. Estes princípios eram: presença militar mínima; mínima interferência na vida civil; e máximo contato e pontes abertas entre Israel e o restante do chamado mundo árabe.

Barnes, em um relatório abrangente, advertiu que tais informações sugeriam que a UNRWA “previa que Israel apelaria à solução [sic] de deportação”, ao reiterar que a agência “compreendia o problema securitário israelense [muito embora] não concordasse com a transferência compulsória dos refugiados de suas casas, tampouco sua evacuação em caráter temporário a El-Arish”.

Em sua análise sobre o plano secreto da ocupação em relação à Faixa de Gaza, a Administração do Oriente Próximo alertou que “quaisquer que fossem as justificativas israelenses para uma política tão abrangente, não se poderia evitar um sentimento de que Israel estaria subestimando a extensão da indignação que essa doutrina de impor fatos em campo deflagraria no mundo árabe e nas Nações Unidas”.

Os documentos, no entanto, não indicam se Estados Unidos ou Reino Unido comunicaram o Egito sobre o plano.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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