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A promessa do amigo querido de Israel e seus pés de barro no país que o elegeu

O presidente argentino Javier Miley é recebido por Benjamin Netanyahu em sua primeira viagem oficial depois de empossado [GPO/ Agência Anadolu]

Dois pesadelos têm levado, por motivos distintos, os argentinos às ruas. Um é  interno,  o pacote anti-Estado batizado de Proyeto Omnibuss do novo presidente Javier Miley, alvo de protestos maciços desde que foi anunciado e que acaba de se espatifar. E outro é causa de indignação mundial e do povo argentino que não é indiferente à experiência do genocício: o massacre mortal de Gaza, razão de atos na porta do governo para que este não se envolva com isso. Não adiantou.  Em um único dia, os dois motivos de protesto se juntaram em uma turbulência só.

Em plena matança de palestinos por bombas, tiros, fome, sede, frio, epidemias e bloqueio ao socorro, com Israel sendo julgado por genocídio no Tribunal Internacional de Justiça (TJI) o presidente argentino viajou a Israel e levou consigo uma prova de lealdade com a promessa de transferir a embaixada argentina de Tel Aviv para Jerusalém.

A cidade é a joia da coroa cobiçada  pelo Estado de ocupação, à custa da progressiva eliminação da população palestina originária, desde 1948. A transferência de embaixadas é uma estratégia de Israel para que governos aliados participem e legitimem sua  apropriação do território, desconhecendo direitos palestinos e contrariando o direito internacional que permanece eternamente à espera de uma solução diplomática entre ocupante e ocupado.

Logo ao chegar, Javier é lembrado pelo ministro de Relações Exteriores de Israel  sobre a manifestação de apoio a Israel contra o Hamas, o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel e é cobrado a declarar seu compromisso de transferir a embaixada para Jerusalém. Imediatamente ele obedece e repete o compromisso.

O deep state de Israel parece operar pela ascensão das mais estranhas criaturas políticas e e seus medonhos projetos de terra arrasada em matéria de direitos, cobrando seu preço por não se sabe que tipo de ajuda essas figuras tenham recebido.

Foi assim com o Brasil de Bolsonaro, é assim com a Argentina de Miley. Transferir a embaixada foi um compromisso de campanha de ambos, que não deu certo aqui, e que depende do futuro político do novo presidente argentino. E as coisas não parecem nada boas para seu lado.

LEIA: Milei anuncia planos para transferir embaixada argentina a Jerusalém

Enquanto Miley viajava para selar seu compromisso com a ocupação de Jerusalém, precisou reconhecer de lá sua própria derrota na votação do projeto de reformas que, se aprovado, selaria o caminho neoliberal e selvagem da Argentina possivelmente por muitos anos.

Miley sin Ley

Os argentinos acordaram ontem com as notícias sobre a transferência da embaixada pipocando em todas mídias.  Mas foram dormir com a derrocada dos planos nacionais de Miley em votação dentro de casa. Enquanto a alta delegação argentina circulava por uma agenda midiática em Israel, os parlamentares e governadores argentinos discutiam os ajustes ao Omnibus (pacote de medidas e reformas que um presidente recém-eleito manda ao Congresso), e começaram a derrubar, no varejo das emendas e destaques, os primeiros artigos de um pacote que já haviam aprovado dias antes no atacado. Bastou a votação de seis artigos – de 300 que viriam –  para que MIley visse cair, de longe,  várias prerrogativas que lhe dariam poder monocrático nas chamadas “emergências”.  Enfurecido, após chorar de emoção no Muro das Lamentações, tomou pé da situação na Argentina que estava afundando seu projeto. Diz que foi ele próprio a decidir mandar tudo para o espaço. Ou seja, de volta à estaca zero, para recomeço da votação de todo projeto original – o pacote de 660 artigos – nas comissões. A lei do Omnibus está morta, e Miley experimenta seu prematuro e indiscutível fracasso.

“ Miley sin Ley” – A chamada tanto irônica quanto verdadeira foi cunhada pelo jornal Página 12 ao registrar o capotamento do Omnibus que ele conduzia.  “Melhor lei nenhuma do uma lei ruim”, disse Miley, tomando pra si a decisão da retirada. Uma voz no parlamento disse o famoso“eu bem que avisei”. Outra na rede social lembrou-lhe que democracia é assim. Se não tem votos, tem de buscar.

