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Mochilão MEMO: O roubo de Jerusalém

Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém ocupada [Lucas Siqueira/MEMO]

Conseguimos entrar na Esplanada das Mesquitas, na cidade ocupada Jerusalém. Não pudemos acompanhar, sequer no mesmo horário, os palestinos, como gostaríamos. Porém, entramos. O que acontece na Palestina, sob ocupação militar israelense, não é uma guerra religiosa – como nós, brasileiros, tendemos a acreditar. O que acontece é ocupação e colonização sionista, cujo termo mais inteligível sobre os fatos talvez seja apartheid.

Passamos por soldados israelenses fortemente armados que controlam a entrada da Esplanada das Mesquitas. Enquanto a mochila com os passaportes passava pelo raio-X, erámos revistados por tropas policiais da ocupação israelense. Como se já não fosse estranho que colonos judeus controlem o acesso a um local islâmico, um deles me perguntou ainda por que eu queria visitar o “Monte do Templo” – nome adotado pelos sionistas para a Esplanada das Mesquitas – já que eu mesmo não sou muçulmano. Pensei em responder: “Pelo mesmo motivo que visitei o Muro das Lamentações sem ser judeu, o rio Ganges sem ser hindu, ou a Basílica do Santo Sepulcro sem ser cristão”. No fim das contas, achei melhor evitar confusão e indagar apenas “por que não?” e o soldado tampouco quis se estender.

Assim que entramos no pátio da Esplanada, por um ato automático, dei a mão para Di. No Islã, não existe nenhuma regra para que um casal não dê as mãos; contudo, um dos policiais – faço questão de reforçar, israelense e não-muçulmano – nos repreendeu grosseiramente. De modo algum queríamos desrespeitar qualquer local sagrado, religião ou aqueles que a praticam, mas achamos absurdo que alguém tão estrangeiro como nós, que tampouco pertence àquela fé, nos chamasse a atenção, enquanto muçulmanos que caminhavam ao nosso lado não se mostravam nada ofendidos. Percebemos que a forma com que os israelenses gritam com as pessoas serve justamente para constranger os visitantes, a fim de oprimi-los a que logo se retirem do local. Sendo assim, a mera permanência, apesar do assédio a todo momento, é uma maneira de resistir e demonstrar solidariedade à causa palestina – e assim o fizemos.

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Em frente ao Domo da Rocha, paramos para fotografar. A Di levou um lenço com tramas preto-e-branco semelhante – e apenas semelhante – ao keffiyeh palestino, mas estava tão quente que ela o amarrou na mochila. Eu lhe pedi para que fizesse uma foto minha, cerrei o punho em sinal de resistência, como fez Nelson Mandela e o Congresso Nacional Africano (CNA), na luta contra o apartheid na África do Sul; como fez Malcom X na luta contra o apartheid nos Estados Unidos; e como nós, brasileiros, fazemos contra o racismo em nosso país. Imediatamente, um policial civil gritou comigo para me coibir de uma foto ali em “pose de resistência”. Fingi não escutar e ele repetiu seus berros umas três vezes, mas permaneci até que a Di tirasse a fotografia. Em português, pedi a Di que preparasse outro retrato, olhei para o policial, pedi desculpa como se nada tivesse acontecido e mudei de pose: agora com os dedos em “V” de vitória – em alusão à pose tradicional de Yasser Arafat e de muitos palestinos que lutam contra a ocupação sionista. Posso imaginar o que passou pela cabeça daquele soldado, mas não esperamos para saber e seguimos o tour.

Ainda na Esplanada, caminhamos até a Mesquita Al-Aqsa. Sabíamos, claro, que não permitiriam a nossa entrada – mesmo assim, tentamos. Outro soldado saltou a frente. Chega a ser cômico como pensam que somos todos surdos, porque mesmo a uma distância de um braço, aquele homem achou que era imprescindível voltar a gritar. O “bem-educado” insistiu que a passagem ali era autorizada apenas aos muçulmanos. Novamente, pensei: “Então, o que faz aqui um judeu israelense?”. Por óbvio, caso assim respondesse, a visita seria cancelada e seríamos retirados à força do local. Voltei a fazer a cara de “turista idiota”.

