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Quem acredita nos EUA?

Incêndio na casa de shows Crocus City Hall, na periferia de Moscou, em 22 de março de 2024 [Ali Cura/Agência Anadolu]

Alguém que analisa geopolítica e política internacional deve ter como base a desconfiança constante de tudo e de todos. Não se deve ser ingênuo e acreditar que existe no mundo uma luta do bem contra o mal, dos bonzinhos contra os malvadões. O que há são interesses nacionais, baseados nos interesses de classes sociais.

O atentado do dia 22 de março em Moscou está inserido nesta luta de interesses. Ela se reflete nas versões apresentadas para o mesmo fato. Os Estados Unidos disseram que a Ucrânia não tem nada a ver com o ataque, antes mesmo de a Rússia descobrir alguma coisa sobre o ocorrido. Obviamente os russos – que, como players profissionais, também desconfiam de tudo – acharam essa declaração muito estranha.

Depois, as agências de notícias ocidentais relataram um anúncio que teria sido feito pelo Estado Islâmico. “O ataque vem no contexto de uma guerra violenta entre o Estado Islâmico e os países que combatem o Islã”, diz um comunicado atribuído à Amaq News Agency, pertencente ao ISIS.

Toda a imprensa monopolista tem utilizado essa declaração para dizer que o Estado Islâmico assumiu a culpa do atentado “e ponto”, na expressão de Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado. Como toda essa imprensa é comprada pelos EUA, também não podemos acreditar nela. É por ela que o governo dos EUA dissemina as suas mentiras, que serviram para justificar as piores barbaridades das últimas décadas.

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Os EUA mentiram sobre os motivos que o levaram a entrar em guerra contra a Espanha para controlar Cuba, ainda no final do século XIX. Os EUA mentiram para invadir o México dez anos depois. Os EUA mentiram para intervir militarmente e bloquear a Rússia após a revolução de 1917. Os EUA mentiram para entrar na II Guerra Mundial e depois despejar duas bombas atômicas no Japão. Os EUA mentiram para aplicar golpes militares por toda a América Latina na segunda metade do século XX. Os EUA mentiram para invadir o Iraque duas vezes. Os EUA mentiram para destruir o Afeganistão. Os EUA mentiram para devastar a Líbia e matar seu líder. Os EUA mentiram para bombardear a Síria. Os EUA mentiram para derrubar Nicolás Maduro na Venezuela. Os EUA mentiram para prender Julian Assange.

Logo, não há razão nenhuma para acreditar no que diz o governo dos Estados Unidos e seus meios de comunicação. Sobre nada, e muito menos sobre acontecimentos relativos à Rússia, sua arquirrival.

O mascote do imperialismo americano deveria deixar de ser o Tio Sam para dar lugar ao Pinocchio. Todos os observadores minimamente atentos perceberam que o nariz dos EUA aumentou um pouco mais após suas declarações sobre o atentado do Crocus City Hall.

Contudo, também não se pode acreditar piamente no que dizem as autoridades russas. Mas, até o momento, elas são a fonte mais confiável nesta história. Sempre que atentados ocorrem, todos recorrem às investigações oficiais. Quando as autoridades dos EUA dizem algo sobre um atentado em seu território, toda a imprensa dá como certas suas palavras. A mesma confiança é dada às informações divulgadas pelas autoridades europeias. Então, por que acreditar menos nas autoridades russas do que nas ocidentais?

Ora, só porque a Rússia é um regime autocrático comandado por um tirano assassino. Só por isso. A propaganda difundida pela indústria de mentiras dos Estados Unidos também serve ao propósito de desacreditar e deslegitimar quaisquer reivindicações do governo russo – exatamente como faz a propaganda israelense (difundida pela mesma indústria de mentiras dos EUA) contra o Hamas e as estatísticas computadas diariamente pelo seu governo sobre o número de mortos no genocídio em Gaza.

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Se deixar de lado o preconceito resultante da propaganda americana contra o governo russo, veremos que o que dizem suas autoridades tem o mesmo peso das palavras das autoridades ocidentais quando atentados ocorrem nos EUA ou na Europa.

Mas, neste caso, se não é possível confirmar que a verdade está do lado dos russos, ao menos a lógica o está. Não tem lógica o atentado ter sido organizado pelo Estado Islâmico por interesses próprios. O discurso de que atacou a Rússia porque é inimiga do Islã é falacioso, pois a Rússia é o principal aliado dos países muçulmanos – por outro lado, o ISIS não fez absolutamente nada contra Israel, considerado unanimemente o grande inimigo do Islã, mesmo após seis meses de genocídio em Gaza.

Da mesma forma, deve-se desconfiar da reivindicação do ISIS pelo atentado em Kerman, no Irã, no início do ano, ocorrido nas comemorações pelo martírio do general Qassem Souleimani por um ataque dos EUA – atentado ocorrido em meio ao genocídio em Gaza, o qual Israel comete com a desculpa de combater os “procuradores” do Irã. Não tem lógica a responsabilidade do Estado Islâmico: a lógica é que Israel e os EUA estejam por trás daquele atentado.

Por outro lado, há muita lógica em a Ucrânia (com os EUA por trás, pois são os que comandam Kiev desde 2014) ter ordenado a realização do atentado em Moscou. É o que Kiev tem feito há dez anos no Donbass contra a população de origem russa. É a sua tática após não ver possibilidade de vitória no campo de batalha: o uso de drones para atingir edifícios residenciais na Rússia tem sido diário há cerca de um ano e meio, enquanto atentados foram executados em restaurantes e cafés para matar personalidades apoiadoras do Kremlin.

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Está comprovado que a CIA estimulou os sentimentos fundamentalistas islâmicos nas repúblicas da Ásia Central para desmembrar a União Soviética, que apoiou os mujahideen no Afeganistão, depois os transportou para a Bósnia e para o Kosovo a fim de dividir a Iugoslávia, criou o Estado Islâmico para manipular a luta armada no Oriente Médio e direcioná-la à derrubada dos regimes nacionalistas e depois, novamente, levou combatentes do oeste da Ásia para o leste europeu, estacionando-os na Ucrânia para combaterem a Rússia.

Portanto, enquanto não houver provas irrefutáveis sobre os reais responsáveis pelo atentado em Moscou, nenhuma possibilidade pode ser descartada. Principalmente se levarmos em conta a história.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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