Da parte do governo, um integrante da delegação a Israel compartilhou a fúria do presidente e ameaçou algo como:  “agora saberão o que é ajuste!” Ainda não se sabe o que ele quis dizer com isso, já que, em uma democracia, reformas devem ser aprovadas pelo parlamento e Miley, de fato, não tem maioria.

Bem-vindo querido amigo.

Voltando ao projeto de Miley, de aprofundar seus laços com Israel, é merecido o abraço que ele recebe de Netanyahu nesta quarta-feira, porque é preciso dar nome às coisas.

““Saúdo calorosamente a chegada do presidente da Argentina, amigo de Israel, Javier Miley, que anunciou a transferência da embaixada argentina para Jerusalém. Seja bem-vindo querido amigo” – as palavras são do primeiro-ministro de Israel.

O sionismo acalenta aliados da ocupação na América Latina, até que estes desmoronem nos próprios pés de barro. E os sinais da derrocada não tardam muito.

LEIA: A mídia hegemônica brasileira se alinha ao discurso sionista

Miley longe de casa tem mais uma componente fora de hora em sua agenda. Ele viajou decidido a falar a Netanyahu que pretende incluir o Hamas na lista argentina de organizações terroristas. O dia, no entanto, está mais para a expectativa mundial sobre esforços de acordo que mediadores estão promovendo entre Israel e Hamas para um cessar fogo.

Reunião de Javier Miley com Netanyahu em 07 de fevereiro de 2024

Por essas e por outras, as ruas de Buenos Aires, mesmo com a repressão correndo solta, por ordens suas, dedicaram protestos contra a viagem de Miley ao Estado de ocupação e apartheid e que que hoje é acusado em tribunais de ser o QG de um genocício. A solidariedade com Gaza ganha força maior porque, no caso argentino, genocídio não é uma palavra distante da memória e está muito presente em sua história.  Não é preciso ir tão longe quanto os genocídios indígenas que marcaram a formação da Argentina. como foi a  “A Campanha do Deserto”, para a incorporação da Patagônia, com 14 mil indígenas mortos entre 1878 e 1885. Em 2010, o censo argentino indicava que, dos então 45 milhões de habitantes, apenas 1 milhão se definem como descendentes de alguma das 39 etnias originárias.Em 2015, a antropóloga argentina da Rede de Pesquisas em Genocídio e Política Indígena, Diana Lenton que levantou provas do genocídio dos povos originários em seu país, declarou  que “a sociedade ainda não deixou de ser genocida com os povos originários”. Somente em 2022, um caso de 100 anos antes começou a ser julgado, sem que houvesse mais nenhuma testemunha viva.  De 1975 a 1983, a Argentina sofreu uma das mais crueis e sangrentas de ditaduras do século passado na região.  Mais de 50 anos depois,  ainda está à procura de justiça e verdade para grande parte dos 30 mil mortos e desaparecidos.  Mas seu novo presidente não reconhece isso, apegando-se apenas aos números oficialmente registrados que não dão dão conta de muito mais de 8,5 mil vítimas.

Mães e avós da Praça de Maio em busca das crianças sequestradas pela ditadura argentina entre 1975 e 1983 [Madres de la Plaza de Mayo]

Nora Cortiñas, Mãe de Praça de Maio, ao lado do Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel,  acusam a “abordagem negacionista do governo em relação ao genocídio sofrido por nosso povo nas mãos da última ditadura civil-militar, bem como o genocídio em curso que está ocorrendo sob os olhos do mundo inteiro na Palestina” e afirmam que essa atitúde não é compartilhada pelo povo argentino, “que tem uma longa história de defesa dos direitos humanos.”

Protesto contra a viagem de Miley a Israel em frente ao Ministério de Relações Exteriores da Argentina em Buenos Aires.

Ambos ajudaram a convocar um protesto em frente ao em frente ao prédio das Relações Exteriores – cuja chanceler também estava em Israel, na delegação de Miley. Participaram organizações históricas e importantes, como a Comissão dos Prisioneiros e Desaparecidos. Eles pedem o cessar fogo, a entrada de ajuda ao povo de Gaza, a sustentação da UNRWA, o fim do genocídio e a não transferência da embaixada argentina para Jerusalém.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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