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Berlinale 2024: Como o genocídio em Gaza abalou o Festival de Berlim

Organizadores não conseguiram evitar controvérsias sobre o genocídio israelense em Gaza e a indignação por emitir convites a políticos da extrema-direita
Guillaume Cailleau e Ben Russell posam com seu prêmio da sessão Encontros pelo filme Ação Direta, no tapete vermelho da 74ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale), na Alemanha, em 24 de fevereiro de 2024 [Sebastian Reuter/Getty Images]

Dizer que a 74ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale), realizado entre 15 e 25 de fevereiro de 2024, foi um exemplo de grosseira má gestão de relações públicas seria ainda um eufemismo.

Seus diretores que agora se despedem do cargo, o curador italiano Carlo Chatrian e a produtora executiva holandesa Mariette Rissenbeek viveram uma série de catástrofes nos cinco anos no cargo. Passaram pela pandemia de covid-19 e pela invasão russa da Ucrânia em 2022. Nenhum desses revezes, no entanto, provou-se tão lesivo à reputação do evento como a guerra de Israel contra a Faixa de Gaza.

A eloquente oposição de alguns organizadores ao partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) contrapôs gravemente com sua reação tímida ao genocídio israelense em Gaza. De fato, trouxe à luz uma série de divisões na esquerda alemã. O Berlinale, como muitas outras organizações culturais no país, mostrou-se abalado por uma tempestade que falhou em conter.

Todos os principais festivais de cinema do ano, incluindo Cannes, Veneza, Toronto e Sundance, escolheram o silêncio diante de Gaza, muito menos pediram por um cessar-fogo. Não foi o caso da guerra na Ucrânia ou dos protestos de massa contra a morte de Mahsa Amini no Irã.

Mais do que nenhum outro festival, o Berlinale costuma se vangloriar de ser um evento político. Sua reputação foi nutrida e promovida pelo então diretor Dieter Kosslick, que tomou a dianteira em denunciar o então candidato à presidência americana Donald Trump, em 2016. O Berlinale também se orgulha de ser um pioneiro no cinema queer, ao introduzir o Prêmio Teddy em 1978 e uma categoria de atuação de gênero neutro em 2021. Em 2012, celebrou a Primavera Árabe e concedeu seu maior prêmio a Jafar Panahi, três anos depois, em prisão domiciliar no Irã.

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Chatrian tentou coligar as políticas liberais do evento com uma curadoria de primeira grandeza, capaz de refletir suas sensibilidades estéticas e a linguagem audiovisual em evolução. Também deu ao Ministério da Cultura e aos patrocinadores do festival o glamour das estrelas e do tapete vermelho. Em seu mandato anterior no Festival de Locarno, na Suíça, Chatrian evitou, contudo, os louros autocongratulatórios de Berlim ou as políticas performativas de esquerda.

O Berlinale tem regras distintas e o curador se viu forçado a seguir a deixa.

Caminhando em cima do muro

Tanto Chatrian quanto Rissenbeek, no entanto, se mostraram mau equipados para manobrar na atual corrente conturbada e tóxica da política alemã. Tudo começou com uma nota à imprensa, um tanto insegura, divulgada em 19 de janeiro. “Nossa solidariedade vai a todas as vítimas das crises humanitárias no Oriente Médio e em todo lugar”, disse o comunicado. “Queremos que o sofrimento de todos seja reconhecido e que nosso programa permaneça aberto para debater perspectivas distintas sobre a complexidade do mundo. Estamos também preocupados em ver que o antissemitismo, o ressentimento anti-islâmico e o discurso de ódio estão se disseminando na Alemanha e em todo o globo”.

A declaração foi emitida quando o número de palestinos mortos em Gaza se aproximava ainda de 21 mil vítimas. Ainda assim, encabulou-se de citar a Palestina ou pedir um cessar-fogo, além de sugerir que o “sofrimento” entre israelenses e palestinos seja equivalente ou proporcional. A nota, em outras palavras, equiparou vítima e agressor.

O texto foi vago, mau redigido e desesperadamente apolítico, muito diferente do que Berlinale ostentaram nas ocasiões do Irã e da Ucrânia. Caminhou absolutamente sobre o muro, ao seguir o mesmo viés de todas as instituições alemãs financiadas pelo Estado; no caso, o Ministério da Cultura.

Para salgar ainda mais a ferida, o festival decidiu criar uma plataforma de intercâmbio chamada “Tiny Houses”, sob incumbência de uma equipe israelo-palestino. Os vários ativistas, cineastas e curadores com quem falei veem a iniciativa como um conjunto de espaços fechados de debates acalorados, embora contidos, a uma distância segura das atividades principais.

