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‘Nunca negociaremos sob pressão’, reafirma ex-embaixador de Cuba aos EUA

O cerco israelense contra Gaza carrega semelhanças com os 64 anos de bloqueio dos Estados Unidos contra Cuba, destacou José Ramón Cabañas Rodríguez ao MEMO
José Ramón Cabañas Rodríguez, embaixador de Cuba aos EUA, em Fort Lauderdale, Flórida, 31 de agosto de 2016 [Joe Raedle/Getty Images]

José Ramón Cabañas Rodríguez atuou no serviço diplomático cubano por 37 anos. Em 2015, foi nomeado o primeiro embaixador de seu país nos Estados Unidos em 50 anos. Durante sua longa e distinta carreira, Cabañas esteve envolvido em alguns dos mais difíceis desafios diplomáticos que Cuba enfrentou nas últimas décadas. Ele desempenhou um papel fundamental na garantia da libertação dos Cinco de Miami, que estavam presos nos Estados Unidos. Agora de volta a Havana, é diretor do Centro de Pesquisa de Política Internacional (CIPI). José conversou recentemente com o diretor do MEMO em Londres, dr. Daud Abdullah, durante conferência de nossa agência sobre descolonização e apartheid. Veja a seguir a entrevista.

José Ramón Cabañas Rodríguez, ex-embaixador de Cuba aos EUA, durante evento do MEMO em Londres, em 4 de fevereiro de 2023 [MEMO]

Fundamentos

Comecei nossa conversa perguntando sobre os fundamentos da política externa cubana, suas constantes e variáveis. “Algumas pessoas podem pensar que somos chatos e quase previsíveis”, diz o diplomata. Seus interlocutores sabem o que esperar em quase todo cenário. O primeiro princípio da política cubana é “defender nossa soberania a qualquer custo”.

Naturalmente, Cuba reafirma a eficácia de sua diplomacia. No decorrer dos últimos 64 anos, a política externa de Cuba tem sido impulsionada pelos princípios da reciprocidade e do respeito entre as nações. Tais princípios foram consagrados na nova Constituição do país, adotada em 2019, que enfatiza: “Nunca negociaremos sob pressão”.

Líderes revolucionários, de José Martí a Fidel Castro, buscaram fortalecer o internacionalismo. “Seguimos um curso de solidariedade tanto do ponto de vista político quanto cultural. Podemos ver este fundamento na forma como agimos sobre a África. Estamos devolvendo à África o que a África nos deu. É nosso patrimônio compartilhado e é bastante rico.”

Cabañas continua: “Estamos abertos a qualquer cultura e ajudamos a todos; enviamos médicos para todo o mundo”. O diplomata argumenta que a política externa revolucionária de Cuba é bem-sucedida porque aderiu de maneira resoluta a tais princípios orientadores. “É por isso que ganhamos respeito em espaços multilaterais, pois fomos consistentes por anos e anos”.

Palestina

Dado que Cuba desempenhou um papel fundamental em diversas lutas de descolonização na África, nas quais Cabañas estava pessoalmente envolvido, busquei questioná-lo sobre o ponto de vista de seu país a colonização sionista da Palestina histórica.

“Denunciamos a pressão e a violência diária infligida ao povo palestino. A negação sistemática de seus direitos básicos não é uma questão abstrata. Então, fica a pergunta: por que Israel não é classificado na lista de Estados terroristas?”

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Mediante sua participação no Comitê de Direitos Palestinos da Organização das Nações Unidas (ONU), Cuba oferece apoio diplomático e solidariedade. A bandeira palestina tem destaque em desfiles e eventos nacionais. “Cuba sempre esteve ao lado do povo palestino e buscamos ajudar de acordo com nossa capacidade. Centenas de palestinos estudam em universidades cubanas.”

Desde 2006, os palestinos na Faixa de Gaza estão sujeitos a um bloqueio militar israelense. O cerco contra Gaza carrega semelhanças com os 64 anos de bloqueio dos Estados Unidos contra Cuba. Como os cubanos sobreviveram tanto tempo sem ceder politicamente?

José enfatiza: “A primeira lição é que união e resiliência são a única maneira. Se você não estiver pronto para lutar até o fim, não sobreviverá, não terá respeito, tampouco solidariedade. Nós recebemos muito apoio – apoio econômico direto, bem como um enorme apoio moral.”

Quando confrontado com um bloqueio como o que Gaza enfrenta, acrescenta o diplomata: “É preciso procurar alternativas e expandir relações internacionais.”

O bloqueio dos EUA

“Pode parecer uma contradição, mas o movimento de solidariedade a Cuba nos Estados Unidos é um dos maiores do mundo. Lembre-se de que o bloqueio contra Cuba não tem o apoio da maioria do povo americano. Qualquer pesquisa mostrará isso. Os Estados Unidos estão isolados na ONU com relação a sua política, salvo Israel e alguns países do Pacífico.”

