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O brilho do futebol brasileiro acabou?

Neymar Jr. do Paris Saint-Germain (PSG) em Paris, 29 de outubro de 2022 [Jean Catuffe/Getty Images]
Neymar Jr. do Paris Saint-Germain (PSG) em Paris, 29 de outubro de 2022 [Jean Catuffe/Getty Images]

O Brasil é indiscutivelmente o país número um do futebol mundial. Seu legado em campo e sua presença em todos os torneios da Copa do Mundo atestam isso. É a seleção que ocupa o trono de maior campeã de futebol na história, com cinco títulos mundiais, superando as tetracampeãs Itália e Alemanha.

É verdade que foram os ingleses que inventaram o futebol como o conhecemos hoje e definiram suas regras e normas, mas foram os brasileiros que capturaram o esporte e lhe proporcionaram a magia dos gênios. O Brasil deu à luz Pelé, Garrincha, Rivelino, Sócrates, Zico, Careca, Romário e Ronaldo. O que distingue o futebol brasileiro da prática mais convencional do esporte é a confiança nas habilidades individuais e no jogo bonito, em contraste com a escola europeia que aposta na força física, na velocidade e no estilo defensivo das equipes.

A primeira Copa do Mundo de que tenho lembranças foi o torneio de 1990 na Itália. Na época, eu era um menino de oito anos que morava com os pais no vale de Bekaa, no Líbano. Lembro que a maioria de nossos familiares e amigos eram torcedores da Seleção brasileira, devido à forte imigração libanesa ao país do samba. Lembro da tristeza que tomou conta de todos após a eliminação do Brasil nas oitavas de final, em uma partida histórica contra a arquirrival Argentina, que resultou na vitória do time da Terra de Prata com um gol certeiro do cabeludo Caniga, após um passe do lendário Diego Armando Maradona.

Em 1994, na Copa dos Estados Unidos, eu tinha doze anos de idade. O Brasil ganhou nos pênaltis em uma partida épica contra a Itália. Naquele torneio, as bandeiras brasileiras invadiram o Líbano de norte a sul e de leste a oeste. Havia bandeiras da Itália e da Alemanha também. Lembro que meu pai comprou para nós uma bandeira do Brasil e outra do Líbano, para pendurá-las na varanda de nosso apartamento. Acompanhamos a Copa com muito entusiasmo e forte torcida à seleção brasileira. Lembro-me de um acontecimento feliz para nós, como árabes e muçulmanos: o golaço do jogador saudita Saeed Al-Owairan contra a seleção da Bélgica. Lembro-me também de um acontecimento trágico: o assassinato do jogador colombiano, Escobar, ao retornar a seu país após a derrota de seu time para os Estados Unidos, com um gol marcado contra sua zaga.

Em 1997, eu, meu pai, minha mãe e meus irmãos nos mudamos ao Brasil, para morar na cidade de São Paulo, onde estamos até hoje, e onde reside uma grande comunidade árabe, inclusive nossos parentes. No ano seguinte, em 1998, assisti pela primeira vez à Copa do Mundo em meu segundo país e fiquei impressionado com o abundante entusiasmo em torcer pela Seleção. O país inteiro parou de trabalhar e estudar durante as partidas, bandeiras enfeitaram bairros e ruas, famílias e amigos se reuniam para assistir aos jogos. O Brasil não teve sorte e perdeu a grande final para a anfitriã França, por 3 a 0, em um torneio que teve como estrela e herói o jogador argelino-francês, Zinedine Zidane, que derrotou Ronaldo e seus companheiros.