Convites à extrema-direita

A invasão tomou plena forma quando uma petição emergiu duas semanas antes revelando que o Berlinale havia convidado diversos políticos de extrema-direita a sua cerimônia de abertura — medida padrão até então a membros do Comitê de Cultura do Parlamento (Bundestag).

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Os convites foram enviados semanas após o AfD ser exposto por realizar reuniões secretas com grupos neonazistas, a fim de discutir a possibilidade de deportações em massas de imigrantes, requerentes de asilo e mesmo cidadãos alemães de raízes estrangeiras.

A petição foi assinada por mais de 200 trabalhadores de audiovisual e ganhou as manchetes em todo o mundo. O Ministério da Cultura defendeu os convites, ao alegar agir “de acordo com as práticas da democracia e o respeito do governo federal ao poder legislativo e seus congressistas eleitos”. Os organizadores, a princípio, ecoaram a justificativa, contudo, com um breve adendo: “Pessoas — incluindo representantes eleitos — que agem de maneira contrária a nossos valores fundamentais não são bem-vindos no Berlinale”.

Após enorme pressão, o festival voltou atrás, ao “desconvidar” os deputados de extrema-direita e reiterar em nota posterior que “o AfD e muitos de seus membros e representantes expressam pontos de vista que são profundamente contrários aos valores fundamentais da democracia”. E acrescentou: “Demandas por uma sociedade homogênea, restrições migratórias e deportações em massa, homofobia e racismo, além de grave histórico de revisionismo e extremismo aberto, são todas encontradas na AfD”.

A nota contrapôs ainda uma entrevista desastrosa de Mariette Rissenbeek antes do começo do festival, na qual afirmou que o evento não busca se posicionar politicamente — “sobretudo em momentos nos quais não sabemos para onde está indo a política”. Suas declarações indignaram os berlinenses, incluindo a romancista Fatma Aydemir. Em artigo ao The Guardian, argumentou: “Como pode um festival internacional de cinema ocorrer na capital semanas após esses planos chocantes virem à tona? De todo mundo, como um evento de cultura poderia ser apolítico?”

Protestos pelos direitos dos refugiados no tapete vermelho da 74ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale), na Alemanha, em 24 de fevereiro de 2024 [Halil Sagirkaya/Agência Anadolu via Getty Images]

A tempestade continuou no dia da abertura. Na mais desconfortável coletiva de imprensa que o autor testemunho em 15 anos de cobertura do festival, membros do júri foram bombardeados com questões políticas que iam desde os convites à extrema-direita à admiração do cineasta e jurado catalão Albert Serra ao presidente da Rússia, Vladimir Putin. Questionados sobre Gaza, o cineasta alemão Christian Petzold deu de ombros: “Adoraria ir a um festival apolítico. Não acho que os artistas têm de falar de Gaza, da Ucrânia e do Afd. Deveriam falar sobre cinema”.

A questão palestina

Gaza, no entanto, se tornou o principal assunto. Dois dias antes de começar o evento, múltiplos trabalhadores do festival divulgaram no Instagram seus apelos por cessar-fogo, algo evitado até então por seus superiores.

“Reconhecemos os limites vigentes impostos à liberdade de expressão”, apontou o comunicado. “Queremos que o festival e nós mesmos sejamos vistos em maior estima. Tamanha plataforma internacional como o Berlinale, e nós, como curadores, consultores, moderadores, facilitadores, anfitriões e trabalhadores em geral, podemos e devemos expressar nossa oposição aos ataques em curso contra a vida palestina”.

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No primeiro dia, a diretora americana Eliza Hittman, vencedora do Urso de Ouro, compareceu à cerimônia com os dizeres “cessar-fogo já” bordados em sua roupa. Michael Stutz, diretor-chefe da competição Panorama, pediu fim dos assassinatos em Gaza e retorno dos reféns. Numerosos cineastas removeram seus filmes do evento paralelo Fórum Expandido, em apoio ao movimento Strike Germany, que pede boicote às instituições cultural do país por sua censura contundente a vozes pró-Palestina. Curadores da sessão também se juntaram aos apelos por cessar-fogo.

No domingo, atos pró-Palestina abalaram a zona comercial do evento, com cerca de 50 ativistas pedindo “fim do genocídio”.

