Democracia no Iraque parece dar seu suspiro final

Parlamento do Iraque durante sessão para eleger o presidente [Parlamento do Iraque/Agência Anadolu]

Testemunhamos hoje mais outro declínio no Iraque. Segundo o Índice Anual de Democracia da Unidade de Inteligência da revista The Economist, o país árabe volta a se aproximar do fundo do poço, ao cair oito posições para ocupar o 124º lugar entre 167 países. Em queda livre no que se refere à transparência e liberdades democráticas, o regime iraquiano foi então classificado como “autoritário”. Esta é a posição mais baixa que o Iraque alcançou desde a criação do índice em 2006 e a quinta queda consecutiva desde 2017, conforme Relatório de Comércio do Iraque. O índice oferece um vislumbre do estado da democracia em todo o mundo com base em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo; funcionamento do governo; participação política; cultura política; e liberdades civis. Com base nos resultados de um grupo de indicadores dentro dessas categorias, cada país é classificado entre quatro tipos: “democracia plena”, “democracia imperfeita”, “regime híbrido” e “regime autoritário”.

Essa deterioração se soma a uma longa lista de sinais da consistente decadência iraquiana, no no submundo em que vive o país há vinte anos, desde sua invasão e ocupação em 2003 pelas forças lideradas pelos Estados Unidos. A tragédia reside no fato de que, atualmente, a maioria dos políticos do regime são as mesmas pessoas que vieram junto com a ocupação sob pretextos para enganar e vender o imperialismo disfarçado de “democracia”. As boas intenções nada mais foram que uma representação linguística deliberadamente falsa, do tipo que George Orwell escreveu em seu ensaio Política e a Língua Inglesa: “É quase universalmente sentido que quando chamamos um país de democrático, estamos o elogiando: consequentemente, os defensores de todo tipo de regime afirmam que trata-se de uma democracia e temem que tenham de parar de usar essa palavra se ela estiver vinculada a qualquer significado específico. Palavras desse tipo são frequentemente usadas de maneira conscientemente desonesta.”

As palavras de Orwell não poderiam ser mais verdadeiras do que são hoje ao descrever o Iraque, onde a intenção consciente de ser desonesta é precisamente a política adotada pelos Estados Unidos e Reino Unido em seu silêncio sobre as ações de um regime sectário e corrupto, muito embora aliado. Tamanha indiferença certamente se deve ao fato de que Bagdá lhes proporcionou bilhões de dólares em contratos para reconstruir a mesma infraestrutura que eles mesmos destruíram em primeiro lugar. Em seu esforço para criar uma nação submissa, as autoridades consagradas pela ocupação tentaram até mesmo apagar o patrimônio cultural e a memória coletiva do país, queimaram bibliotecas, saquearam museus e sítios antigos, atacaram professores e pesquisadores e alimentaram a violência sectária. De fato, violações de direitos humanos tornaram-se prática cotidiana que não poupou ninguém.

Tornou-se lugar comum para os políticos iraquianos reciclarem um vocabulário com denotações nobres para camuflar o terrorismo do regime, como “libertação” em ves de ocupação; “governo democrático”, em ves de regime sectário; “transparência” em vez da corrupção, suborno, roubo e extorsão; e “violência sectária” em vez de uma guerra suja envolvendo mentiras e operações secretas. Enquanto isso, a realidade em campo traduz os termos em seu verdadeiro sentido: “segurança” significa caos; “estado de direito”, o domínio de milícias sectárias, sobretudo as forças especiais treinadas pelo Ocidente, ligadas a diferentes partes do regime autoritário – como indicou o índice mencionado acima de democracia.

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Enquanto relatórios internacionais e regionais de direitos humanos e indicadores de democracia e defesa dos direitos humanos – como o direito à vida, movimento, culto, expressão e mídia – confirmam violações reais ou conexões com um sistema corrupto, os dois principais países ocupantes continuam a recitar o mantra de “democratização” e “guerra ao terror” para manter seu apoio ao regime. Tamanha assistência é dada apesar da brutalidade do governo contra qualquer um que tente protestar contra a crise política, a economia decadente e a humilhação deferida pelo Estado em todas as formas possíveis.

