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O que trará 2024? Guerra, mega-ameaças e o Ocidente nas cordas

Protesto pró-Palestina em frente ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) em Haia, na Holanda, em 11 de janeiro de 2024; no cartaz: "Esta criança sofrerá 20 anos de ocupação, terrorismo, assassinato e deslocamento forçado, e quando perceber que não há nada pior que o presente, lutará por um futuro melhor" [Dursun Aydemir/Agência Anadolu]

Poucos diriam que 2023 foi um bom ano para a paz mundial ou a prosperidade econômica. Uma pesquisa da rede Ipsos em 34 países no mundo revelou que 70% do público descreveria 2023 como um ano ruim para seu país e 53% para suas famílias.

Por trás de sete décadas de fé no progresso, apesar dos desafios, havia uma crença latente na sociedade ocidental.

Os horrores de Gaza, no entanto, e antes disso o cerco russo de Mariupol, deixaram claro — caso houvesse alguma dúvida — de que a ideia de progresso, rumo a democracia, direitos humanos, autodeterminação e paz, era nada mais que uma vã esperança, sem jamais chegar às vias de fato.

Hoje, vivemos na era das “mega-ameaças”, como observou o economista Nouriel Roubini, ao retornarmos a uma situação análoga à instabilidade global entre 1914 e 1945.

Quem sabe, a verdade já estivesse exposta em letras garrafais pelos horrores perpetrados na Síria, registrados pela primeira vez por um novo mecanismo de mídias sociais, para além das trevas que envolvem os centros de extermínio de Bashar al-Assad, onde a luz não chega. No entanto, os perpetradores continuaram ilesos.

Liberais no Ocidente — até outubro último — permaneciam orgulhosos em dizer que jamais se engajariam em tais métodos para travar suas batalhas ou proteger aliados regionais. Que ignoremos o Iraque e a destruição do Estado, que deu à luz milícias sectárias, como parte de um plano para “deixar acontecer”, nas palavras imortais do falecido Donald Rumsfeld.

Oito décadas desde o Holocausto, voltamos à estaca zero? Voltamos a uma velha lei da selva ou ao vale-tudo nas regras de agressão?

Contudo, em 2023, décadas de propaganda sobre a “única democracia no Oriente Médio” se materializaram quando Israel, imbuído de laços estratégicos e militares com o establishment político do Ocidente, além de profundo apoio da imprensa corporativo, lançou uma guerra de extermínio contra os palestinos de Gaza. Após a operação do Hamas em 7 de outubro, o Ocidente não tardou em expressar seu máximo apoio ao regime ocupante.

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Quase quinze dias desde o início de 2024, um mau agouro paira sobre o futuro próximo, ao anunciar a sombra de um apocalipse no novo ciclo que começou, junto a um sentimento de que ninguém, nenhuma potência ou país, poderá impedir os horrores que avançam dia após dia. Escrevo este texto enquanto o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, faz outra turnê sem sentido ao Oriente Médio, ao ofertar a Israel novos “direitos” para travar sua guerra até que o último palestino enfim caía morto.

Falso progresso

O progresso que se seguiu à Segunda Guerra Mundial e à descolonização da Ásia e da África anos depois — de fato, a própria ideia de ordem internacional — parece cada vez mais uma ilusão, ou apenas um subproduto do frágil equilíbrio da Guerra Fria, no embate por poder e influência entre Washington e Moscou.

Dado que a liderança ocidental ostenta sua absoluta cumplicidade com a guerra genocida de Israel em Gaza, incluindo ao suprimir vozes críticas via uma hedionda caça às bruxas, nada disso me parece uma hipérbole.

Em outros lugares, as guerras engendradas no Ocidente, que assolaram países como Líbia ou Iêmen, deram à luz monstros estranhos, como as Forças de Suporte Rápido (FSR) no Sudão, tiranos e milícias no Golfo e regimes europeus que buscam limitar a imigração africana. Ao reunir fortuna e arsenal em sucessivos conflitos, forças paramilitares do Sudão, por exemplo, voltaram suas armas à capital Cartum, entrando em disputa com as Forças Armadas, levando a milhões de novos refugiados e mergulhando no caos o segundo maior país do continente africano, a partir da deflagração de uma guerra civil no último mês de abril.

Na Europa e no Reino Unido, lideranças obcecadas com a “ameaça” da migração, a partir de zonas de guerra, ascenderam ao poder ao ignorar ostensivamente as razões pelas quais tais populações decidem fugir de suas terras ancestrais, no Afeganistão, no Iraque, na Síria e em outros lugares.

A recusa de nossas elites políticas em oferecer qualquer verdadeira solução a problemas que enfrentamos coletivamente como sociedade — seja desigualdade, pobreza, endividamento, colapso nos serviços públicos, entre outros —, ao invés de recorrer a cada vez mais medidas de austeridade e privatização, reflete perfeitamente um fracasso internacional.

