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Edson e Pelé, uma abordagem complexa

Pelé dribla um zagueiro durante amistoso entre Brasil e Malmö, na cidade de Malmö, na Suécia, em 8 de maio de 1960 [AFP/SCANPIX]

Pelé (23/10/1940 – 28/12/2022) foi considerado o atleta do século XX no ano de 1981. A FIFA, órgão gestor do futebol mundial, considera Pelé, ao lado de Maradona, como o maior futebolista de todos os tempos. Edson Arantes do Nascimento é o afro-brasileiro mais reconhecido no país e o brasileiro mais conhecido no planeta. É um personagem complexo que nos deixou no final de dezembro de 2022. Quase tudo ou praticamente tudo já foi falado, narrado, filmado, dito e escrito a respeito dele. Neste modesto perfil, intentamos abordar a complexidade para além do rei do futebol.

Dondinho, Celeste, Edson e Dico

Edson Arantes do Nascimento foi fruto de uma ética familiar vinda do mundo do trabalho e do esporte. A formação de caráter e de disciplina é a transferência direta de seu pai, João Ramos do Nascimento, Dondinho (Maleável, no mundo da bola), atleta conhecido na transição do futebol amador para o profissional em Minas Gerais e São Paulo, especialmente no sul mineiro e oeste paulista. João, mais um brasileiro, chegou a jogar no gigante Atlético Mineiro, por exemplo. Era um craque, centroavante cuja carreira foi encurtada devido a uma grave lesão.

A família Arantes do Nascimento, Celeste e João, era fruto do seu tempo, incentivava o esporte como prática salutar, encarava a luta pela sobrevivência sendo da primeira geração após a abolição (sem reparações sociais) e admirava o avanço técnico-científico. Edson foi batizado em função do cientista Thomas Edison, adaptando a grafia original. Podemos observar uma mentalidade de progresso, de busca incessante de melhoria das condições materiais e a afirmação na sociedade com base na ideia do mérito. Toda essa base normativa é necessária hoje e mais ainda no período em que o maior jogador de futebol da história nasceu.

Para quem conhece as cidades pequenas e médias do sudeste brasileiro de então, sabe que a espacialidade urbana e áreas rurais conexas são segregadas. Não são raros os “clubes de negros” como continuidade dos festejos religiosos com origem na resistência colonial (com elementos de sincretismo). Dos bailes de carnaval aos rituais do sagrado, os papeis sociais marcados pelas posições de origem são demarcadas. Pelé, ainda chamado de Dico, em seu ambiente familiar, aprendeu o esporte através do pai e tinha de combinar os estudos com o trabalho infantil e os treinos nas categorias de base em Bauru (SP). O futebol como profissão marcou a trajetória de Seu Dondinho e Dona Celeste. O primogênito nasceu em Três Corações (MG), passou a maior parte da infância e metade da adolescência em Bauru (SP) e terminou se transferindo para o Santos Futebol Clube pelas limitadas opções que tinha na região onde crescera.

Pelé e o pai, seu Dondinho [Divulgação]

O futebol como profissão e o momento do Brasil 

O gênio argentino natural de Rosario (província de Santa Fe), Lionel Andrés, foi recebido pelo FC Barcelona aos 13 anos de idade. O motivo foi a necessidade de tratar sua deficiência do hormônio de crescimento, pois seu clube de origem, o tradicional Club Atlético Newell’s Old Boys, simplesmente não tinha o montante necessário para tal. Infelizmente, o sistema de saúde pública da Argentina no período tampouco garantiu esse direito. A jovem promessa se tornou o maior craque do futebol profissional do século XXI e atende pelo sobrenome de Messi. Não sabemos quantos outros jovens, não sendo fenômenos da bola, perderam chances em suas vidas pela carência material. Com Dico, que não queria ser chamado de Pelé, não foi diferente.

Edson foi levado a fazer testes no Santos e assinou seu primeiro contrato aos 15 anos de idade. Foi campeão do mundo em 1958 antes mesmo de completar sua maioridade legal. Se tivessem fraturado seu joelho no primeiro treino, ou o boicotado no vestiário por sua juventude, jamais conheceríamos ao rei do futebol. Extremamente focado, atleta nato e completo, chegou ao estrelato no mundo da bola em todos os níveis. Jamais foi “rebelde” ou “desajustado”, em nenhum sentido, e é reconhecido por seus pares como um bom colega de profissão.