Vamos novamente esclarecer uma coisa para reforçar a ideia. Não temos nenhum preconceito contra a opção religiosa de qualquer pessoa; temos amigos cristãos, muçulmanos sunitas e xiitas, ateus, umbandistas, hindus, budistas e judeus. Quando me refiro a “judeus israelenses”, o faço pois é justamente a maneira como escolheram para descrever o Estado autoproclamado, a maneira que usam para discriminar árabes originários de colonos judeus.

Jerusalém é pauta principal nas negociações entre israelenses e palestinos. Ambos reivindicam a cidade como capital de seu Estado. Em 29 de novembro de 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU) recomendou que todo o território – a Palestina histórica, antes sob Mandato Britânico – fosse dividido em dois: um lado para os judeus, outro para os árabes. A mesma resolução (181) recomendou ainda que Jerusalém ficasse como corpus separatum, ou seja, administrada pela ONU sob regime internacional. A recomendação da partilha, entretanto, deu vazão para que imigrantes judeus da Europa se assentassem na Palestina, incluindo a parte ocidental de Jerusalém, ao expulsar a população nativa e executar aqueles que resistissem à ocupação. O processo culminou na criação do Estado de Israel, em maio de 1948, evento conhecido em árabe como Nakba (“catástrofe”), cujos esforços de limpeza étnica resultaram na então expulsão de 800 mil palestinos de suas casas.

Com mais da metade da Palestina tomada a força, em 1967, durante a Guerra dos Seis dias, os israelenses ocuparam o que faltava da cidade de Jerusalém. Desde então, o regime israelense promove políticas para expulsar a população palestina e judaizar integralmente a cidade. Este processo é parte da limpeza étnica que Israel promove até hoje em toda a Palestina, incluindo esforços para apagar ou eliminar a identidade cristã e islâmica da cidade sagrada.

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Em 1980, Israel anexou toda Jerusalém, ao declará-la capital de Israel. A ONU voltou a protestar e reiterou, através da Resolução 476, que toda e qualquer anexação era ilegal segundo o direito internacional. Mesmo sob as notas de repúdio da comunidade internacional, Israel manteve sua tomada à força do território palestino. Em 2018, uma nova lei aprovada pelo Knesset israelense (parlamento) definiu o país como exclusivamente judaico e reafirmou sua reivindicação ilegal sobre Jerusalém como suposta capital.

Trata-se de um resumo, grosso modo, das atrocidades cometidas para chegar ao resultado que presenciamos na Cidade Santa. Embora a questão seja política, de caráter colonial, o papel da religião tem de ser esclarecido, até porque os documentos de identidade de Israel especificam a religião de seus cidadãos, a fim de discriminá-los.

No entanto, criticar as políticas coloniais de Israel não equivale a antissemitismo. Sabendo que comentário posteriores às atrocidades do Holocausto nazista e dos pogroms perpetrados na Europa poderiam soar como discriminação antijudaica, Israel recorreu, ao longo de sua história, até os dias de hoje, ao argumento de antissemitismo para difamar aqueles que se opõem ao sionismo e às políticas de apartheid contra os palestinos. É deste mesmo modo que se “justifica” que um policial israelense não-muçulmano controle quem entra e sai de um lugar sagrado para os muçulmanos – e até mesmo como se posa para as fotos naquele local.

Jerusalém é, sim, uma Terra Santa: para cristãos, muçulmanos e judeus.

Dedicado ao amigo Jihad que não pôde estar presente conosco nessa visita!

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Nota: Todos os textos do Mochilão MEMO são produzidos em trânsito; por gentileza, peço que compreenda que pode haver falhas ou erros que serão corrigidos ao longo da viagem. Obrigado a todos pela compreensão.

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