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Mochilão MEMO: O nascimento de Jesus e a cidade de Belém

Igreja da Natividade [ Lucas Siqueira/MEMO]

30 de janeiro de 2022

Mesmo correndo o risco de ficarmos presos na estrada, devido aos últimos dias de pressão do exército israelense na Palestina, pegamos uma van com destino à Belém, cidade onde Maria deu à luz ao menino Jesus.

Ficamos mais de 2h na estrada, em um trajeto de apenas 28km, mas chegamos. Belém (Bethlehem) estava bem tranquila e tão vazia quanto esperávamos, com apenas alguns poucos grupos de turistas. A Igreja da Natividade foi o primeiro ponto a ser visitado. Encomendada por Constantino, começou a ser construída nos anos 300 d.C . Adentramos no salão principal e vislumbramos meticulosamente cada obra de arte que resistiu ao tempo e as mudanças entre um império e outro. Abaixo do altar principal existe uma gruta onde uma estrela de prata marca o local do nascimento de Jesus. Descemos entre os fiéis e vimos diversas manifestações de devoção religiosa. Enquanto a Di fazia suas orações, olhei para Ruayda – amiga palestina que nos acompanhou nessa visita – e perguntei: Será que eles sabem o que aconteceu aqui?

Igreja da Natividade [ Lucas Siqueira/MEMO]

Em 2 de abril de 2002, o governo de Israel enviou as  Forças de Ocupação Israelense (IOF) para invadirem a cidade de Belém na tentativa de capturar militantes da Organização para Libertação da Palestina (OLP). Os militantes palestinos fugiram para a Igreja da Natividade onde foram acolhidos pelos padres e outros civis que estavam rezando. As autoridades israelenses montaram um cerco ao redor da Igreja com tanques, helicópteros snipers e outros soldados de infantaria. Ordenaram a libertação dos reféns, no entanto, a ordem franciscana se pronunciou dizendo que todos os monges, assim como as outras pessoas – mais de 200 – estavam na igreja como voluntários em defesa dos guerrilheiros palestinos. O chefe da Igreja Católica Romana na região disse que os homens foram recebidos em um santuário e que “a basílica é um lugar de refúgio para todos, até mesmo para os combatentes. Temos a obrigação de dar refúgio a palestinos e israelenses.”

No dia 4 de abril, o palestino Samir Ibrahim Salman, que estava dentro da Natividade, foi baleado várias vezes no peito por um franco-atirador israelense e acabou morrendo; ele não era guerrilheiro, era um sineiro da Igreja. Um porta-voz dos monges católicos na Terra Santa acusou os israelenses de “ato indescritível de barbárie”. O Vaticano também se manifestou dizendo para Israel respeitar o local sagrado; o Papa João Paulo II descreveu a violência como tendo atingido níveis “inimagináveis e intoleráveis”. No dia 10 de abril, outro monge foi baleado, e os israelenses culparam o monge por usar roupas civis.

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O cerco israelense durou semanas. Os monges e as autoridades negociavam a evacuação da Igreja desde que Israel garantisse a vida de todos os combatentes, mas as negociações foram frustradas e fizeram mais vítimas fatais. Em 2 de maio, dez ativistas estrangeiros do Movimento de Solidariedade Internacional conseguiram driblar os israelenses e adentrar na igreja para proteger os combatentes.

Após 39 dias, um acordo foi alcançado, segundo o qual os militantes se entregaram a Israel e foram exilados na Europa e na Faixa de Gaza. O saldo foi de 8 pessoas mortas dentro da Igreja construída para marcar o local de nascimento de Jesus Cristo.

Confesso que essa Igreja também me emocionou, mais ainda por saber que pessoas, lutadores pela liberdade de seu país, morreram ali enquanto fugiam de soldados colonizadores, os mesmos que agora exploram o turismo religioso em território ocupado. Por isso, enquanto fiéis se curvavam para tirar suas fotos beijando a estrela de prata, preferi fazer a clássica pose dos dedos em “V” e pronunciar um “free Palestine”.

Depois de nossa visita a Belém, Ruayda nos levou até a cidade de Al-Khader, próxima a Belém, para conhecer a casa de São Jorge.