Existem semelhanças com Gaza. “O que eles chamam de embargo e nós chamamos de bloqueio é um sistema abrangente de decisões não apenas legais, mas também políticas, econômicas e militares. Todas essas medidas são aplicadas enquanto os americanos ainda estão ocupando parte de nossa terra em Guantánamo. Estamos, portanto, falando sobre uma política de estado em relação a Cuba que foi revisada e atualizada por mais de 60 anos.”

O primeiro documento assinado pelo presidente John Kennedy acusava Cuba de possuir uma relação especial com a União Soviética e a República Popular da China – supostos inimigos dos Estados Unidos, de modo que não poderia haver espaço para que ambos ganhassem um ponto de apoio na região. “A União Soviética não existe mais e a China é o maior parceiro comercial de Washington. Por que ainda estamos sob bloqueio? É como um alvo em movimento.”

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O caso da Lei Helms-Burton de 1996 é revelador. Cabañas recordou como Washington recorreu ao argumento de indenização após os processos de nacionalização em Cuba. “Não conseguimos compensar os americanos simplesmente porque eles cancelaram nossa cota de açúcar em seu mercado. Na verdade, compensamos todos os outros; Reino Unido, França e outros.”

Há décadas, não há segredo de que os Estados Unidos buscam realizar uma mudança de regime em Cuba. Seus sucessivos governos nunca hesitaram em adaptar os meios para alcançar tal fim. “Sob o governo de [Bill] Clinton, forças políticas nos Estados Unidos passaram a defender uma abordagem alternativa, isto é, um diálogo interpessoal; mas logo mudaram de opinião porque essa nova política favorecia Cuba.”

Quando cidadãos americanos visitam Cuba, encontram uma situação completamente diferente do que lhes foi dito. Primeiro, são bem-vindos e não veem inimigos. “Então perguntam: qual é o problema? [Os cubanos] não estão queimando bandeiras americanas”.

Muito embora Barack Obama tenha visitado Cuba em 2016 – a primeira visita de um presidente americano em exercício desde 1928 –, a política oficial da Casa Branca permaneceu inalterada. “Para sua gestão, era uma questão de mudar o regime mediante bloqueio e força militar ou um suposto abraço amigável”.

Irmandade caribenha

Antes de concluir minha conversa com o dr. Cabañas, havia mais duas questões que gostaria de abordar: a primeira sobre a relação de Cuba com seus vizinhos. Explicou o diplomata: “O apoio de nossos irmãos caribenhos é um elemento-chave em nossa luta contra o bloqueio. Alguns chamam o Caribe de vizinhança imediata de Cuba, digo que é a irmandade imediata de Cuba, e isso não é exagero. É uma posição cultural e econômica.”

Naturalmente, há problemas na região relacionados a saúde, transporte, educação e comércio. Em Washington, Cabañas lembrou como os diplomatas caribenhos muitas vezes eram alertados para não se aproximarem demais de Cuba, pois isso prejudicaria sua indústria de turismo. Sua resposta foi sempre muito clara: exigiam o fim do bloqueio, o que certamente beneficiaria sua economia. “No geral, nossa relação com nossos irmãos caribenhos é mutuamente excepcional. Quando adveio a pandemia de covid, em 2019, nossos médicos foram enviados às ilhas muito antes dos ingleses, embora as ilhas anglófonas sejam parte da Comunidade britânica. Episódios assim provam que é impossível separar Cuba da região.”

Os Cinco de Miami

Por fim, perguntei a José qual foi, depois de tantos anos de carreira diplomática, a situação mais difícil e desafiadora que enfrentou como emissário de Cuba. “A experiência mais delicada foi meu papel pessoal nos esforços para libertar os chamados Cinco de Miami – cidadãos cubanos presos nos Estados Unidos em 1998 por tentar impedir ataques terroristas contra seu país. Eles foram condenados entre 2000 e 2001, e parecia que pelo menos três deles passariam o resto de suas vidas na prisão. Em Cuba, eles eram – e ainda são – heróis nacionais. Durante vários anos, lutamos nos mais diversos tribunais dos Estados Unidos por sua libertação.”

“Essa experiência de visitar penitenciárias de segurança máxima nos Estados Unidos para falar com nossos concidadãos me ajudou a entender o quão insana era a sua condenação, acusados de serem agentes estrangeiros e conspirar para cometer assassinato. Ao contrário do que dizia a imprensa, não houve qualquer menção a espionagem nos tribunais.”

“Incrivelmente, todas as vezes que os visitamos, estavam confiantes de que seriam libertados em algum momento. Fidel mesmo disse que eles voltariam a Cuba – e eles voltaram. Toda a experiência foi muito especial para mim. Embora tenha sido um período extremamente tenso e difícil, foi uma grande felicidade para o povo cubano vê-los livres, de volta a Havana”.

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