Em 7 de março, por exemplo, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, fez uma visita surpresa ao Iraque. O motivo, conforme o próprio, era “reafirmar a parceria estratégica” entre os países; as forças americanas, insistiu Austin, estão dispostas a permanecer no Iraque de acordo com os desejos do governo iraquiano. Questionado sobre o que levaria Bagdá a pedir forças adicionais no país, declarou: “As forças americanas estão prontas para permanecer no Iraque a convite do governo. Nossas forças operam hoje em um papel não-combativo de aconselhamento, assistência e capacitação, em apoio à luta iraquiana contra o terrorismo. Esta é uma missão crítica, e estamos orgulhosos de apoiar nossos parceiros iraquianos. Nós temos de operar com segurança para preservar este trabalho vital”.

A razão declarada, portanto, é a continuidade da “guerra ao terror”, de modo que o regime proteja as forças americanas contra qualquer ataque. Essa mesma postura produz resultados militares e políticos que consolidam a dominação econômica que a gestão dos Estados Unidos buscou edificar sobre a falácia da “democracia”. É como se o mundo tivesse esquecido a alegação semelhante feita pelo Secretário de Estado Colin Powell nas Nações Unidas, um mês antes da invasão ao país: “O Iraque está envolvido em terrorismo e a ameaça das armas de destruição em massa a todo o mundo são verdadeiras.” Powell mentiu. No mesmo discurso, o emissário do então presidente George W. Bush se referiu também a um “eixo sinistro entre o Iraque e a organização terrorista Al-Qaeda”. Outra mentira. E outra: “O Iraque e o terrorismo remontam décadas.” No fim de seu discurso, ou da tragicomédia que Powell executou tão bem, a invasão militar ao Iraque se converteu em algo necessário para salvar o mundo e os próprios iraquianos. Não obstante, trata-se do mesmo tipo de intimidação que orienta a “parceria estratégica” com Washington ainda hoje; a única diferença é que os terroristas não são mais a Al-Qaeda, mas o Estado Islâmico (Daesh), pois a mentira sobre os laços entre Saddam Hussein e Osaba bin Laden foi exposta para todos verem.

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Quanto à posição britânica em apoio ao regime iraquiano, o Ministro de Estado do Reino Unido para o Oriente Médio, Tariq Ahmed, deixou claro durante visita ao Iraque no final de fevereiro: “Estou encantado por ter voltado ao Iraque e ao Curdistão para ver como a relação entre nossos dois países continua a florescer”. É notável como Ahmed se referiu à região curda como alheia ao território do Iraque, ao insistir, contudo, no bom relacionamento entre Londres e Bagdá: “Continuamos a trabalhar juntos para enfrentar desafios mútuos, como mudanças climáticas, direitos humanos e segurança”. O ministro britânico mencionou ainda “a riqueza da diversidade étnica e religiosa do Iraque, a necessidade de proteger a liberdade de culto e a importância do diálogo inter-religioso”.

Suas declarações aparentemente civis e produtivas – sobretudo à manutenção dos interesses econômicos e militares de Estados Unidos e Reino Unido no Iraque – ocorrem, no entanto, às custas das condições de vida dos próprios cidadãos iraquianos, abandonados apesar dos vastos ganhos materiais a Washington e Westminster. A responsabilidade por sua liberdade recai sobre os ombros do movimento nacional iraquiano, na hipótese bastante elusiva de que consiga se unir e cooperar movimentos globais anti-guerra e anti-racismo. Somente então pode ser feito o trabalho de construir verdadeiras parcerias regionais e internacionais baseadas na igualdade e nos princípios verdadeiros da democracia, a fim de superar a interminável queda livre no país. Neste entremeio, todavia, a democracia no Iraque parece dar seu suspiro final.

Este artigo foi publicado originalmente em árabe pela rede Al-Quds Al-Arabi, em 29 de março de 2023

 

 

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