A Igreja estava fechada, mas Ruayda buscou, em uma casa em frente à Igreja,  um senhor muito educado que saiu para abrir as portas da igreja e nos guiar por uma visita.

São Jorge  [ Lucas Siqueira/MEMO]

Como contamos na postagem “Mochilão MEMO: Jorge da Capadócia” , São Jorge nasceu na  Capadócia, Turquia, mas foi viver com sua mãe na Palestina. São Jorge doou toda sua fortuna, mas a casa de sua mãe foi preservada pela comunidade cristã da época. Ruayda nos guiava e contava algumas histórias sobre a Igreja e a vida de São Jorge e outras histórias eram contadas pelo palestino que abriu a igreja para nossa visita exclusiva. Alguns pontos da casa-igreja haviam sido restaurados recentemente pelo senhor que nos acompanhava, já em outros anexos ele explicava o que faltava restaurar. Depois de nos mostrar as salas usadas como creche e outras como salas de aulas para crianças, o senhor nos convidou a tomar um café. Claro que aceitamos, iríamos tomar um café na casa da mãe de São Jorge!. Sentados à mesa, o palestino nos contou sobre os ataques israelenses no campo de oliveiras nos fundos da igreja; e como uma bomba de gás lançada pelas IOF acabou  incendiando o campo e quase destruindo a igreja; ele contou que precisou de dois caminhões de bombeiro para controlar o incêndio e da ajuda de cristãos e muçulmanos. “Como assim cristãos e muçulmanos” perguntei. “Sim”, ele disse, e completou “aqui rezamos e cuidamos da igreja juntos”. Ruayda explicou que a Igreja é frequentada tanto por cristãos como por muçulmanos, mesmo aquele senhor que era como um caseiro da igreja, também era muçulmano.

Campo de Oliveiras nos fundos da Igreja de São Jorge   [ Lucas Siqueira/MEMO]nos fundos da Igreja de São Jorge   [ Lucas Siqueira/MEMO]

 

Não se sabe exatamente quando a igreja passou a ser cuidada pelos muçulmanos palestinos. Estudiosos acreditam que al-Khadr – mesmo nome da cidade – servo de Deus mencionado no Alcorão, tenha sido o próprio São Jorge. Mesmo que os detalhes dessa história sejam desconhecidos, os palestinos enxergam São Jorge como protetor da fé e dos necessitados,e por isso vêm protegendo o monastério ao longo dos séculos, inclusive o protegem agora do exército colonizador de Israel.

Tudo o que vimos em um único dia, nos mostrou o quanto cristãos e muçulmanos são próximos e convivem harmoniosamente na Palestina. Aqui, quero novamente salientar que o problema na Palestina não tem nada haver com religião e sim com ocupação territorial. Tanto é que pouco antes de nos curvarmos para adentrar pela “porta da humildade” na Igreja da Natividade, Ruayda nos mostrou um entalho discreto, mas com muito simbolismo; um entalho de uma meia lua que representa a religião islâmica na porta da Igreja que guarda o local de nascimento de Jesus e o assassinato de oito mártires palestinos durante o cerco israelense de 2002.

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O Estado de Israel não se importa se a Igreja de Jorge é ou não importante para cristãos e muçulmanos, pois os judeus que costumavam também frequentar a igreja, já não a frequentam mais. Assim, como não respeitam o local do nascimento de Jesus, a menos que possam lucrar com o turismo religioso, ou usá-lo como desculpa para o seu plano de limpeza étnica e estado de genocídio permanente contra a população palestina. Conhecendo um pouco da história de Jesus Cristo, um palestino que nasceu em Belém, ou melhor Bethlehem, não tenho dúvidas que se o cerco israelense tivesse acontecido hoje, Jesus e São Jorge estariam lá defendendo os seus compatriotas e acabariam sendo os primeiros a serem baleados assim como foi o padre Samir.

Artigo dedicado à Ruayda Rabah, a melhor guia muçulmana para templos cristãos na Palestina.

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Nota: Todos os textos do Mochilão MEMO são produzidos em trânsito; por gentileza, peço que compreenda que pode haver falhas ou erros que serão corrigidos ao longo da viagem. Obrigado a todos pela compreensão.

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