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O Hamas é terrorista? O que diz a lei internacional?

Protesto sit-in em frente à Câmara Legislativa de Alberta, em Edmonton, Canadá, em 18 de outubro de 2023 [Stringer/Agência Anadolu]

Para os historiadores, a Palestina existe há quatro mil anos. O Estado moderno da Palestina existe há um século, segundo juristas — com fronteiras reconhecidas, sistema judicial próprio, passaportes, selos e moeda. O Estado palestino conduziu acordos abrangentes com países regionais e internacionais, incluindo a potência mandatória, o Reino Unido.

Portanto, é correto afirmar que o conflito em voga não começou no sábado, 7 de outubro de 2023. A Palestina sofre violência desde 1948. E tudo remete a um vulcão ativo que ronca ruidosamente dia após dia, dolente e indignado. Vez ou outra, entra em erupção. A deflagração que vemos hoje é, podemos dizer, a mais contundente desde 1948.

O povo palestino não exige nada demais: reivindica apenas a restauração de seus direitos soberanos sobre suas terras. A erupção que agora escava trincheiras na região é consequência desta violação primordial da lei internacional. Ainda assim, para os governos ocidentais, o vilão dessa história é o povo palestino. Ações legais, através de princípios fundamentados, podem tornar possível restabelecer verdade, memória e justiça.

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Temos de voltar às raízes do problema, a 1917, quando potências ocidentais que ansiavam criar um assentamento colonial no Oriente Médio para controlar os povos árabes se depararam com a alternativa sionista. Mais de um século depois, Israel é a potência militar ocupante em Gaza, apesar de retirar suas tropas do território costeiro, à medida que controla todos os aspectos da vida da população — água, comida, energia elétrica, serviços e outros. Segundo a lei, Israel deve proteger a população ocupada. Não obstante, não somente não o faz, como mantém sucessivos bombardeios e massacres, além de um cerco absoluto em vigor desde 9 de outubro recente.

As decisões políticas de prender combatentes da resistência palestina costumam ser apresentadas como “julgamentos” por parte da ocupação, com um verniz de regularidade. No entanto, tratam-se de encarceramento de prisioneiros de guerra mantidos arbitrariamente, que Israel não tem o direito de julgar conforme a 3ª Convenção de Genebra. Mesmo sob a 4ª Convenção de Genebra, tais “julgamentos” são ilegais: realizados fora do território palestino, falham em respeitar princípios estabelecidos de justiça. Palestinos detidos são igualmente reféns políticos de Israel — terminologia empregada com frequência para falar dos colonos capturados pelo movimento de resistência Hamas.

Conforme o Tribunal Penal Internacional (TPI), a única corte incumbida de julgar crimes de guerra, a Palestina é um Estado. De fato, o Estado da Palestina senta-se à mesa na Assembleia dos Estados-membros do tribunal radicado em Haia, em pé de igualdade com outros 122 países reconhecidos. Portanto, o que as potências ocidentais realmente comprometem ao negar a realidade de um Estado palestino são seus próprios princípios declarados. O Hamas reafirmou consentir com o direito internacional e se dispôs a colaborar com Haia. Por outro lado, Israel rejeita a lei internacional e se recusa a qualquer colaboração. Neste sentido, está claro: o Hamas curiosamente está ao lado da lei, enquanto Israel prefere ignorá-la. Todos os crimes cometidos atualmente são consequência desta veemente negativa da lei.

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O estatuto de Tribunal Penal Internacional define uma longa lista de delitos — nenhum deles se refere a “terrorismo”, à medida que a palavra tem cunho ideológico usado para criminalizar opositores políticos ao longo da história. Nelson Mandela e Charles de Gaulle já foram chamados de terroristas em outros tempos. Além disso, o partido Hamas — que reconhece a autoridade de Haia e deseja colaborar com os inquéritos — denuncia as alegações de terrorismo como conceito vago de caráter político e midiático, sem qualquer valor legal. O Hamas sequer está na lista de entidades terroristas compilada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Os atos cometidos pelos agentes da ofensiva palestina no território hoje considerado Israel serão julgados justamente por Israel e seus aliados ocidentais — como processo já deflagrado na França. Israel certamente não concorda em encaminhar tais denúncias a Haia, apesar da corte ter absoluta jurisdição por causa da nacionalidade palestina dos combatentes da resistência. Não obstante, ao que parece, será adotado o princípio de subsidiariedade, ao intervir apenas caso não haja processos nacionais.

Esta deve ser a linha adotada em nome da legitimidade internacional:

  1. Contestar eventuais julgamentos israelenses, dado que Israel se nega a respeitar a lei internacional;
  2. Requerer insistentemente uma investigação de Haia, à medida que a lei doméstica de Israel ignora o direito internacional. O Hamas espera que o sistema de justiça se pronuncie, conforme tramitação legítima por parte do TPI.

À medida que Israel der início a processos judiciais contra a resistência palestina, a promotoria em Haia deve fazer o mesmo, sobre os mesmos incidentes, ao demonstrar assim que as ações israelenses equivalem a grave violação da lei humanitária internacional (Estatuto, Artigos 8, 2, a e 6). Portanto, será preciso registrar sucessivas queixas contra juízes israelenses e seus veredictos arbitrários e discriminatórios. A possibilidade de um julgamento em Haia contra combatentes da resistência é vaga, salvo episódios individuais. De fato, as forças coloniais jamais encaminharão seus casos a Haia, pois incorreria em aceitar o decreto da corte 5 de fevereiro de 2021, que reconhece oficialmente o Estado da Palestina. A resistência deve multiplicar suas denúncias ao tribunal … mesmo que permaneçam inativas. Diante dos tribunais, o quadro de defesa seria autodefesa. O Estatuto fornece uma versão ampla desta prerrogativa junto ao Artigo 31 (d), que legitima a resistência armada caso seja a única forma de proteger uma população. Portanto, há espaço abundante de manobra e argumentação legítima.

Israel não quer desmantelar sua ocupação dos territórios palestinos, incluindo Jerusalém, ao promover como solução final um único Estado. Israel não quer aceitar o princípio de igualdade entre cidadãos judeus e cidadãos árabes, ao insistir em um Estado exclusivamente judaico, cujo único meio para tanto é a imposição de um regime de apartheid.

Queixas devem ser também encaminhadas aos líderes europeus, que prestam assistência a tais políticas coloniais — portanto, cúmplices de crime de apartheid. Todos os Estados europeus, vale reiterar, ratificaram o Estatuto do Tribunal Penal Internacional.

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Conforme as coisas avançam, será crucial submeter as denúncias sobre a anexação ilegal de Jerusalém, dado o que está em risco e a nitidez das evidências. Desta forma, o promotor-chefe Karim Khan não poderá sentar-se ocioso sobre as queixas por sete anos, quando se encerra seu mandato. Todos os crimes em curso — bombardeios indiscriminados, cerco e punição coletiva, transferência forçada e genocídio — recaem à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. O promotor, no entanto, deve recorrer à “complexidade” do caso e à abundância de fatos para procrastinar ainda mais sua investigação.

O primeiro passo é avançar na denúncia e no subsequente processo sobre a anexação ilegal de Jerusalém — além da ocupação na Cisjordânia e do cerco militar contra Gaza . A credibilidade de Haia — que atrai os olhos do mundo nestes tempos críticos — está em jogo. É seu dever para com a resistência histórica julgar os crimes de Israel.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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Palestina: quatro mil anos de história
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