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Em um ano de recordes de temperaturas, incêndios colossais e enchentes mortais, a Cúpula das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas de 2023 (COP28) mostrou-se nada mais que uma farsa hedionda. Chefiada pelo ministro de Petróleo dos Emirados Árabes Unidos, com a presença de uma turba de lobistas do setor de energia, a conferência jamais chegou aos pés de resultar em meios tangíveis para encerrar a demanda por combustível fóssil, senão algum horizonte muito, muito distante.

Há raríssimas exceções, como a Colômbia sob o presidente de esquerda Gustavo Petro, que anunciou no evento: “A Colômbia parou de assinar contratos para exploração de carvão, gás e petróleo”.

Nações desafiam o império

Por contraste, o entusiasmo e o fervor pelo qual líderes ocidentais apoiaram a luta ucraniana contra a Rússia, após sua invasão em fevereiro de 2022, pareceu não ter precedentes. Sob o presidente Vladimir Putin, a Rússia invadiu a Ucrânia e o Ocidente prontamente se propôs a ajudar. O fato de que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) buscou abastecer o arsenal ucraniano, e seu bombardeio de Donbass desde 2014, se tornaram mero detalhe, eclipsado pela agressiva invasão de Putin.

A fissura entre Ocidente e o resto do mundo agora é um abismo. O restante do planeta viu, com enorme clareza, os Estados Unidos e a Europa correrem em socorro de irmãos em solo ucraniano, enquanto abriam as portas a refugiados brancos. Ao mesmo tempo, no entanto, refugiados da África e do Oriente Médio se afogavam no Mar Mediterrâneo.

Onde está a justiça para criminosos de guerra do mundo de hoje? O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) emitiu um mandado de prisão ao presidente russo por sua guerra na Ucrânia, muito embora seus crimes na Síria e na Chechênia já fossem suficientes, muito antes, para colocá-lo no banco dos réus. Mas crimes cometidos por Estados poderosos parecem jamais exigir responsabilidade. Criminosos de guerra da Sérvia, do Congo e do Sudão enfrentam a justiça, enquanto assassinos similares — como Vladimir Putin, George W. Bush, Joe Biden e Tony Blair — estão seguros em suas casas.

Quem sabe, nem tudo está perdido. Caso o processo de genocídio apresentado pela África do Sul contra Israel, diante de um painel de juízes da Corte Mundial em Haia, obtenha êxito, um destino de quase pária pode recair sobre Benjamin Netanyahu e seus generais.

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Quinze anos atrás, a última das guerras pós-coloniais na Ásia e na África terminou, enquanto o Ocidente cedia a seus fantasmas. As últimas guerras na África contra o colonialismo e seus mercenários — na Namíbia, em Angola e em Moçambique — encerrou-se há mais de trinta anos. Graças, em parte, a Cuba e à solidariedade heróica de seu presidente Fidel Castro para com os movimentos por libertação no além-mar, o violento regime de apartheid na África do Sul enfim terminou.

Nelson Mandela disse que a batalha crucial de Cuito Cuanavale, na Angola, contra as tropas sul-africanas, em 1988, “destruiu o mito da invencibilidade do opressor branco”. Ecos dos cem dias de confrontos em Gaza, entre os combatentes da resistência palestina e as tropas da ocupação israelense, ou a campanha iemenita no Mar Vermelho, mostram uma realidade potencialmente transformadora: pequenas nações que desafiam o império podem fazer o que a comunidade internacional jamais fez.

Fim de jogo

A era contemporânea de globalização e capitalismo financeiro chegou a uma rua sem saída. Ainda assim, a ordem política atual mostra-se incapaz de trazer consigo uma transição a um mundo mais sustentável, igualitário e pacífico. No passado, quando as velhas ordens sociais falhavam em trocar de pele e a riqueza se tornava exclusiva a uma elite cada vez menor, atos de revolução foram inevitáveis.

A última grande era de globalização, entre 1870 e 1914, encerrou-se após todo o planeta ser repartido pelas potências coloniais, quando o então kaiser da Alemanha, Wilhelm II, buscou redesenhar o mapa da Europa conforme seus próprios sonhos imperiais. O comércio cessou e jovens de todo o continente foram sacrificados nas planícies enlameadas de Ypres, Somme e Passchendaele.

A guerra culminou em revoluções na Rússia e na Alemanha e no pleno colapso dos impérios Austro-Húngaro e Otomano. Três décadas de crise, totalitarismo e guerra vieram adiante.

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As revoluções do século XX foram sangrentas, mas mudaram radicalmente a ordem social e mundial, criando avanços aos trabalhadores, às mulheres e aos povos colonizados.

O problema hoje é imaginar que tipo de processo ou reordenamento internacional poderia desatar o nó górdio do imperialismo militar-industrial — que governa com mão de ferro nas capitais ocidentais, como em Washington, Londres, Bruxelas e Moscou.

Quem sabe, o ano de 2024 trará respostas. Se não revoluções, certamente vivenciaremos novas ondas de choque a abalar o futuro próximo.

Publicado originalmente em Middle East Eye

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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