Platitudes por diálogo e contra o ódio, como insistiu Rissenbeek no evento de abertura, soaram vazias diante do silêncio sem precedentes sobre os crimes de Israel e da perseguição das vozes palestinas e pró-Palestina na Alemanha — uma realidade que a imprensa local reconheceu, por fim, nos últimos dias.

No Other Land

Coletivo responsável pelo documentário No Other Land, na aldeia de al-Tuwani, na Cisjordânia ocupada, em 14 de março de 2024 [Yahel Gazit/Middle East Images/AFP via Getty Images]

Poderia o Berlinale agir melhor no que diz respeito às queixas pró-Palestina? Certamente. Seus curadores, Chatrian e Rissenbeek, geriram mal os convites à extrema-direita e o silêncio sobre a Faixa de Gaza? Muito provavelmente, sobretudo após trabalhadores de campo arriscarem suas próprias carreiras ao publicar uma petição por cessar-fogo.

Contudo, impor toda a culpa sobre os diretores de saída seria desonesto, com base nos diversos relatos contraditórios por trás das cortinas. Não está claro quem foi que puxou as cordinhas em Berlinale e foi a total falta de transparência, sobretudo por parte do Ministério da Cultura, que levou a intermináveis fofocas e teorias da conspiração. De fato, os maiores problemas do evento são institucionais e estruturais — e não individuais.

Todas as instituições ligadas ao Estado na Alemanha, em grande parte da Europa e nos Estados Unidos fazem o mesmo malabarismo com as políticas absurdas de seus governos, que insistem em permanecer hostis à causa palestina após 7 de outubro e todos os meses desde então.

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Tensões relacionadas à Palestina foram precisamente capturadas durante a exibição do longa-metragem documental No Other Land, obra contundente sobre os assentamentos radicados na Cisjordânia ocupada, codirigida por dois palestinos e dois israelenses. O filme — parte da seção Panorama — compõe-se majoritariamente de um diário em vídeo gravado entre o verão do ano de 2019 e o inverno de 2023, detalhando a vagarosa demolição e violenta evacuação da aldeia de Masafer Yatta e os esforços desesperados dos palestinos nativos para defender sua terra.

Dois jovens surgem como protagonistas do relato: Basel Adra, palestino graduado em direito, e Yuval Abraham, jornalista e ativista israelense. Junto com os codiretores Hamdan Ballal e Rachel Szor, o grupo compôs um comovente e detalhado retrato de vidas palestinas inocentes sob uma situação prevalente de assédio e desespero. Sem recair ao sensacionalismo, a equipe conseguiu encontrar momentos de humanidade, sobretudo na amizade entre Basel e Yuval — um vínculo tamanho que parece contrastar com a realidade brutal de Masafer Yatta.

Da destruição de casas civis, escolas fundamentais e infraestrutura de luz e água à proibição de carros e uma interminável burocracia kafkiana, o aspecto mais perturbador do registro envolve atos cotidianos de violência e racismo cometidos por colonos sob escolta pesadamente armada de soldados da ocupação israelense. O assassinato a sangue frio do residente Harun Abu Aram é possivelmente a imagem mais chocante que este escritor testemunhou no cinema neste último ano.

Estreia do filme No Other Land na aldeia de Al-Tuwani, na Cisjordânia ocupada, em 14 de março de 2024 [Yahel Gazit/Middle East Images/AFP via Getty Images]

No Other Land se encerra antes de 7 de outubro. O destino de Masafer Yatta continua em risco. O mundo que o filme mostra é distante de Gaza e do Hamas. A injustiça sistemática e os abusos de direitos humanos financiados por governos ocidentais, ignorados há décadas, entretanto, são prevalentes.

A conversa após a exibição foi um verdadeiro teste, marcada por uma presença de seguranças privados absolutamente incomum. Gritos de “do rio ao mar” foram recebidos com um misto de aplausos e ressalvas do público presente. Um coro de “Palestina livre” foi interrompido por uma voz solitária que gritou em alemão, “Liberdade a Palestina e Israel”, cuja reação foi um sonoro “Fora!”. Um espectador reagiu de maneira passional à tentativa do alemão de equiparar colonos e colonizados, ao respondê-lo com um tremendo palavrão.

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Abraham destacou: “Não existe simetria entre mim e Basel. Há um desequilíbrio de poder nessa relação”. Adra, por outro lato, condenou a relutância do festival em pedir um cessar-fogo. Toda essa discussão, altamente politizada, foi precisamente o que tornou o Festival Internacional de Cinema de Berlim uma plataforma distinta — debates abertos nas salas de cinema mais do que lotadas, e não escondidos em “pequenas casas”.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 23 de fevereiro de 2024

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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