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É preciso entender que o personagem era simplesmente “perfeito” em termos profissionais – o cenário, também. O Brasil foi sede da primeira Copa do Mundo após a Segunda Guerra Mundial, quando perdemos para a seleção uruguaia, de virada, na final. O “trauma” foi tão grande que as cores da camiseta da seleção mudaram, incorporando o amarelo canarinho. A indústria cultural brasileira cresceu, desenvolveu-se e se popularizou através de aparelhos de difusão, como a Rádio Nacional e as emissoras de televisão, a partir das décadas de 1950 e 1960. Construímos o estádio que chegou a ser “o maior do mundo” – então mescla de terreiro com templo socio-esportivo. O Maracanã, batizado como Estádio Jornalista Mário Filho, rende homenagem a um dos fundadores da crônica esportiva nacional. Não haveria título em caixa alta nos jornais impressos se não fosse a dramatização das partidas de futebol.

A identidade do Brasil moderno, o país que foi “a China do século XX” – crescendo em média de 5% a 8% ao ano, entre 1930 e 1980 –, está baseada na nacionalização do país afro-centrado. Um dos elementos centrais desta unidade cultural e de identificação massiva é o futebol profissional e uma constelação de craques negros como Friedenreich, Fausto, Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Jair Rosa Pinto, Tesourinha, Zizinho, Didi, entre outros, até chegarmos na era de Pelé e Manoel Francisco dos Santos, Mané Garrincha. Este é o país do cinema, da construção pesada, da criação de Brasília, da industrialização acelerada e de péssimas políticas de distribuição de renda.

Pelé faz parte do primeiro elenco campeão em 1958 e foi craque do escrete na Copa do Chile (se contunde e pouco joga) quando conquistamos o bicampeonato. Em 1966, a seleção foi marionete nas mãos da ditadura e o desempenho na Copa do Mundo da Inglaterra foi sofrível. No México, durante o auge do AI-5 e a repressão política (estado de guerra de interna), montamos um time de sonhos com excelência de treinamento e Pelé se consagrou tricampeão aos 29 anos. Em 1974, Pelé não foi à Copa e despediu-se também dos gramados brasileiros. Em seguida, no entanto, decidiu ajudar a abrir o mercado de futebol nos Estados Unidos, até chegar à sua segunda despedida do esporte, em outubro de 1977.

Pelé, aos 17 anos, disputando final de Copa do Mundo contra a Suécia, em 1958 [WikiMedia Commons]

Edson, um brasileiro controverso

Infelizmente, as flores têm espinhos. Pelé atingiu o topo do Olimpo do esporte mais popular do planeta. Seu tempo foi o auge do Brasil no século XX, eternizando duas gerações de craques mitológicos, estádios com mais de cem mil pessoas e a mística do futebol arte brasileiro como maior produto cultural do país.

Ao “servir o povo” que o adorou, não obstante, Edson deixou muito a desejar. Na ditadura, apoiou o regime, ultrapassando o comportamento discreto previsto como atleta profissional. Teve algum engajamento na campanha Diretas Já, mas nem de longe com o envolvimento de Sócrates. Foi nosso primeiro ministro do Esporte e não deixou um legado de políticas públicas para que outros meninos como ele não tivessem de deixar os estudos ou aceitar o trabalho infantil como forma de sobrevivência. Teve uma vida familiar extraconjugal igualmente controversa.

Na carreata pela W3 Sul após o título de 1970, Pelé subiu em um jipe do Exército e, cercado por militares, foi ovacionado pelos brasilienses [Reprodução Redes Sociais]

O mito e o personagem ficaram dentro de campo e nos produtos decorrentes da indústria cultural, como publicidade, música, cinema e grandes campanhas de marketing e entretenimento. Na idealização dos jogadores de futebol, poderíamos imaginar seu brilhantismo com a altivez de três majestades engajadas pela esquerda, como Waldir Pereira (Didi, o Príncipe Etíope), Tomás Soares da Silva (Zizinho, o mestre Ziza) ou Leônidas da Silva (o Diamante Negro). Quis a história do Brasil que assim não fosse.

O “rei do futebol”, ainda assim, é maior do que as controvérsias do Edson e a grosseira profanação da canarinho pela canalhice da extrema-direita. Pelé é um mito a eternizar o Brasil do século XX.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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