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Absolvição de Milton Temer vai além da vitória pessoal

Milton Temer [via antonioribeironoticias.blogspot.com]

Criticar o Estado de Israel por seus ataques à população palestina não significa ser contra judeus, muitos deles críticos também do estado agressor e, entre os quais, os que se declaram antissionistas. Embaralhar essas coisas e confundi-las com antissemitismo tem contribuído para a repressão a movimentos de solidariedade ao povo palestino que luta contra a ocupação israelense. Em diferentes lugares, essa confusão  tem levado  à demissão de professores e jornalistas e  censura a estudantes, acusados, não de antissionismo, fato que não escondem, mas de antissemitismo, mesmo sem ser verdade.

No Brasil, este foi o caso do processo movido contra o ex-deputado federal Milton Temer (Psol) pela vereadora Teresa Bergher – a quem o político chamou de “nazissionista”. Ofendida em sua ideologia pró-Israel, a parlamentar o acusou de injúria racial contra judeus. E o processo produziu estragos por mais de quatro anos na vida do acusado.

O caso começou em 2018 pelas redes sociais, quando Milton Temer criticou Israel pelas ações de seus soldados que mataram 17 palestinos e feriram outros 1,4 mil na Faixa de Gaza. Criticado por sua vez por Teresa, ele lhe deu uma resposta dura e pública.

“SIONISTA PATÉTICA. No meu regresso, sou informado que uma vereadora tucana de segunda linha, porta-voz do nazi-sionismo no Brasil, anda me citando. ELA ESTÁ EXIGINDO que minhas postagens de apoio ao povo palestino, e de condenação das políticas terroristas do Estado de Israel, sob a população da Palestina ocupada, sejam retiradas do Feicebuque. POIS QUE CONTINUE exigindo. Porque onde eu estiver — se essa plataforma ceder ao poder dos sionistas — vou continuar a defender o direito de povo palestino de usar até mais do que estilingues para se proteger do super-equipado exército nazi-sionista que comete violências seguidas, e incessantes, tanto na Cisjordânia quanto em Gaza.”

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A postagem agressiva de Temer deu margem ao processo movido por Teresa.

“A propósito, ao se referir às Forças de Defesa de Israel como ‘exército nazi-sionista de ocupação da Palestina’ (o que o noticiado fez não uma, mas diversas vezes, como se verá adiante), Milton Temer humilha, de forma impiedosa, toda a comunidade judaica, na medida em que compara o Exército de Israel — a terra dos judeus — com a força militar do Nacional Socialismo, partido sabidamente liderado por Adolf Hitler de 1921 até a final da Segunda Guerra Mundial, e responsável pelas maiores atrocidades já cometidas contra judeus e outras minorias na história”, disse Teresa Bergher.

A primeira decisão da Justiça sobre o embate ocorreu em 2021, quando a 20ª Vara Criminal do Rio condenou Temer a dois anos, dois meses e 20 dias de prisão, mais 200 dias-multa. A reclusão foi substituída pela prestação de serviços comunitários ou assistenciais, e então começou a batalha da defesa de Temer para inocentá-lo.

O advogado Paulo Ramalho argumentou destacando que o sionismo atacado por seu cliente tem caráter ideológico, ou seja, está no cerne das preocupações e disputas políticas pelos rumos da humanidade.  Já o judaísmo tem caráter religioso, e o semitismo caráter de raça e nenhum destes dois últimos foi atacado.

Passado todo esse tempo, e entendendo que confronto político não pode ser tratado como  crime, no último dia 24 de março, a  6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro absolveu Milton Temer. O caso mereceu artigo no portal Conjur, que aborda detalhes de  processos e decisões de interesse extensivo à sociedade.

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O relator, desembargador Luiz Noronha Dantas, fez enfatizou a separação entre”‘sionismo’ e ‘nazismo’ como “elementos de cunho exclusivamente político e ideológico”, e judaísmo e semitismo, que têm caráter religioso ou étnico. Concluiu que a briga entre Milton Temer e Teresa Bergher, foi “exclusivamente pautada pelo embate eminentemente político no qual os protagonistas do evento se encontram inseridos”.

Se o confronto entre os dois foi ao final considerado uma “troca de farpas”, ainda que duras, nas palavras do desembargador,  a decisão sobre o caso não pode ser minimizada. Ela toca, na verdade, em uma narrativa propagada internacionalmente por organizações pró-Israel, que associam as críticas que o Estado recebe a práticas antissemitas.

A estratégia foi materializada através de uma “definição de trabalho” que ampliou o rol de práticas reconhecidas como anti judaicas para acrescentar aquelas anti-Israel.

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Em 2016, sob a liderança da Romênia, a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), uma organização de 31 nações, adotou e divulgou o texto conhecido como a “ Definição de Trabalho da IHRA” em que procurava enfrentar a negação do Holocausto por lideranças europeias.  A novidade do texto, porém,  foi  incluir o ataque ao estado de Israel como exemplo.

Silenciamento da resistência palestina [Latuff]

Embora não seja originalmente um lei, o lobbie pró-Israel trabalha para que seja adotada como tal por governos, parlamentos ou instituições. Cerca de 30 países acataram a proposta, a maioria a convite do Conselho da União Europeia à época. E dois anos depois, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que a definição pode “servir como base para a aplicação da lei, bem como para políticas preventivas”.

Em 2020, 145 organizações judaicas e pró-Israel escreveram uma carta ao Facebook propondo o uso da definição “como a pedra angular da política de discurso de ódio do Facebook em relação ao antissemitismo”.

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No mesmo ano, nos Estados Unidos, uma ordem executiva do então presidente Donald  Trump instruiu o Poder Executivo a observar a definição da IHRA na investigação de reclamações de direitos civis e daquelas enviadas ao Departamento de Educação sobre casos de discriminação nas universidades. Em janeiro de 2021, uma coalizão das principais organizações judaicas  enviou uma carta a Biden pedindo-lhe que mantivesse a orientação de Trump. Na Argentina, passada a eleição do presidente Alberto Fernandes, a primeira providência do lobbie pró-Israel foi pedir a ele a adoção do texto, como já estava encaminhado pelo antecessor, Maurício Macri.

A decisão da Justiça do Rio de Janeiro em relação a Milton Temer cria, portanto, um precedente jurídico de recusa a misturar antissionismo com antissemitismo. Aos movimentos solidários com o povo palestino, o tribunal emite sinais mais seguros de que a luta contra a ocupação e o apartheid de Israel não pode ser criminalizada. A decisão é também uma contribuição à própria luta judaica. Porque para muitos judeus, a definição de trabalho da IHRA é uma armadilha que tem desviado o foco e dificultado a identificação e combate ao verdadeiro antissemitismo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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