No ano de 2002, no campeonato do Japão e Coreia do Sul, o Brasil conquistou seu pentacampeonato, em um torneio que não deixou dúvidas sobre a supremacia da seleção verde-e-amarela. Lembro que o entusiasmo das ruas brasileiras era ainda altíssimo. Após aquele torneio, o futebol brasileiro entrou em uma crise da qual não conseguiu se recuperar até então. A crise teve um reflexo marcante no interesse popular pela Seleção brasileira. Trata-se de uma crise administrativa e institucional do futebol nacional, cujos resultados foram derrotas humilhantes e suspeitas de corrupção sobre a Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Começa agora a Copa do Mundo de 2022, com sede no Catar. Eu – que moro no Brasil há um quarto de século – jamais vi uma apatia popular como a deste ano em relação à Seleção. Quem visita o Brasil hoje se pergunta se este é realmente o país do futebol. Além da aparente indiferença popular, a mídia não dá a mesma atenção a este grande evento do esporte mundial. A questão não tem nada a ver com o país organizador e anfitrião do torneio, nem com quaisquer fatores externos, mas sim devido a fatores puramente internos. À crise administrativa e institucional do futebol se somou uma crise política sem precedentes que assolou o país às vésperas das eleições presidenciais encerradas em 30 de outubro, que resultaram na vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

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Em meio às eleições – encerradas há menos de duas semanas –, o craque da seleção brasileira, Neymar, anunciou seu apoio ao atual presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, cujo mandato se encerra no último dia do ano corrente. A postura do craque foi duramente criticada por um ex-jogador que brilhou como atacante da Seleção nos anos 80, Walter Casagrande, colega e amigo do saudoso dr. Sócrates. Casagrande – hoje, comentarista esportivo – descreveu Neymar e sua doutrina de apoio ao presidente de extrema-direita como traidores dos princípios da democracia e dos valores populares do futebol nacional.

Ressalta-se que Bolsonaro flerte com o sionismo e que seus partidários tenham adotado o uniforme oficial da Seleção brasileira como emblema ultranacionalista – ao lado de símbolos da entidade sionista como expressão visual de seu movimento político. A cooptação dos símbolos nacionais, junto de clamores por golpe de estado, gerou uma reação dos apoiadores do presidente eleito, Lula, que deixaram pouco a pouco de vestir o tradicional uniforme canarinho. Neymar, portanto, exacerbou a antipatia de grande parte da população brasileira.

O futebol brasileiro nunca foi uma ilha isolada do que ocorre no Brasil e no mundo. Sabemos que a ditadura militar explorou o time dos sonhos do Brasil após o tricampeonato histórico na Copa de 1970, com uma equipe que contava com Pelé e outras estrelas. Pelé era dono indiscutível dos estádios, mas jamais aderiu publicamente a uma posição política, em favor de uma imagem de certa neutralidade. Em contraste, o astro oitentista dr. Sócrates – além de médico formado – preocupava-se com questões políticas, sociais e culturais de seu país e deixou como legado sua luta contra a ditadura militar. Sócrates e seus companheiros fundaram o que se tornou conhecido como a “Democracia Corinthiana”, em alusão ao Sport Club Corinthians – equipe mais popular do estado de São Paulo.

Nas últimas duas semanas, apoiadores do presidente Bolsonaro obstruíram estradas e se aglomeraram em frente a quartéis para contestar o resultado das urnas. Nas rodovias, torcidas organizadas saíram em defesa da democracia. Em São Paulo, a Gaviões da Fiel – torcida do Corinthians – enfrentou os radicais bolsonaristas, para dispersá-los e liberar algumas das vias. Em Minas Gerais, torcedores do Clube Atlético Mineiro agiram de maneira semelhante. Vale ressaltar que Lula é notório torcedor do Corinthians, enquanto seu adversário, o ex-presidente Bolsonaro, é torcedor do Palmeiras – seu principal rival, fundado pela comunidade italiana em São Paulo há mais de cem anos. Bolsonaro, não obstante, costuma vestir camisas de diversos times de futebol como manobra demagógica e populista.

Foi desta forma que o tenso e conturbado cenário político brasileiro ensombrou e sobrepujou o futebol, o que o levou a cerceá-lo e excluí-lo das comemorações populares. Trata-se de algo sem precedentes em décadas, no Brasil; algo que certamente nos traz certo espanto. O esporte em geral e o futebol em particular não são uma ilha isolada da política, da sociedade, da cultura e da economia. O brilho do futebol brasileiro parece ter minguado dentro e fora dos campos. E quem será capaz de reaver o entusiasmo nacional?

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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